Eu ainda sentia o largo sorriso em meu rosto, como se músculos desconhecidos de minha face estivessem agora sendo usados pela primeira vez.
— KUTERAT KUARIS EWHA (Ewha saúda Kuterat).
Então agora eu falava drasskuniano. As coisas ficarão muito mais fáceis assim.
O estranho prazer que eu sentia não excluía de mim minhas lembranças e sentimentos. Ele apenas acrescentava a certeza inequívoca de que Ewha era uma forte realidade dentro de mim e que vinha à tona como quem chegava, cheio de energia, a uma festa há muito esperada. Eu não trairia meus amigos, mas certamente, aproveitaria a festa.
Virei-me para a esquerda a fim de olhar Toea de frente, que retribuiu com uma reverência inesperada. Ela estava totalmente isolada e me passava absolutamente nada do que sentia ou pensava. Sua atitude era totalmente outra. Uma pontada de ressentimento foi seguida pela lembrança de suas palavras enquanto caminhávamos para essa sala: “seja cautelosa, pois disso dependerá nossa segurança”. Ela estava certa e eu deveria fazer o mesmo.Respondi à sua reverência com um gesto de cabeça e o sorriso que, parece, não iria sair tão cedo do meu rosto.
Kuterat, ainda diante de nós, imponente e poderoso, agora me olhava como quem admirava a bandeira nacional em dia de final de copa do mundo. Agora ele me reverenciava com a sinceridade que eu não havia observado antes. Eu era a dona do morro e isso era bom. Muito bom...
— Quero repouso e alimento em minha acomodação, se isso lhe agradar, mestre Kuterat.
Já que eu era a poderosa aqui — ao menos era isso que parecia — então não demostraria medo ou hesitação. Somente exercerei o poder que eles mesmos me deram.
Kuterat olhou para um dos lagartos que estavam à nossa disposição, certamente comunicando-se com ele telepaticamente, o qual imediatamente se colocou diante de mim. Seus olhos fitavam o solo.
— NACS MEIN GAHRU. (Por favor, me siga, mãe).
Confesso que é prazerosamente estranho ter esses monstros me chamando de mãe.
Com um rápido sinal de cabeça eu me despedia de todos naquela sala, inclusive de Toea que, assim como os demais, olhava para o chão enquanto eu me afastava seguindo o lagarto-servo.
Eu sabia que minhas acomodações não deveriam estar longe dali. Certamente Kuterat queria de me manter por perto, por questões de precaução. Assim, meu isolamento primário estava firme e forte no lugar e eu só tinha que agradecer à Toea pela dica.
Enquanto o lagarto caminhava diante de mim, pude observar que sua cauda era muito mais curta que a cauda do dragão albino. Então eu quis conhecer mais sobre esse ser. Não imaginei que os lagartos pudessem ser assim, tão submissos. Então optei por falar com ele telepaticamente, o que era muito mais confortável e que daria a ele um pouco de privacidade para se abrir comigo, se eu tiver sorte disso acontecer.
— Qual o seu nome, lagarto?
Senti um pouco de hesitação nele. Talvez não estivesse habituado a ver alguém hierarquicamente superior se dirigindo a ele com algo além de uma ordem.
— Tretun é como me chamam, mãe.
— Pode me chamar de Ewha, somente. Isso me agrada.
Eu simplesmente sabia que a palavra “agradar” equivalia a uma espécie de “estou mandando”, mas que colocava o detentor de poder numa situação de divindade a qual deveria ser, de alguma forma, bajulada. Isso me pareceu muito estranho, coisa que falsas divindades fariam como que para forçar sua vontade sobre outros.
— Sim, Ewha.
— O que é você, Tretun? Por que se submete?
Ele olhava para o chão por todo o tempo, como se, ao olhar para mim, fosse desrespeitoso, ou algo do gênero. Isso me incomodava.
— Olhe para mim enquanto me responde, lagarto.
O poder sobre um lagarto era algo que me dava a sensação de que eu poderia, sim, acabar com o controle deles sobre a Terra. Era a esperança de que eu estava no lugar certo para o propósito que me fizera chegar até aqui.
— Sou parte lagarto, criado pelos mestres para servir e lutar por eles, assim como meus irmãos.
