Capítulo 23

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Eu olhava para o Bruno e, confesso, não enxergava muita coisa. Era como se meus olhos se voltassem somente para o assunto em questão. O que eu diria ou perguntaria agora?

— Vamos caminhar lá fora, Lene.

Enquanto caminhávamos, eu sentia a consciência do Bruno nos envolver, criando um escudo que protegia nossa comunicação para que ela ficasse restrita somente a nós dois. Eu sabia que, provavelmente, o que ele me diria seria algo além do que eu poderia já ter imaginado e, por isso, eu sabia que nossa conversa seria basicamente telepática de agora em diante.

Bruno sabia que o assunto não era trivial. Ao menos não para mim, e se encarregou de fazer algo para interromper minha inércia.

Caminhamos por alguns minutos até um gramado enfeitado por árvores frondosas de grossos troncos que certamente estavam ali há muito tempo. Algumas delas sombreavam bancos e mesas de madeira, bem conservados, que deveriam ser usadas para refeições e leituras.

Bruno me conduziu até uma das mesas, aguardou até que eu estivesse acomodada e então se sentou em minha frente.

Ficamos um tempo em silêncio olhando ao redor. Era como se minha mente estivesse em algum tipo de modo de economia de energia onde apenas rotinas básicas funcionavam. Até que um de nós decidiu falar.

— Há quanto tempo esse upgrade está acontecendo?

Para saber mais sobre tanta informação que me estava sendo apresentada, assim, tão resumidamente, eu precisava ir por partes, tentando entender aos poucos.

— A primeira onda desse último upgrade aconteceu há pouco mais de cem anos. O projeto começou praticamente ao mesmo tempo em que a primeira arma de destruição em massa começou a ser desenvolvida. A Confederação sabia que, mais cedo ou mais tarde, ela acabaria sendo usada e queríamos estar prontos. Durante a primeira guerra mundial, em 1915, o gás mostarda foi utilizado massivamente e nesse mesmo ano, a primeira semente da primeira onda do upgrade foi inserida na Áustria. Antes disso, já antevendo a formação da linha de tempo que culminaria com o uso de tais armas, humanos aperfeiçoados foram implantados no leste europeu em 1856 como canais de inteligência da Confederação, fornecendo informações para construção de fontes de energia limpa e métodos produtivos pacíficos.

— Qual a diferença entre humanos aperfeiçoados e o upgrade dessa nova raça de humanos?

— Os humanos aperfeiçoados são embriões retirados de humanas que tem em seu DNA potencial genético a ser aproveitado. Esse potencial é então ampliado na medida do objetivo pretendido. É necessário que a energia do embrião seja benevolente, ou seja, que a tendência de sua personalidade seja boa e que, assim, o indivíduo possa escolher pelo melhor caminho em meio ao que lhe damos e ao que requeremos dele. Os novumanos são uma nova raça desenvolvida através da alteração de seu DNA de forma cumulativa entre gerações com o objetivo de libertar a humanidade da escravidão e reuni-la como uma só trama. Os propósitos são diferentes.

Então a Confederação também estava mexendo com a genética e a consciência humana há muito tempo, assim como outros deveriam estar também. Ao menos, ela tinha uma intenção positiva em relação à humanidade e ao restante do planeta.

— O que aconteceu com os humanos aperfeiçoados?

O Bruno parecia concentrado em um galho de uma das árvores frondosas que parecia dançar ao sabor do vento.

— Alguns foram mortos quando ainda crianças, outros foram ameaçados e tiveram que se esconder. Uns poucos criaram o que lhes foi dado pela Confederação através de donwloads mentais, mas nunca conseguiram que seus inventos se tornassem acessíveis ao mundo.  Um deles obteve algum êxito e se tornou conhecimento, mas não reconhecido. Usaram partes que consideraram financeiramente úteis de seus inventos, mas suas principais obras foram ocultadas da população como um todo, privando o planeta dos benefícios oferecidos pela Confederação. Nikola foi paciente e perseverante, pois sabia que essa era a sua missão.

Nikola... então o Bruno estava falando de Nikola Tesla, o inventor da corrente alternada de transmissão de energia, a quem devemos o uso de eletricidade que temos hoje. Bem que toda aquela genialidade e desprendimento material não poderiam ser naturais!

— O que aconteceu com ele?

— Ele morreu pobre e sem qualquer outro humano por perto. Mas a Confederação estava com ele, como sempre esteve.

— E, como os humanos aprimorados não deram certo para evitar a criação e uso de amas de destruição em massa, a Confederação começou a criar os novumanos...

Me parecia óbvio que, até para a Confederação, deixar o futuro dos humanos nas mãos dos humanos não era uma boa ideia...

Bruno me olhava com atenção agora, analisando cada uma de minhas reações frente ao que ele me dizia, parecendo avaliar como eu reagia. Pelo visto ele continuava me vigiando.

