Capítulo 5

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O treinamento com Jagnar seria diferente dessa vez. Eu precisava focar em minha missão. Eu tinha muito que fazer e a lista não parava de crescer: salvar minha mãe, eliminar os Répteis e combater ao lado dos felinos. Não havia chance de eu recuar e deixar de cumprir minhas promessas.

Eu seguia o elfo de perto pelos corredores amplos e bem iluminados da caverna e, enquanto caminhávamos até o grande salão de treinamento, senti certa ansiedade, um temor pela possibilidade de não conseguir dar conta de tudo isso. Será que eles estavam certos em esperar algo de mim, seja lá o que fosse que esperavam? Afinal, as visões que Bruno me mostrou sobre os futuros prováveis de mim como Ishtar-Tiam eram apenas possibilidades.

A risada de Jagnar me tirou de meus pensamentos. Sem interromper sua caminhada e ainda de costas para mim, ele estava atento ao que se passava em minha mente, às minhas atitudes. E, por algum motivo, ele tinha achado algo engraçado. Não percebi nada de engraçado nas minhas aflições.

— Te preocupas com o que menos importa. Aprenderás que o que nos cabe é fazer o que nos cabe. Somos apenas a parte do todo que se move constantemente. Faça o que te cabe, com o melhor que podes.

— Não sei se consigo. Eu não sei nada ainda e há tanto pra eu fazer, que eu... — Meu peito apertava a cada passo.

— Tens medo. Medo é parte do programa que recebeste enquanto habitante da superfície. Não te apegues ao que te aprisiona. Faça o que te cabe, com o melhor que podes.

— O que eu posso fazer pode ser perigoso para todos. Não quero me tornar o mal que quero combater.

— Julgas a ti mesma pelo que não sabes. Temes o julgamento por atos não cometidos. Faça o que te cabes com o melhor que podes.

Ele tem razão. Estou sendo infantil, partindo do pressuposto da culpa quando o crime é apenas uma possibilidade. Não posso me culpar ou me cobrar por algo que não fiz e que sequer quero fazer. Farei o que me cabe com o melhor que posso. Lembrei do que Lakun me disse há um tempo: “não crie para ti uma realidade que rejeita”.

Lakun... Por onde anda esse alienígena?
Como estava atento a mim, Jagnar prontamente respondeu minha pergunta.

— Lakun de Anun continua na frente de combate, agindo pela causa a favor dos que despertam. Ele cumpriu sua missão para contigo e para com Masnik, assim como cumpriu e cumprirá com outros.

Então, cada um tinha uma missão específica dentro da causa Shey. E eu certamente me preparava para a minha.

Logo estávamos no centro da sala de treino cujo teto em forma de domo se localizava muito alto acima das nossas cabeças.

— Então, vamos começar, amigo. Mostre o que preciso aprender para ser útil à causa.

Jagnar havia parado a cerca de dois passos diante de mim e eu já estava em posição de ataque ou defesa, sei lá, pronta para o que Jagnar faria, seja o que fosse, quando ele simplesmente desapareceu diante dos meus olhos.

Paralisei no lugar, sem entender o que ele queria com isso. Teria ele me deixado sozinha por algum motivo específico? Teria sido alguma coisa que eu disse?

Lembrei da brincadeira de esconde-esconde que ele fez comigo no meu primeiro dia na caverna. Ele simplesmente havia se escondido, não sei como, e confesso que não foi fácil achá-lo.
Não é possível que ele me abandonaria assim, do nada.

Concentrei-me em localizá-lo da mesma forma que fiz antes, permitindo que minha consciência ficasse livre pra encontrá-lo. Respirei pausadamente, vasculhando com atenção a caverna e qualquer lugar onde houvesse chance de eu o achar. Eu procurava por sua vibração.
Não demorou e eu pude senti-lo. Era como se ele estivesse próximo e ao mesmo tempo distante. Onde ele estava, afinal?

— Me achastes em um plano sobreposto ao qual estás. Vem. — Sua voz em minha cabeça era suave, mas firme.

Como assim, “vem”? Nem sei onde ele está! Deveria existir um manual pra esse treinamento. Sem demora senti como se minha consciência fosse atraída para um lugar desconhecido.

