Oi?
Não havia o que dizer agora e eu nem poderia. O rosto daquele homem começou a passar repetidamente em minha mente e isso era perturbador.
Meu pai?
Mas eu não fui feita em um laboratório dos Répteis? Eu não imaginei que eu teria um... pai.
Minha confusão era nítida e eu não precisava de telepatia para saber que o Bruno tinha isso evidente na frente dele.
— Como que eu tenho um pai?!
— Ele não sabe que é seu pai. Você já teve muito por hoje. Falaremos mais tarde. Vulteran quer tratar contigo.
Somente agora me dava conta de que Vulteran estava esse tempo todo no mesmo canto do meu recinto, observando a tudo enquanto pacientemente aguardava.
Certamente ele me mostraria algo mais que eu precisava para entender toda essa realidade sórdida.
— Claro...
Como que autonomamente, afastei-me do Bruno e virei-me, colocando-me de frente para Vulteran e de costas para o híbrido, que por sua vez saiu atravessando a parede e me deixando a sós com o espectro.
No momento seguinte senti meu corpo relaxando suavemente enquanto sua presença se fazia mais forte.
— Olá, jovem Ishtar-Tiam. Sabe por que estamos aqui?
Apesar da pergunta parecer extremamente vaga, eu sabia exatamente a que ele se referia.
— Sim. Por causa do que aconteceu no treino com Jagnar.
— Pode me descrever o que aconteceu?
Certamente ele já sabia o que havia acontecido e seu propósito em perguntar-me tinha nada a ver com obter informações de mim. Ele queria que eu entendesse o que aconteceu.
— Jagnar não permitiu que eu atentasse contra o lagarto para impedir que eu mudasse a nossa linha do tempo.
Tentei ser o mais objetiva que pude enquanto percebia Vulteran olhando fixamente para dentro de mim.
— Isso foi o resultado do que aconteceu. Conte-me o que aconteceu contigo.
Eu sabia que minha colaboração agora determinaria o tempo que essa conversa levaria. Depois do que descobri sobre os humanos-gado, eu não via como fazer qualquer coisa além de colaborar com esses seres que se denominavam Shey. Então me esforcei para lembrar com detalhes o que aconteceu no treino com Jagnar.
— Eu desmaiei.
— A desconexão foi a saída dada por Jagnar para controlar o que acontecia contigo. Algo negativo e incontrolável sobressaía a você.
Senti um frio subir pela minha espinha ao imaginar a Réptil assumindo o controle de mim outra vez. Os habitantes dessas cavernas não mereceriam ter que lidar com ela. Eu, no lugar deles, a abateria, certamente. Eu a abateria agora, se eu pudesse.
— Esse caminho que visualiza é o caminho para a solução que você tem programada em você e que é o reflexo do impulso natural Réptil. A vida é a solução e extirpá-la é a alternativa sem honra de quando não há mais alternativa.
Ele estava me sondando por dentro.
— Como poderemos livrar a Terra sem matar os Répteis?
— Eles sairão por sua própria vontade tão logo os humanos saiam do controle mental. Os Répteis não são mais poderosos que as consciências livres da Terra.
— Não entendo... E se pegarmos todos eles e os chutarmos para fora daqui?
— Os humanos são a casa dos Répteis. Teríamos que chutá-los também e isso não nos é lícito fazer.
Então tudo era realmente mais complicado do que eu pensava. Temos que chutar os Répteis para fora dos humanos e depois para fora da Terra.
A pequena risada contida de Vulteran me sinalizou que eu ainda não havia acertado.
— Isso não será necessário. Basta livrar as consciências e então os Répteis não terão casa e nem comida. E assim, não terão alternativa a não ser sair. Quando este momento chegar, os escoltaremos para fora e não deixaremos que ninguém se fira.
— Como assim ferir, se eles estarão voluntariamente saindo?