Então ele era um operário híbrido, nascido escravo. Mas eu conseguia identificar que nele havia capacidade de julgamento. Nele havia possibilidade de arbitrar, mesmo não sendo esse arbítrio totalmente livre. O que é um livre arbítrio para quem é escravo e não tem todas as informações, afinal?
Após mais alguns passos, chegamos em frente à uma leve incrustação na parede. Um pequeno gesto de mão do lagarto e a parede desaparecia diante de mim, dando acesso ao que era meu aposento.
— Para o repouso de mãe Ewha.
Com uma reverência, o híbrido se dobrou, permanecendo assim por um tempo. Percebi que ele esperava que eu o liberasse.
— Pode ir, Tretun.
Em seguida, entrei no cômodo deixando o lagarto ainda curvado até que a porta surgiu entre nós.
O que eu faço agora?
Olhei ao meu redor e examinei o lugar que era bem maior do que o meu quartinho. Nele havia praticamente nada além de algumas endentações na parede, umas menores que outras.
Aproximei-me de uma das endentações menores e eu simplesmente sabia o que era. Seja lá o que havia sido feito a mim, trouxe à tona informação para minha consciência. Aquela forma na parede nada mais era que um mecanismo para me trazer comida. Mal pensei em comida e o dispositivo acionou, como se algo em mim houvesse comunicado com algo nele. E então, uma tigela que parecia ser feita de um plástico muito fino, mas firme, surgiu com o que se assemelhava a uma salada verde com cubos coloridos. Seriam legumes?
Fiquei aliviada e, ao mesmo tempo, decepcionada por não haver seres se movendo em minha refeição. Que confusão estar numa nave Réptil e não me servirem bichos.
— A tecnologia dessa nave é similar à tecnologia de onde estavas antes. Ela analisa sua biologia e energia, servindo algo adequado a elas.
Vunteran! O que ele está fazendo aqui? Meu disfarce!
— Aquiete-se, jovem Ishtar. Eu não serei detectado. Vim para dizer que não estarei contigo nessa nova etapa, para que tenhas liberdade para escolher seu caminho.
Então isso era uma despedida?
— Então acabou? Era somente isso?
Imaginar que não teria Vunteran por perto era libertador... E eu me sentia livre, como o filho adolescente que vê os pais partindo para uma longa viagem de férias deixando-o sozinho para fazer o que quiser... Ewha estava contente.
— Seu caminho mal começou a ser trilhado, jovem Ishtar. Entretanto, cabe a ti escolher com liberdade. Já tens o que é preciso, portanto, use-o sabiamente.
Liberdade para escolher se quero ser Ewha. Interessante.
— Muita generosidade de sua parte, Vunteran. Acredite que aproveitarei a oportunidade que tão gentilmente me dá.
— Lembre-se: nenhum caminho lhe será imposto, mesmo que assim pareça.
Dito isso, a presença invisível desvaneceu, deixando-me sozinha mais uma vez.
O sentimento de vazio trouxe um sabor agridoce ao que eu sentia. O que eu havia me tornado? Até que ponto eu poderia realmente escolher algo em meio a esse mundo Réptil no qual haviam me enfiado?
Colhi a tigela com a salada que me lembrava de que eu, em essência, não era reptiliana. Eu não tinha que ser e até a tecnologia da nave sabia disso. Sim... Minha comida será meu lembrete.
Olhei para a endentação maior na parede e imediatamente dela emanou um pequeno campo gravitacional sobre o qual sentei enquanto comia a salada usando minhas mãos. Répteis não eram de usar talheres, parece. Percebi que a tigela também era comestível e ligeiramente adocicada, como um tipo de sobremesa. Menos lixo.
Após comer, deitei e olhei para o elevado teto de minha estéril acomodação, com um triste sorriso ainda em meus lábios.===☆ continua ☆==
E então, gente? :)
O que estão achando da história até aqui?
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Nova Ordem (Livro #2)
Science FictionEm Nova Ordem, a sequência de Nova Drasskun, Brigitilene é agente da causa Shey infiltrada na Sociedade, o governo oculto. Ela terá que descobrir o máximo que puder para derrotar os opressores da Terra, enquanto controla a réptil dentro de si, a fim...