Isso era algo novo e minha consciência parecia agir por conta própria. Nesse lugar, ela estava habituada a simplesmente fluir.

O medo veio como um reflexo humano e automático. Como eu poderia ir para um lugar desconhecido? O que eu encontraria lá?

— Medo é parte do programa que recebestes enquanto habitante da superfície. Vem. — Ele insistia em me chamar enquanto eu ponderava com meu medo.

Tá certo. Livrar-me do medo. Tudo bem... Concentrei-me apenas na vibração de Jagnar. Se ele me quer lá, então é pra lá que eu vou!

Não demorou para que eu percebesse um clarão e logo tudo era totalmente diferente, como se eu, como se tudo o que era já não fosse mais. A luz branca me cegava completamente. Eu só sentia Jagnar e mais nada.

— Onde estamos?

— Em um plano sobreposto ao qual estás habituada. Aqui, tempo e espaço são percebidos diferentemente. Podes existir enquanto o tempo no plano anterior simplesmente não é percebido.

— Então enquanto estamos aqui, é como se lá o tempo tivesse parado?

— É assim que percebes. Aqui podes observar o que se passa na ilusão de tempo que chamas de passado, presente e futuro.

Imediatamente imaginei a vasta utilidade de usar essa habilidade nesse plano.

— Sim. Poderás avaliar possibilidades de futuro imediato, pesquisar o passado, observar o que se passa e então, voltar e agir adequadamente.

— Isso é fantástico! Então podemos vencer qualquer batalha!

Jagnar me observava atentamente como se estivesse analisando o que acontecia em uma placa de petri.

— As variáveis são muitas e complexas. A verdadeira batalha ocorre nas consciências. O que temos feitos são paliativos e ações de urgência. A vitória não vem delas.

— Como ganhar uma guerra que se passa na mente das pessoas?

— Nos espalhamos como ramos de uma videira na medida em que cada consciência expanda e se torne solo fértil.

Lembrei de como eu era, até pouco tempo atrás, totalmente ignorante a tudo que acontecia. Pensei nos bilhões de pessoas que ainda estão assim, alheias à verdade.

— Ainda sabes pouco, jovem Ishtar. Primeiro, descubramos e então, despertemos. Agora, perceba onde estás.

Eu não conseguia ver nada além do clarão e sentir nada além da presença de Jagnar. Mas, certamente, havia mais aqui do que eu percebia.

Nada do que era existe aqui...

Preciso desapegar dos padrões de onde eu estava e perceber com olhos de minha consciência. Olhei para o clarão acreditando que havia algo lá e, que eu o veria simplesmente porque eu podia.

Aos poucos o clarão começou a tomar forma. Tons foscos se sobrepunham aos tons muito claros até que formas começaram a surgir. Diante de mim estava Jagnar, orgulhoso, me observando.

— Fazes bem, jovem Ishtar. Que mais vês?

Havia muito mais para eu ver e eu simplesmente sabia que eu poderia ver tudo, poderia viajar pelo tempo e antever as ações dos inimigos.

— Não limite teu agir, Ishtar. A batalha é apenas um pequeno espectro dessa realidade. O que vês?

Permiti que minha consciência observasse e me trouxesse o que via. Logo, minha visão se abriu e eu pude ver, como se estivéssemos submersos em um mar de infinitos espectros de vibração que refletiam o tempo, assim como o que se passava nos planos de possibilidades derivadas de onde estávamos. Em cada reflexo havia uma imagem em movimento. Era tudo confuso e, ao mesmo tempo, óbvio. Era impossível não me maravilhar com o que eu via. Bastava olhar e entender. Percebi que minha consciência poderia escolher o quando e o onde e eu não pude evitar voltar no tempo.

Ela estava linda, com seus cabelos cacheados na altura dos ombros que se moviam na medida em que ela se movia, como se dançassem ao ritmo do seu corpo. Eu a via sentada em um dos bancos do nosso quartinho fazendo bainha em uma calça enquanto esperava que o feijão cozinhasse. Enquanto costurava, ela observava uma pequena Brigitilene rabiscar folhas de jornal com um pedaço de giz colorido. Que saudade da minha mãe...

