Capítulo 19

79 17 29
                                    

Minha presença nesse quarto de hotel parecia surreal quando comparada ao local onde eu estava há poucas horas. Estar sentada nessa cama com colchão de molas parecia algo tão comum que imaginar um campo magnético que me servia como leito parecia loucura.

A ideia de programa mental me inseria em um padrão de pensamento pré-concebido para atingir todas as pessoas que estivessem ao seu alcance, como um modelo padronizado compartilhado por todos, onde o que é normal, aceitável e desejável não passa de um programa criado e estabelecido simplesmente para proporcionar controle.

Estar na superfície novamente me colocava no campo de alcance desse controle como se uma onda magnética ou radiação interferisse com o funcionamento do meu cérebro. Mas somente o fato de saber que essa programação existe, me faz resistir a ela. O fato de eu ter informações e conhecer opções me faz entender que eu é que tenho o controle sobre minha mente.... Se eu quiser, claro. Tudo é questão de escolha.
Olhei para o pão com ovo acompanhado de um copo de suco de laranja industrializado que pairavam atraentes sobre uma bandeja de metal prateado. O sanduíche ainda estava quente e o suco ainda estava gelado em cujo copo de vidro se formavam pequenas gotículas da condensação de água. 

Me acomodei sentada sobre a cama e encarei o lanche como se eu o quisesse atravessar com um olhar de Raio-X que eu certamente não tinha. Será que não? O que há por trás desse ovo? Será que a tecnologia de materialização da nave me serviria isso para comer? Algo dentro de mim me dizia que não.

Olhei para o ovo e intencionei rastrear seu caminho desde sua origem até chegar onde ele estava agora: dentro de um pão no meu quarto de hotel. O que eu estava prestes a fazer, ou achava que estava, era algo novo, uma habilidade que eu nem sabia se tinha, mas eu estava disposta a tentar. Seria como visitar os registros de ações em uma linha de tempo, como visitar o registro em um filme quântico dessa linha do tempo. Nossa.... Quanta informação dentro de mim. Com certeza todo esse despertar, seja ele réptil ou Ishtar, se somava à minha consciência, abrindo portas de percepção que eu sequer imaginava pudessem existir.

Desde que tudo começou, eu era apenas mais uma garota de favela tentando vencer na vida. Agora sou um ser híbrido que está entre a dominação e a libertação da Terra.

Parece que faz tanto tempo...

Continuei encarando o ovo, desligando minha mente do local onde eu estava, me desconectando do que eu percebia como mundo material para acessar um plano paralelo de registros que pareciam preencher um oceano de ondas cheias de informação.  Esse oceano de ondas integrava o emaranhado de todas as ondas que emanavam de tudo e de todos, capturando a história de tudo. Esse oceano de ondas não conhecia limitações materiais: ele era o passado, o presente e o futuro, em uma realidade onde tais percepções de tempo simplesmente não existiam.  Era tudo como um grande presente, onde a história se apresentava em forma de uma biblioteca de energia constituída de um único livro, disponível para ser acessada por quem a pudesse e quisesse acessar. Certamente agora eu saberia tudo sobre esse ovo.

Fechei os olhos e senti a névoa que emanava de mim envolver o ovo dentro do pão. Em instantes me senti expandir, como se estivesse me diluindo nesse plano imaterial. Então, foi como adentrar em um filme passado na velocidade de um segundo na qual eu contemplei a história daquele ovo, como se essa história estivesse sendo contada de trás para frente e em seguida, de frente para trás, sucessivas vezes. Percebi que eu contemplava a história não somente desse ovo, mas de centenas de milhares de ovos, como uma gigantesca cena repetida centenas de milhares de vezes!

Uma galinha aprisionada numa minúscula gaiola. Claustrofobia. Tristeza. Seu bico cortado rente à face ainda com a marca do ferimento que insistia em não cicatrizar, já que toda a vez que se alimentava, a ave experimentava o sabor do próprio sangue. Por isso ela evitava comer: pela dor e pela tristeza.

Ela queria e precisava caminhar, ciscar, mas não podia sequer esticar ou mover suas pernas. Cãibras. Agonia. Num ímpeto de desespero, tentou mover seu corpo, abrindo suas asas na esperança de que, talvez, pudesse se libertar dessa prisão, conseguindo somente prender sua asa e perna esquerda entre as grades. Ossos quebrados. Mais dor. Ninguém viria cuidar de seus ferimentos. Uma lágrima vista por ninguém e sentida apenas por ela se formou em seus olhos. Com sorte, ou azar, duraria não mais que dois anos, dentre os doze que naturalmente teria.

E então, vi um ovo cair num espaço aberto sob o corpo da ave, rolando numa espécie de tubo de armação metálica que o conduziu, com a ajuda da gravidade, até uma calha onde dezenas de outros ovos estavam enfileirados.

