Capítulo 6

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Lentamente abri meus olhos e era como se eu não o tivesse feito, pois tudo era escuridão. Aos poucos percebi um leve e lento elevar da luminosidade quando me dei conta de onde estava.

Ao meu lado, Bruno me olhava com serenidade, enquanto um espectro baixo e levemente azulado me observava não muito longe. Eu estava acordando em meu recinto, deitada sobre a confortável cama de pedra.

Subitamente lembrei-me do que havia acontecido. A imagem e a sensação do peso dos joelhos de Jagnar sobre meus braços me fez saltar da cama. No segundo seguinte eu estava sentada e encarando o Bruno.

— O que aconteceu? Por que ele me impediu? — A raiva e frustação que eu havia sentido naquele momento voltavam agora com toda a força. Eu estava tão perto de começar a cumprir minha missão... A nossa missão!

— Nossa missão não inclui agir sozinhos. Somos um, como parte do todo. — Quem falava comigo agora era Masnik e não o Bruno. Apesar de saber que eram a mesma pessoa, eu podia dizer, pelo tom de sua voz, que ali estava o dragão.

— Eu não entendo. Nossa missão não é acabar com os Répteis? Não era isso que eu estava prestes a fazer?

— Você quase matou a todos nós e destruiu a causa pela qual temos dedicado nossas existências. — Ele me olhava com calma, mas firmeza.

Paralisei. Como assim? Eu não...

Eu não conseguia falar nada. Subitamente era como se um gatilho tivesse sido disparado dentro de mim. Eu poderia ter destruído a todos nós e não ao lagarto.

Memórias das diferentes realidades e possibilidades que o Bruno me mostrou logo antes de chegarmos na caverna pela primeira vez, me fizeram entender o que Masnik queria me dizer agora.

— Eu poderia ter alertado a todos sobre a presença Shey e ter mudado toada a história até agora! — Minha voz estava tão baixa que eu mesma quase não a ouvi. Que idiota. Tive vontade de chorar e de me esconder. Como quero ser útil para alguma coisa se eu mesma represento um risco para todos?

Senti meus olhos e rosto arderem violentamente, de vergonha e de raiva da imbecil que eu sou.

Bruno, ou Masnik, me olhava impassível, como da vez em que ele me curava na caverna de pedrinhas luminosas. Ele me acessava profundamente.

— Se os Répteis não confiarem em mim, eu morrerei e não mais serei reconduzido por eles para outro corpo híbrido. Eu preciso deles para continuar lutando contra eles.

Agora o ardor em meu rosto foi substituído por um frio que parecia surgir de dentro do meu peito e se espalhar por todo o meu corpo. Eu não poderia arriscar a vida do Bruno.

— Lutamos para libertar todo um planeta e uma raça da opressão da Aliança Mantin. Você não decide coisa alguma sozinha. Você aprende, você desperta e você serve. Só assim você será parte do todo e só assim poderemos protegê-la. Você entende? — A dureza nas palavras de Masnik deixava claro a minha situação e qual deveria ser o meu foco.

Eu me sentia uma criança inconsequente... Eu queria muito castigar a mim mesma. Eu sequer me achava digna de olhar para o Bruno agora. Diante de mim estava uma criatura mais antiga do que eu poderia imaginar e eu era apenas uma recém-chegada que achava que já sabia o suficiente.

— Desculpa... — Eu disse, quase inaudível.
Eu não precisava olhar para ele para saber que ele continuava me encarando como o dragão encararia.

— Está na hora de você saber o que está em risco e o que há de maior pelo que lutarmos. — Levantando-se rapidamente, segurou-me pelo braço e me colocou de pé. — Está na hora de abrirmos aquela caixa.

Dando um passo diante de mim, aproximou-se tocando sua testa na minha e posicionando sua boca diante da minha, sem, contudo, tocar meus lábios. Foi como se meu coração parasse de bater e meu corpo todo paralisasse.

O que se seguiu foi uma onda de energia que fazia os ossos do meu crânio e dentes vibrarem. Era uma explosão silenciosa que parecia romper cada parte escondida de meu cérebro. E então tudo aquilo que Bruno havia me mostrado e guardado em minha cabeça veio à minha consciência de uma única vez. E então, eu vi. E quase não pude acreditar.

Eram containers metálicos imensos revestidos de uma espuma fina e branca presa pelo que pareciam tachas metálicas prateadas e grandes. E dentro desses containers haviam macas também metálicas, sem colchão, posicionadas na vertical e presas firmemente no teto por cabos de aço. Em cada maca havia uma pessoa presa em correias e fivelas. Essas pessoas tinham entre oito e quinze anos de idade, homens e mulheres... crianças. Todos precariamente vestidos com o que parecia um macacão fino de malha bege colado ao corpo. Eles estavam acordados, mas imóveis, inertes... sedados por uma frequência quase inaudível que ressoava dentro daquele compartimento e envolvia a todos, retirando deles sua vontade, suas emoções, seu entendimento.

