Eu estava diferente. Um mês antes da sua chegada meu cabelo ainda era bem comprido e meus fios castanhos. Eu não me metia tanto em confusão e me preocupava com o que as pessoas diziam ao meu respeito. Tipo, não me importava, mas é chato geral te acusar de um bagulho que tu não fez. Então eu me afastava de todos para evitar falação.
Lembro bem daquele dia. A cidade cheia. Era um dia grande, ou deveria ser. Até alguém estragar tudo.
- Vamos Cecília. Você vai se amarrar!
Lacraia, a única pessoa que falava comigo em toda a cidade, tentava me convencer a sair para, em suas palavras; "mandar ver".
Ela queria aprontar. E eu não queria confusão.
- Quer saber? Foda-se. Eu vou ter o melhor dia da minha vida e a lerdona aí vai ficar escondida num beco com medo das pessoas.
Ela estava certa. Não tinha a menor chance de alguém me ver passeando por aí. Então deixei que ela fosse.
Algumas horas depois, ainda em festa, me senti culpada. Lacraia me conhecia a alguns meses porém sempre fez de tudo para me ajudar e defender. Era chato ela me chamar para festejar e eu recusar, então sai do meu beco favorito e fui atrás daquela louca, o que não deveria ter feito.
Algumas pessoas com crianças me olhavam e puxavam seus parentes mais novos, com medo da minha pessoa surtar e incendiá-los ali mesmo. Inúteis. Nem pesquisam antes de saírem por aí dizendo as crianças que sou uma espécie de demônio.
Então eu acelerei o passo porque não queria que todos ficassem me olhando. Aquilo me deixava nervosa e quanto mais nervosa eu ficava, mais rápido abria e fechava meu isqueiro. Presente do meu pai.
De repente uma pequena explosão pode ser ouvida. Gritos, fogo, fumaça, bombeiros... Tudo chegou rápido demais, eu sequer podia processar.
Só vi quando Tereza saiu de lá toda machucada e chorando muito. Eu fiquei horrorizada. Nem comemorei o fato de seu pai ter morrido naquele acidente.
Mas o pior para mim veio depois.
Uma tiazinha, daquelas velha fofoqueiras que todo bairro tem que ter, me viu ali parada, abrindo e fechando o isqueiro e logo apontou para mim.
Disse que só podia ter sido eu. Eu era a única garota que gostava de brincar com fogo. Que não ligava para a vida das pessoas. Que meu prazer pelas chamas superariam qualquer dor que pudesse causar a todos.
- Logo o boato se espalhou. Eu fui investigada mas não tinham provas contra mim. Não pude ficar muito tempo na cadeia. Mas foda-se. Geral pensava que eu era uma assassina. Uma psicopata. Ainda pensam. E eu nunca fiz nada a ninguém, mesmo quando tive motivos. Curioso, não?
Eu ouvia a tudo calada, afinal, o que eu poderia comentar?!
- E aquela filha da puta da Lacraia que fez isso. Acabou de me confessar! Disse que foi um acidente com os foguetes caseiros que estavam fazendo – Cecília sorri com desdém.
Agora tudo faz sentido. Pagar as coisas para Tereza no mercado foi mais uma ação de culpa por tê-la tirado tudo. Mas como uma dívida.
- Ela sabia do inferno que eu tive que passar por causa da sua brincadeirinha inconsequente e... E não me contou. Só de lembrar da vontade de mergulhar sua cara numa banheira cheia de piranhas.
"Por isso não desconfia de mim?". Digito depois de algum tempo quieta.
- Eu sei como funciona nessa cidade. Essas pragas de pessoas são piores que o mais malvado demônio do inferno. Então se uma delas está tentando te incriminar, você está fudida. A fama pega depressa.
Eu concordo coma cabeça.
— Vai me contar o motivo do choro?
Suspiro e digito um breve:"não faz diferença".
— A sua dor importa, Aline.
"Eu não gosto das pessoas". Ela sorri enquanto lê.
— Eu também não.
Espero sua raiva diminuir consideravelmente até voltar para casa. Cecília me promete que ficará longe de confusão, pelo menos enquanto nossos nomes ainda estão sendo as principais manchetes dos jornais locais desde que eu não me permita ser, em suas palavras, feita de otária pelos outros.
Volto devagar para casa assim que lembro o motivo de minha saída, e para minha surpresa encontro um Lucas bem acordado assim que passo pela porta da frente.
- Aline! Graças a Deus! – Ele diz enquanto tenta me esmagar num abraço – Ficou maluca? Quer me matar de preocupação? São 3 horas da manhã, eu acho bom ter uma ótima explicação para ter demorado tanto para voltar para casa.
Eu olhava para Lucas incrédula. O que aquilo significava? Meus pais nunca haviam feito aquilo quando passei dias foras de casa, me escondendo do cheiro de álcool das roupas de Vagner.
- Éh... Bem...Ac-chei...N-n.. – Não sabia diferenciar se minha enrolação era por não conseguir pronunciar as palavras ou pelo espanto com aquela cena.
- Não precisa falar mais nada. Eu fui um imbecil de deixar Nicole entrar aqui e falar aquelas coisas.
Ela falava tudo depressa me deixando um tanto atordoada pela quantidade de informação.
- Isso não vai se repetir. Eu disse que não havia a possibilidade de um relacionamento entre nós dois e...
Ele finalmente percebeu que falando tudo de uma vez só estava me deixando pior do que o normal quando o assunto é entender algo, então me puxou até o sofá e me fez sentar, me imitando logo depois.
- Não precisa ir ver João. Não precisa se explicar para mim ou para Calebe. Olha esquece tudo isso. Aline...
Seus olhos pareciam que iam saltar a qualquer instante e eu não reconhecida aquele sentimento.
- Nunca mais faz isso – Ele diz e passa a mão pelo meu rosto suavemente, me forçando a fechar os olhos – Achei que não te veria de novo.
Ele sussurra e eu volto a abrir meus olhos e encarar meu primo que agora já conseguia respirar normalmente.
- Udo bem... Ob...igada po udo, eu...
- Não precisa agradecer. É o que as famílias fazem – Ele diz me puxando para um abraço reconfortante. Eu descansei a cabeça em seu peito me sentindo segura novamente.
Não Lucas, nem todas as famílias fazem isso. Só você que fez e faz isso por mim...
by SAFIRA
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Os Corpos de Palmas I
Misteri / ThrillerA mente humana é fascinante e bastante perigosa quando traumatizada. Esse é o caso de Aline, uma jovem com diversas tragédias do passado pronta para tentar seguir em frente. Mudando para o município de Palmas, matando seus medos e se livrando de qu...