Os ovos eram colhidos por mãos humanas, selecionados por tamanho e limpeza, colocados em caixas e levados para a área de rotulagem e estoque, para em seguida seguirem para a distribuição, principalmente a supermercados.

O ovo dentro do pão era um desses que vi, gerado em meio à dor e à tortura, como o objetivo final da indústria que o desejou e não mediu esforços para obtê-lo em escala que fosse lucrativa, ao custo da submissão de seres que são os verdadeiros donos desses ovos e que nada receberam por eles além de dor e sofrimento. O ovo carregava dentro de si o registro invisível da dor dentre a qual foi gerado.

Uma parte de mim não se importava com a origem daquele ovo, mas a outra parte de mim estava incomodada somente por tê-lo por perto. Eu é que não vou comer isso.

Fui até o banheiro e recolhi papel higiênico suficiente para embrulhar aquilo que antes eu via comida e agora não mais. Juntei tudo com as mãos e depositei na lixeira do banheiro.

Retornei para o quarto e comecei a despir-me, enquanto olhava para o copo com o líquido amarelo dentro. Se eu for até a origem dessa bebida, certamente não a beberei também. Eu simplesmente sentia que no meio daquele líquido havia uma quantidade suficientemente nociva de conservantes, corantes, espessantes, acidulantes, agrotóxicos, aromatizantes e outras toxinas que eu não conseguia identificar. Aquilo certamente não me faria bem.

Tirei a roupa e fui até o banheiro lavar o rosto antes de deitar. Nesse país, devido às melhores condições de saneamento, era relativamente seguro beber água diretamente da torneira. Fiz uma cuia com as mãos e aproximei meu rosto da poça que se formara, já fazendo um biquinho com os lábios, pronta para sorver o líquido quando algo me pareceu extremamente estranho.  Essa água não é segura. Sais minerais, substâncias químicas para o combate de bactérias, que certamente atacariam também minhas células, e presença de alumínio na forma de flúor fariam muito mais comigo do que meramente hidratar.

Está tudo envenenado na superfície! E agora? De quê vou me alimentar?

Um ronco de meu estômago e eu sabia que precisava achar comida segura o quanto antes. Mas onde? No mato, claro! Algum lugar onde vegetais comestíveis tenham nascido e crescido sem a interferência do ser humano. O primeiro lugar que veio à minha mente foi a querida e misteriosa Floresta Amazônica, com tantas partes ainda inexploradas. Talvez o Bruno queira ir comigo.... Talvez não...  Melhor eu ir sozinha. Não sou quem ele preferiria que eu fosse e sim a tal de quem ele toma conta para verificar se é segura o suficiente para continuar circulando por aí.

Saí do banheiro e olhei para minha roupa largada no chão que agora não aparentava mais ser o suntuoso vestido de festa e sim o artefato funcional que haviam me dado na nave de Kuterat. Muita gentileza deles em substituir minhas vestes por essa aparentemente tão mais moderna e cheia de funcionalidades...  Muita gentileza, até.

Uma rápida vasculhada nas funcionalidades daquele artefato e logo percebi que eles tinham mais funções do que apenas me vestir elegantemente. Ele também era capaz de detectar minha localização em qualquer lugar dentro ou fora da Terra, nesta ou em outra dimensão. Não queriam me perder de vista outra vez.

Desgraçados.... Me tratando como presa.
Arranquei o lençol que envolvia o colchão e o enrolei em meu corpo, prendendo duas pontas com um nó atrás do meu pescoço.  Retirei uma faixa que prendia a cortina e a coloquei ao redor de minha cintura.  Eu parecia vestida para um baile à fantasia. Prendi meu cabelo em um coque fofo no topo da cabeça e estava pronta para ir jantar na floresta.

Eu estava verdadeiramente com fome.... Na nave eu simplesmente não comi os ratos e larvas que me foram oferecidos como refeição, preferindo comer apenas as folhas da salada e fazer uma peça decorativa com os demais ingredientes. Mais um ronco de meu estômago e agora eu não iria demorar mais até ter minha próxima refeição.  Imaginei a floresta densa e a temperatura morna e húmida que envolvia a vegetação, como uma estufa natural. Não demorou para que eu pudesse sentir a vibração da floresta como se ela fosse um ser único e harmônico, integrando fauna e flora. Eu sentia seu perfume e o frescor da água de um rio que corria no meio da mata. Quase sem que eu percebesse, meu corpo começou a vibrar, reduzindo-se à sua forma de energia mais básica. No segundo seguinte eu estava sobre uma pedra no meio do rio.

— Isso!

A noite era densa na floresta... praticamente impossível de se enxergar algo nela a partir de olhos humanos, mas eu conseguia ver tudo.
Hora de achar comida.

Pela primeira vez na minha história pessoal eu iria voltar aos primórdios da humanidade, buscando alimento da forma mais simples e óbvia possível: junto à mãe natureza.