— O que mais vês?

Jagnar me incentivava a olhar mais atentamente.

Talvez houvesse algo que minha lembrança me impedia de enxergar. Deixei minha consciência livre para ver o que havia lá e não o que eu esperava que houvesse. E então eu vi...

Escondido sob a camada vibracional de outro plano, havia um Réptil de quase três metros de altura, calda tocando o chão e coloração bege amarelada. As escamas em seu rosto formavam um padrão assustador. Ele não vestia roupa alguma, mas não havia nudez nele, pois seu couro era a sua armadura.

Eles estavam todos muito próximos de mim, como se estivéssemos todos no mesmo lugar ao mesmo tempo.

Assim como minha mãe observava a mim e à panela no fogão, o monstro observava a nós duas como se fôssemos parte de sua experiência, seus ratos de laboratório. Estranhei ao notar que o monstro não era Czanor.

— Ali a missão do híbrido Czanor havia terminado para com sua mãe e ele aguardava, em outro lugar, para começar sua derradeira missão para contigo.

Sim. Como Czanor havia me dito, ele havia preparado o corpo humano de minha mãe para receber o embrião geneticamente manipulado que era eu. Por minha causa, ela passou por tudo que passou.

— Culpa também é parte do programa que recebestes na superfície. Desprenda-se dele. Vivestes o que tivestes que viver pois não podias arbitrar sobre ti. Estamos mudando isso.
E eu também mudaria algumas coisas nesse planeta.

Sem muito pensar, desejei destruir o Réptil que nos observava. Eu queria destruí-lo e começar a liberação da Terra a partir daquele ponto em diante. Eu poderia matar todos eles dessa forma!

Lembrei de quando projetei um menurac e fiz um enorme buraco no abdome do Sombra. Apesar de, naquela vez, se tratar de um corpo humano, eu estava certa de que poderia provocar algum estrago no Réptil repulsivo que observava a mim e a minha mãe.

Eu já podia sentir a energia se movendo ao redor de minha consciência e logo eu descobriria se era realmente possível ferir um Réptil nesse plano. O clarão já começava a se dissipar ao meu redor enquanto a energia girava e se concentrava ao redor de mim. Faltava pouco agora.

Subitamente senti meu corpo sendo violentamente pressionado e, então, um forte clarão e o impacto de minhas costas contra o chão. No segundo seguinte, minha visão se restabeleceu e eu pude ver que estávamos de volta na caverna. Jagnar pesava sobre mim, usando seus joelhos para segurar meus braços contra o chão, enquanto pressionava meu pescoço com a mão.

Não acredito que esse elfo nojento fez isso! O Réptil era meu para matar! Eu só precisava disso para começar a limpar a Terra e eu começaria limpando minha própria casa!

— Saia de cima de mim! Me deixa voltar lá! Você está do lado de quem?

Jagnar me olhava com o olhar sereno e amoroso de quem escolhe as palavras para repreender uma criança. Já eu não tinha tanto amor nos meus olhos exatamente nesse momento.
Não demorou para que eu sentisse a suave pressão de sua mão livre sobre minha testa enquanto a outra continuava pressionando minha garganta com força.

— Queres correr antes que te sustentes de pé, jovem Ishtar. Veja só o que fazias. — Jagnar falava comigo sem mover seus lábios, comunicando-se telepaticamente.

Assustei-me quando senti um estalo em minha testa, como se algo se abrisse repentina e violentamente. Será que o Jagnar estava me agredindo de alguma forma?

O forte e repentino estalo foi seguido de uma sequência de outros estalos, cada vez mais doloridos. Eu não sentia atitude agressiva nele, mas, então, porque isso? E o que é isso?

O olhar doce e sereno de Jagnar logo foi substituído por um olhar duro e concentrado de quem tinha um enigma diante de si.

— Ela não permite que saibas.

As palavras de Jagnar foram a última coisa que ouvi e logo era tudo escuridão.

Nova Ordem (Livro #2)Onde histórias criam vida. Descubra agora