— Sim. O uso de tais armas deu legalidade para isso. Então, há cem anos, os trinta primeiros embriões foram implantados. Como estavam totalmente conscientes, foram tidos como loucos. Alguns morreram em manicômios, outros se fecharam em mundos criados por suas mentes e mantiveram-se calados por toda a sua vida. Alguns foram mortos... Não sobreviveram. Assim que isso foi percebido, poucos anos depois, reduzimos o nível de consciência dos embriões seguintes e iniciamos a segunda onda. Os novumanos da segunda onda tinham seu jeito de pensar e de responder a estímulos quase idênticos aos demais humanos de seu meio. Eles podiam agir diferentemente sem, contudo, perder a capacidade de se comunicar e, assim, puderam influenciar positivamente seu meio. Vimos que o caminho era esse e prosseguimos, amplificando o nível de despertamento a cada geração.

— E o que esses novumanos tem feito de diferença na Terra?

— Bom, a grande parte é incapaz de se alimentar do fruto do sofrimento de outros seres. Não comem os corpos desses seres, por exemplo. São voluntários capazes de entregar totalmente sua vida a um propósito de melhorar a vida de outros seres, sejam quais forem. Eles amam o planeta e tudo o que existe nele, como um único organismo vivo. Seu foco está em influenciar o meio de forma a que ele venha a se religar novamente.

— Deve ser difícil para eles serem assim num mundo como o que vivemos.

— O amor que eles cultivam por esse organismo vivo o faz superar tudo de ruim que vivenciam, pois eles enxergam um propósito maior em sua própria existência. Para eles é muito mais fácil contatar membros da Confederação, mesmo que não entendam isso. São confederados por merecimento.

Humanos aperfeiçoados, novumanos, reconstruir a trama da humanidade... Quantas coisas acontecendo no mundo, sem que ninguém saiba.

— O que os répteis acham desses projetos de humanos aperfeiçoados e novumanos?

— Você lembra de quando fiquei ausente por um tempo e você não podia me localizar?

Como não lembrar de um dos momentos mais marcantes da minha vida, quando o Bruno desapareceu logo assim que desapareci para dentro de uma fenda em uma rocha dentro de uma montanha no Canadá. Quando voltei, descobri que o Czanor seria uma espécie de tutor que os répteis haviam delegado para cuidar de mim no lugar do Bruno. Eu queria o Bruno, mas não tinha ideia de onde ele poderia estar... A lembrança do que ele havia me dito sobre o tal sacrifício de sangue ainda me fazia sentir o sangue ferver e o desejo por livrar a Terra dos répteis, mais forte ainda.

— Acho que nunca vou me esquecer disso. Você me disse, quando estávamos em Oshnair, que você e um grupo estavam numa operação de resgate. Que salvaram uma criança.

— Essa criança era um humano aperfeiçoado, com a missão de inspirar o bem e de despertar o sentido de consequência nas pessoas, fazendo com que possam despertar para a cadeia de causa e efeito.

— Você quer dizer que ele tem uma espécie de superpoder de convencer as pessoas?

— Inspirar... Sua vida seria um exemplo e sua eloquência e empatia, um dom dado pela Confederação. Quando eu digo empatia, eu digo a capacidade de interagir com a energia das pessoas, equilibrando-a e retirando-os da inércia induzida pelos répteis. Seria uma revolução silenciosa em um momento de inserção do último upgrade de novumanos.

— Não será mais? Pensei que vocês o haviam salvado.

— Salvamos, mas ele foi descoberto cedo demais e se tornou um alvo da Aliança Mantin, uma aliança entre os répteis, os matrea e os reticulanos.

Lembrei do Bruno me haver falado desse aliança quando estávamos nas cavernas, mas, pela primeira vez, ele me contava os nomes das raças que formavam essa aliança. Lembrei também da aparência dos híbridos com os quais lutei enquanto a força de Ishtar-Tiam prevalecia em mim. Agora era mais fácil entender o motivo da união dessas raças...

— Então se uniram para compartilhar tecnologia para um fim comum, mas em lugares diferentes.

— Basicamente isso. Mas não é apenas tecnologia o que eles trocam. Como você deve se lembrar, essas raças participam de tráfico intergaláctico de humanos.

A imagem dos humanos em cápsulas de recuperação e dos fetos dentro de grandes tubos de transporte na Lua Larsit, me trouxe a certeza de que esses seres seriam capazes de fazer qualquer coisa para atingir seus objetivos e de que os humanos, para eles, não passavam de mera mercadoria.

Senti começar a ebolir novamente dentro de mim algo que me incomodava e me alimentava a continuar com a missão que agora eu assumia junto aos répteis. Vestida com a máscara de Ewha, eu descobriria as fraquezas dos inimigos dos humanos. Eu precisava de mais informações.