Eu via tudo de uma perspectiva astral. Mais uma vez eram as memórias de Masnik que eu assistia como se fossem minhas. Afastando-me, vi que em cada uma daquelas caixas de metal havia cento e vinte pessoas. Afastando-me mais ainda, vi que havia cento e oitenta caixas como aquela, posicionadas uma ao lado da outra. Os mais de vinte mil humanos estavam prontos para serem transportados.

Cada um deles era gado, ratos de laboratório, objetos de uso e experimentação, comida, escravos. Produtos que seriam trocados em negociações sórdidas feita pelos Répteis. Eu sabia disso através das memórias que eu experimentava.

Senti meu coração se encher de amor e remorso. Eram os sentimentos do Bruno. Mas pelo que ele sentia remorso?

E então, no segundo seguinte, não estávamos mais ali e sim dentro de uma nave gigantesca, uma máquina biológica e consciente que prestava voluntariamente seu serviço a outros. Tão logo entramos, foi como se o que havia sido visto por Masnik fosse transferido para a consciência da nave que conectava a consciência de todos dentro dela. E então, todos viam o que Masnik havia visto, e todos se compareceram daqueles humanos.

E então, os cerca de duzentos seres que ali estavam posicionaram dentro daquela nave, colocando-se de pé diante de grandes painéis com símbolos encrustados ou sentando em poltronas que pareciam cadeiras de consultório odontológico. Eu sabia que ali havia compartimentos médicos onde outros seres aguardavam pacientemente a eventual chegada de humanos-gado desorientados.

E então... Para minha total estranheza, os seres ficaram imóveis e em silêncio. Como assim?
Faltava algo...E eles desejavam que esse algo chegasse logo. E então, uma súbita explosão se fez sentir nas consciências de cada um deles. E eu senti excitação se espalhar por todos eles e instantaneamente uma aura azulada envolveu a cada um que se colocou imediatamente em ação.

Dezenas deles desaparecem em um clarão e entre eles, Masnik também desapareceu. E eu desapareci com ele, levada por suas memórias.
Logo éramos em número de dez e estávamos de volta aos containers. Assim que entramos, já com a mão no cinto de utilidades, acionamos algo que fez com que a aura azul que nos envolvia envolvesse também a todos os humanos aprisionados. E então, todos nós havíamos desaparecido dali para reaparecer dentro dos compartimentos de saúde. Teletransportados!

Tudo foi muito rápido, assim como as fortes vibrações que se seguiram na nave. Estávamos sendo atacados.

Enquanto os humanos eram colocados em campos de energia que os mantinham suspensos no ar em tratamento imediato, nos preparávamos para o que viria. Agora que o ataque inimigo se iniciara, adquirimos legalidade para defender a nós e aos humanos que agora trazíamos conosco.

Algumas dezenas de pequenas naves partiram em alta velocidade de dentro de onde estávamos e seguiram em direção à nave onde ainda haviam outros humanos dentro. Sua missão era retardar o inimigo para o resgate corpo a corpo. Mas antes que pudéssemos fazer qualquer coisa, a nave inimiga retrocedeu, mas não sem antes permitir que víssemos uma outra nave-container, tão grande quanto aquela, adentrar um buraco escuro circundado por uma espiral de luz, que logo desapareceu da nossa visão. Eles haviam escapado em um portal, levando, provavelmente, outros vinte mil humanos com eles.

Em alguns, o choque era nítido, principalmente no humano que observava tudo e que não havia saído da nave. Seu rosto estava vermelho e sua fisionomia se contorcia involuntariamente. Sua dor era percebida pelos seres na nave e, em Masnik, eu sabia que ele havia sacrificado sua vida terrestre para salvar todos aqueles humano, o que não havia acontecido desta vez.
Esse era o mesmo humano que eu havia visto na grande sala de desembarque e agora eu entendia o porquê de sua frustração e tristeza.

Uma nova vibração me fez despertar das memórias de Masnik e de volta para a minha realidade na caverna e para encarar novamente o dragão. Os sentimentos quanto ao que aquilo significava me invadiram completamente: a frustração, a dor, a raiva e a tristeza vinham em ondas crescentes que formavam um nó em meu peito. Crianças eram negociadas como gado... E o que aconteceria com elas era óbvio e doloroso.

Eu tentava falar algo, mas as palavras não encontravam espaço para sair de minha boca.
Os sentimentos que me inundavam agora eram meus, não mais os de Masnik ou do humano que eu vira sofrendo na nave. E o que eu sentia era intenso demais.