Olhei ao redor, familiarizando-me com minha presença física naquele lugar. Senti o frescor de uma leve brisa que parecia acompanhar o fluxo das águas do rio. Esse rio era apenas o caminho de uma nascente que logo encontraria um rio maior.  Senti o ruído da floresta na forma de sons produzidos por animais de hábitos noturnos e pelo vento nas folhas.  Os sons eram variados e pareciam compor uma melodia intensa e harmoniosa. 

Saltei por sobre as pedras até que cheguei na beira do rio. Toquei os pés na terra e senti como se o chão vibrasse ao meu toque. A floresta está viva... da raiz à copa das árvores e em tudo que vive nela.

Expandi minha consciência, integrando-a à mata, sendo mais um dos seres a vibrar ali...

— Aceite minha vida na sua...

As palavras saíram quase que involuntariamente me meus lábios e eu senti como se a consciência da floresta envolvesse a minha, respondendo “sim” ao meu pedido. Não pude evitar sorrir e vibrar em gratidão ao que a floresta representava para mim e para o planeta como um todo.  A mata era o completo oposto àqueles homens maus que conheci, tanto aquele que intentava o mau contra Camille na cracolândia, quanto os que tentaram matar o Wenderson.  A floresta era a cura para a Terra, a geradora de vida, de ar puro e de alimento. Eu poderia viver ali para sempre, sem me preocupada com mais nada, a não ser desfrutar da paz e da harmonia que ela oferecia.

Com passos lentos, mas firmes, adentrei na mata, sem me preocupar com o lugar que eu pisaria, pois era como se meus pés fossem guiados para o melhor lugar para tocarem o solo, sem pontas ou troncos onde eu pudesse tropeçar. A floresta caminhava comigo.

Na mata densa eu via tudo ao mesmo tempo em que eu sentia tudo. Cada árvore tinha sua consciência e me recebiam com curiosidade e alegria. Eu era uma forma de vida que ela alegremente integrava à sua própria.

Uma suave e quase imperceptível brisa trouxe-me o doce aroma de jaca. A árvore estava à minha direita e eu não precisei andar muito para chegar até ela. Uma das grandes frutas, em uma parte mais alta do tronco já havia sido parcialmente devorada por macacos que agora dormiam nas partes mais altas dos galhos e percebendo minha presença como a de apenas mais um animal na mata. Enfiei minhas garras na casca grossa do grande fruto e a rasguei, exibindo os inúmeros gomos doces e suculentos.  Que delícia! Isso sim é um banquete.

Alguns minutos depois eu estava revestida de visgo de jaca da ponta dos dedos até o pulso. Apesar da lambança, o sabor do fruto fazia valer a pena. Com certeza eu não daria conta de comer uma jaca inteira e o restante da fruta ficaria ali exposta até que outro animal viesse concluir meu trabalho ou até que as sementes encontrassem seu lugar no chão para darem origem a outras árvores.

Eu estava muito grata por essa jaca, mas ainda me sentia ligeiramente eufórica como uma criança que ficou trancada na loja de doces. Eu tinha ainda algumas horas para explorar e saborear a floresta que me recebia com tanta hospitalidade. Toquei o tronco da jaqueira e vibrei em agradecimento ao que ela me havia ofertado. Gratidão é o alimento de amor que as plantas recebem pela parte delas que oferecem ao planeta para que este possa existir.  As plantas purificam o ar, possibilitam a formação de lençóis freáticos, produzem frutos, fornecem abrigo, protegem do sol escaldante e da chuva, suas raízes mantem o solo em seu lugar para que não assoreie e mate os rios.... As plantas são a cura, a vida e a subsistência da vida no planeta.

Eu não queria ir embora tão cedo.

Adentrei um pouco mais na floresta e me vi entre bananeiras, mangueiras e palmas. Uma hora depois e eu já não aguentava mais saborear a floresta e seus frutos. As mangas estavam deliciosas e o palmito que recheava as palmas estavam macios e suculentos.

Deitei sobre um amontoado de folhas entre duas grandes raízes que pareciam formar um abrigo natural e descansei ali mesmo, como se me sentisse abraçada pela mata escura, acalentada pelo som dos animais que pareciam não se cansar de cantar.... Pareciam cantar para mim.
E eu me senti adormecer envolta no aroma e nos sons da floresta.

===☆ continua ☆===

Oi, queridos!

Desculpe a demora em postar, mas estou dividida entre outros projetos que logo colocarei aqui também. Um deles é o Meus Múltiplos, meu primeiro romance com pegada psicológica. Quem achou o filme Fragmentado interessante vai gostar de Meus Múltiplos.

Quer dar uma olhada e me contar o que achou?

Beijos e até loguinho!

Nova Ordem (Livro #2)Onde histórias criam vida. Descubra agora