— Voluntariamente e muito insatisfeitos. Antes disso tentarão nos forçar a deixá-los continuar na Terra através de pressão por ameaça. Também colocarão humanos contra humanos para gerar energia a seu favor e então obterem impulso para sua saída da Terra e entrada em outro sistema planetário o qual eles já tem como alvo. A ilegalidade deles para assumir outro sistema nos dá legalidade para impedi-los.
— Isso me soa como guerra.
— Não guerra, pois há regras às quais todos devemos nos submeter, inclusive os Répteis. Guerras acontecem quando as partes que pelejam fundamentam suas ações em regras distintas e divergentes.
Não vejo a hora de ficar menos confusa em meio a tudo isso.
— A confusão vem, pois seu sistema de compreensão provém do programa que você recebeu na superfície, o que me leva a perguntar mais uma vez... O que aconteceu contigo no treinamento?
— Eu decidi matar o lagarto e realmente iria fazer algo contra ele. Eu sabia que eu podia fazer algo e faria! Minha missão é livrar a Terra da presença deles.
Tão logo ouvi minhas próprias palavras, senti ressoar mais forte a palavra “eu” bem como a sensação de não ficar passiva e exercer o poder que eu tinha sobre algo que me incomodava.
Percebi então, o que havia acontecido comigo... Eu estava sendo Réptil novamente.
A sensação de derrota me invadiu como a água salgada invade, ardendo, os pulmões de quem está prestes a se afogar. Como isso pôde acontecer sem que eu sequer me desse conta?
Deixei que o meu corpo caísse sentado e inerte sobre a cama.
Como eu pude oferecer tamanho risco às pessoas?
— Não se cobre tanto. Jagnar te observa e cuida para que não haja risco. Ele te treina e também vigia.
Claro! Por isso ele se jogou sobre mim, me imobilizado e depois me fazendo desmaiar. Ele estava combatendo a Réptil em mim. Sua função além de me treinar é obviamente ficar de olho na ameaça.
Isso certamente confirma o que eu já sabia. Eu sou um perigo e não sou de confiança.
— Jovem Ishtar, entenda que o perigo que há em você, para nós nesse momento, se assemelha ao perigo de uma criança que explora o que desconhece enquanto pensa saber o suficiente. O maior risco recai sobre você mesma.
Vulteran parou para me observar enquanto eu absorvia o que ele me dizia. Como eu gostaria de estar no lugar dele e poder tentar entender o que acontecia comigo. Eu me sentia perdida e incapaz de dar conta de entender isso tudo, pois eu nada sabia e já queria partir para a ação, pronta mais para causar estrago do que para ajudar a humanidade. Que derrota...
— Jovem Ishtar... Tanta culpa e medo... A primeira pessoa que você libertará é a si mesma. Eu te ajudo a perceber o caminho.
Subitamente meu corpo foi tomado por um intenso relaxamento e era como se ele não tivesse peso algum.
Abri meus olhos para contemplar o que acontecia comigo e dei de cara com o chão a cerca de um metro e meio de distância do meu rosto. Eu estava literalmente flutuando no ar. Mas eu não sentia medo algum, apenas o intenso relaxamento.
Lentamente meu corpo, deitado sobre o nada, começou a girar no sentido horário quando meus olhos simplesmente fecharam como que por vontade própria. Eu não tinha medo ou ansiedade alguma. Tudo o te eu sentia era o relaxamento e a segurança de uma criança que dorme no colo da mãe.
E então me senti docemente saindo do meu corpo na forma de uma espiral que fluía pelo topo da minha cabeça na medida em que meu corpo girava. A sensação era prazerosa e na medida em que a espiral saía, eu me sentia mais e mais leve, mais feliz... Não pude evitar reagir com um enorme sorriso.
Naquele momento eu sentia... Não, eu sabia que nada era impossível ou difícil demais e que tudo que eu me dispusesse a fazer eu simplesmente faria; bastava querer e me empenhar. E isso me deixava contente. Tudo era simples e perfeito.
Não existiam obstáculos e nenhum sentimento de raiva, rancor ou mágoa turvava meu entendimento ou confundia minhas ações. Tudo era leve...
— Veja a si mesma...