— Ainda falta muito para concluir o projeto dos novumanos?

— Na verdade, não. Por todo o planeta existem humanos se conectando novamente à humanidade, assumindo seu papel original como raça cuidadora e se comunicando com a Confederação. Falta pouco e, por isso, o projeto está em risco. Os répteis sabem da presença deles e por isso já temos perdido alguns novumanos, especialmente crianças que são mais fáceis de capturar.

Mais crianças em risco por conta da ânsia de poder e dominação dos repteis... Um gosto amargo parecia subir na minha garganta enquanto eu imagina de que formas os repteis poderiam estar eliminando essas crianças.

— Não tente imaginar isso agora, Lene. Um passo de cada vez. Acalme-se.

Ele tinha razão. Eu precisava manter o controle, pois sem ele eu não conseguiria manter meu disfarce e continuar com a missão. Se eu falhar, colocarei todo os demais infiltrados em risco e isso eu não posso permitir.  Respirei fundo enquanto olhava para o balançar de das folhas ao vento.

Em um par de segundos eu já sentia o controle que eu exercia sobre mim mesma fazer ceder o gosto amargo que tentava se espalhar na minha boca. Hora de focar em outro aspecto do assunto que estamos tratando.

— Me fale sobre os outros projetos de hibridização que você mencionou.

— Primeiro entenda que todos esses projetos que mencionei às vezes se misturam. Alguns são parte de um mesmo projeto, enquanto outros acabam interferindo em diferentes projetos sem autorização e, por isso, são descontinuados. Eles podem tanto atender interesses da Confederação, quanto interesses de grupos específicos, mas todos precisam de autorização.

— Que confuso! Isso parece terra de ninguém! Qualquer um chega e faz o que quiser com os humanos? Absurdo! Aqui é nossa casa, nossa vida, oras!

Eu estava indignada! Quanta invasão de propriedade e, certamente, privacidade! Que abuso! Enquanto eu praticamente tinha uma crise de nervos e já pensava em consultar esse tal de Pacto Galáctico para tentar entrar com algum mandato de segurança contra esses projetos todos, o Bruno me olhava como se esperasse o melhor momento para continuar a falar.

— Brigitilene, pense em um laboratório que trabalhe com ratos manipulados geneticamente para algum propósito específico.

— Pensei.

— Os ratos são os donos do laboratório?

Minha expressão facial certamente respondia à pergunta do Bruno com um alto e mudo “não”.

— Seriam os donos de suas gaiolas, talvez?

— Não, mas...

— Eles só estão aqui porque um dia alguém de fora de suas realidades quis que eles estivessem onde estão. Você entende?

Lembrei-me do que o Bruno havia dito sobre o tratado de paz ser o próprio DNA dos humanos. Havia interesses políticos envolvendo a existência dos humanos aqui e, garantir que esse tratado de paz funcionasse como deveria era, certamente, de interesse das partes envolvidas.

— Então esses projetos são como contratos e aditamentos dentro do tratado de paz?

— Alguns dos projetos, sim. Outros, nem tanto.
Bruno me olhava tentando encontrar palavras que deixassem o assunto mais fácil de digerir. E eu ainda tentava encontrar sentido em tantos projetos de manipulação dos humanos.

— Me fale mais sobre os demais projetos.

— São distintos em métodos e objetivos. Muitos competem entre si e, por isso, é necessário mediação por parte da Confederação. Em alguns casos, os projetos concorrentes são interrompidos de forma não muito amigável. Mas acredito que você já teve muita informação por hoje. Que tal comermos algo? Se não me engano, você ainda deve estar interessada em aprender inglês.

Eu tinha que concordar como Bruno quanto ao volume de informação que eu recebera nesse pequeno espaço de tempo e não podia mentir quanto ao efeito que essas informações sobre meus nervos. Controle é essencial para que eu continue minha missão. Não posso desapontar a causa... muito menos colocá-la em risco.

— Claro.

Bruno se levantou e caminhou até minha direção de forma fluida, graciosa e muito rápida. Antes que eu pudesse fazer menção de levantar, ele já estava ao meu lado, estendendo a mão para me ajudar a levantar do banco de madeira. Enquanto eu olhava para o gesto tão gentil, lembrei que aquele ser ao meu lado, o mesmo colega de faculdade e de estágio, também era o dragão que veio primeiro para a Terra e que agora arriscava sua existência junto a uma causa que era maior do que nós juntos.

Apesar da ânsia por dominação dos répteis e dessa Aliança Mantin, eu sabia que ainda existia o bem nesse planeta e, até onde eu quero acreditar, ele é mais poderoso que a soma de toda a maldade no universo.

Nova Ordem (Livro #2)Onde histórias criam vida. Descubra agora