A voz de Vulteran em minha cabeça parecia a de um maestro conduzindo suavemente a forma como meu corpo girava e a velocidade como minha consciência saía, como se fora um instrumento afinado.
E então, como o bom músico, olhei e vi meu próprio corpo girando e a presença reluzente de Vulteran , agora totalmente nítida, que me olhava de volta. Seus olhos eram enormes e de um azul profundo e igualmente reluzente. A sua pele era azulada clara num tom que eu não saberia descrever. Daqui eu podia ver tudo em detalhes e em cores que eu nunca havia visto antes.
Meu corpo suspenso no ar também era diferente do que eu imaginava. A forma Réptil já me era familiar mas o que eu via além disso me impressionava. Eu estava envolta numa espécie de névoa escura que me prendia e tirava de mim a cor e os movimentos de minha consciência. Era como uma armadura que me detinha, e que era invisível e resistente.
— O que é isso em mim?
— O programa no qual você ficou imersa por toda a sua vida na superfície. Ele retém o fluir de sua consciência através do medo de errar e de ser julgada por você e pelos outros. Esse medo te faz buscar a perfeição que não existe, numa busca sem fim e sem propósito.
— Mas eu não sinto medo agora... E tudo me parece fácil e leve... Me sinto feliz e capaz.
— É assim que deve ser quando você estiver verdadeiramente livre.
— Eu não quero voltar pra lá e ter que suportar todo o peso e o medo.
— Então seja livre. Resista ao medo... Rejeite sua fonte.
Antes que eu pudesse perguntar qual a fonte do medo, o conhecimento veio até mim como se minha consciência já o soubesse ou se pudesse acessá-lo de alguma forma. Imagens de filmes, anúncios de produtos, refrões de música... Tudo repetia que eu tinha que ser a melhor, que eu não poderia errar ou então seria rejeitada, colocada de lado como algo inservível. E enquanto eu me sentisse a melhor, em alguma posição que me desse destaque, então eu poderia exercer meu direito de posse sobre outros seres que eu julgasse inferiores a mim.
— Por toda a sua vida...
Sim... Por toda a minha vida eu havia sofrido uma espécie de lavagem cerebral, assim como todos os outros habitantes da superfície, que se digladiavam para ocupar o lugar que julgavam ser posição de destaque e poder, para então exercer esse poder sobre pessoas e coisas. Os Répteis são assim.
Esse programa é a roda dentro da gaiola de hamster, que nos aprisiona e obriga a acordar todos os dias pela manhã com o objetivo maior de alcançar esse lugar num pódio imaginário e inexistente. Que nos faz querer sempre mais e mais coisas inúteis que nos fazem sentir poderosos: aparência, dinheiro, objetos caros e a enganosa sensação de superioridade que vem com tudo isso. Quanta mentira...
Eu achava que estaria melhor se morasse em um lugar melhor, numa casa maior, se eu tivesse um diploma e um emprego que pagasse bem... Era a minha corrida sem fim dentro da gaiola que me impedia de olhar ao redor e para mim mesma e assim buscar o verdadeiro motivo de viver. Cegos... Todos cegos escravos trabalhando para ter dinheiro e então gastá-lo de acordo com a programação. Num círculo vicioso e sem fim, dentro do qual não se pensa e nem se vive.
— Eu não aceito esse programa! Eu não quero mais servir ao dominador! Não preciso ser melhor que ninguém, pois não quero dominar pessoa alguma!
Vulteran não piscava enquanto me olhava fixamente.
— Se poder e domínio não mais te trazem paz e alegria, o que traz?
Imediatamente fui invadida por lembranças de minha vida no morro, das vezes em que ajudei meus vizinhos e fui ajudada por eles. Dos abraços de feliz aniversário que traziam apenas o calor do corpo e o sorriso no rosto pois dinheiro para presentear não havia. Da companhia do Wellington que em pequenos gestos estava sempre perto de mim numa tentativa de me ajudar e me proteger. Da ajuda em dinheiro que dei à Tininha para que concluísse o curso de enfermagem e a esperança nela em poder com isso ter um melhor emprego e dar uma vida digna ao filho. Então eu entendi... Amar e servir. Essa é a verdadeira razão de viver...
Olhei mais uma vez para meu corpo suspenso no ar e percebi que lágrimas escorriam dos olhos em direção aos ouvidos e pingavam no chão enquanto o corpo continuava girando. Quando me dei conta do que acontecia comigo, vi um sorriso emocionado surgir em meus lábios no momento em que a névoa escura começava a dissipar.
Eu estava me libertando.
A névoa dissipava lentamente enquanto meu corpo girava. Na mesma velocidade eu sentia a energia do meu corpo físico se aproximando da energia da minha consciência.
Era um momento maravilhoso de libertação. Era quase como nascer de novo e poder respirar pela primeira vez.
Eu sentia o amor crescendo dentro de mim como uma ânsia suave na qual todo o programa Réptil parecia inverter completamente. Agora eu sentia que os outros eram mais importantes do que eu e que valia a pena ajudar e servir a cada um deles. Era nisso que eu encontrava valor, satisfação, paz e alegria. Ver os outros bem significava estar bem.
— O programa está registrado no armazenamento consciente de seu corpo, como um vinco em um papel. Você deverá resistir a ele, lembrando-se do que acaba de descobrir. É através desse programa que sua parte Réptil encontra o caminho para o controle de seu arbítrio.
Logo senti minha consciência como uma espiral se mover de volta para meu corpo flutuante. Eu estava ansiosa para experimentar viver com esse novo sentimento de liberdade.
O retorno foi rápido e o que eu senti foi totalmente inesperado.
Não era o que eu esperava.
Foi como se o peso ainda estivesse todo em mim. A diferença é que agora era mais desconfortável e doloroso, como se eu pudesse sentir as grades invisíveis da prisão me apertando e sufocando.
Meu corpo baixou lentamente e com esse movimento o peso dentro de mim foi aumentando e se tornando quase insuportável. Logo eu estava deitada no chão mal podendo me mover.
— O que aconteceu? Eu não entendo...
— O vinco é forte no corpo que carrega o programa celular, além do mental que você recebeu. É preciso ser mais forte, Ishtar-Tiam. No momento o programa celular reage recusando sua nova percepção.
Não tem nada fácil nessa história, tem?
Tive vontade de chorar pela frustração. Senti-me uma criança que teve o doce violentamente arrancado de sua mão.
— O que eu faço para vencer isso? Eu quero a paz de volta.
— Reprograme sua mente e a partir daí ocorrerá a retirada do registro que carrega o programa. É a sua vontade contra o programa que funciona autonomamente.
Eu preciso de uma resposta direta, um como fazer!
A energia de Vulteran mudou como uma frequência de som que muda o seu volume. Ele me chamava a atenção acerca de mim mesma, como um puxão de orelhas imaterial.
— Você terá que buscar isso a partir do seu novo conhecimento. Você despertou para a verdade do viver. Pratique-o a cada minuto. Sirva com amor e regozije-se nisso. Exigir respostas neste momento se equipara a demandar que te sirvam.
Sim... Ishtar existe para amar, servir e regozijar-se nisso. Não para ser servida. A vergonha me fez perceber, mais uma vez, o quanto preciso estar atenta.
Eu só precisava resgatar o que senti e o que significa para mim ajudar meus amigos e estar perto deles. Logo será assim com tudo e todos.
— Sim, Ishtar. Permita que esse amor irradie e cresça em você. Agora fique só e medite sobre isso.
Ele, que acessava minha consciência, motivou-me a continuar a busca pelo meu viver.
E então Vulteran se foi. Dissipou no ar como uma brisa e eu me achei sozinha outra vez.===^.^===
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Nova Ordem (Livro #2)
Ficção CientíficaEm Nova Ordem, a sequência de Nova Drasskun, Brigitilene é agente da causa Shey infiltrada na Sociedade, o governo oculto. Ela terá que descobrir o máximo que puder para derrotar os opressores da Terra, enquanto controla a réptil dentro de si, a fim...