— A causa é maior e implica muito mais do que você imagina, Lene. Confie nos seus irmãos de causa e junte-se verdadeiramente a nós. — Sua voz carregava os sentimentos que ele havia revivido ao compartilhar suas memórias comigo.

Não havia espaço para egoísmo na causa. Não havia espaço para a palavra “eu”. Apenas o “nós” contava.

Um humano havia sacrificado sua vida na Terra por um grupo de pessoas. Quem era eu para não me sacrificar também? Era tudo muito claro agora.

O rosto contorcido do humano saltava em minha memória como um alarme que tocava por algum motivo. Mas havia muita informação, coisas mais importantes que a curiosidade sobre o humano.

— Qual o destino daqueles humanos? — Perguntei, voltando minha atenção para algo que no fundo eu não queria acreditar e, perguntar me razia a esperança de que a resposta fosse algo diferente.

— Fornecimento de material genético e posterior abate para alimento, entre outros fins. — Sua voz era fria e objetiva.

— Matarão a todos! Mas são crianças! — Eu gritava na frente dele como e isso fosse fazer alguma diferença.

— Não matarão todos. Alguns serão usados como trabalhadores em atividades que requerem pouca força. — Masnik não me contava tudo, mas eu sabia que essas crianças também seriam usadas como brinquedos sexuais.

— São apenas crianças... — Minha voz se tornara miúda, fraca, impotente.

— Sim. São mais fáceis de adestrar, mais puras em material genético e mais... macias e saborosas.

— Chega! — Eu não queria ouvir mais. Eu queria salvar a todas. E para isso eu faria o que fosse preciso.

Masnik me olhava, como se aguardasse eu digerir toda a informação e lidasse com minha emoção.

— O que era aquele buraco escuro por onde a nave entrou? Se soubéssemos o que era e para onde iam, poderíamos simplesmente ir atrás deles. — Eu perguntava como se as respostas nos possibilitassem traçar algum plano de resgate.

— Aquilo é uma trilha artificial que corta o espaço e o tempo, como um atalho para chegar a um lugar.

— Poderíamos ter ido atrás deles da mesma forma! — Claro que poderíamos!

— Para chegarmos ao mesmo lugar que eles, teríamos que ter entrado com eles no buraco ou rastreado sua formação antes que surgisse. De qualquer forma, é certo que nos depararíamos com uma recepção agressiva e morreríamos.

— Como vamos resgatá-los agora?

— Não podemos. Somos poucos e pouco equipados. Somente a Federação tem poderio para isso e ela trabalha diferente de nós.

— Então vamos pedir ajuda para que nós mesmos os resgatemos.

— A Federação já nos ajuda. Mas não é assim que ela trabalha. Tivemos nossa oportunidade e falhamos. — Pela primeira vez eu pude sentir transparecer a frustração que Masnik tentava conter.

— Onde estão as crianças e jovens que foram resgatados?

— Estão seguros na lua Larsit, na constelação de Lyra. Estão sendo tratados para adquirem sua pessoalidade enquanto indivíduos e seguirem o curso de suas próprias vidas. Provavelmente serão absorvidos pela Federação.

— E suas famílias?

— Eles não têm família. Foram criados artificialmente. Fêmeas os geraram por três meses, quando foram transferidos para cápsulas que aceleraram sua formação. Assim, as gestações são mais curtas e em pouco mais de quatro meses já podem viver no ambiente externo.

Criados como gado. Produzidos para o fim de exploração. Tive vontade de chorar... É tudo muito pior do que eu poderia imaginar.

— Por que vocês não agiram imediatamente quando viram os humanos? Por que ficaram simplesmente parados, esperando? O que esperavam? — Agora era eu quem deveria me controlar.

— Legalidade. Esperávamos que a Federação nos informasse que tínhamos a legalidade para o resgate.

— Legalidade? O que poderia ser mais justo e legal do que salvar aquelas pessoas oprimidas? — Eu falava mais alto do que gostaria. O dragão não tinha culpa e nitidamente sofria com o que aconteceu.

— A lei que rege as ações da Federação se fundamenta no livre arbítrio das espécies. Era preciso que alguém dentre eles quisesse que fossem salvas, que intercedessem por eles. John demorou um pouco para entender a importância da intercessão, mas ele fez isso a tempo. Você em breve saberá mais e entenderá.

— Como assim, a importância da intercessão? O que isso tinha a ver com o resgate e quem é John?

— O humano, um membro do povo que sofria, precisava pedir por eles, interceder a favor dos seus, como o próximo de que eles precisavam. Você entende?

— Você quer dizer que alguém tinha quer orar por aquelas crianças?

— Sim. Intercessão para dar legalidade e mover a energia que move o universo.

Eu não queria mais voltar a esse assunto. Tudo parecia ficar ainda mais confuso. Certamente eu faria o que fosse necessário para transpor essa curva de aprendizagem, fosse ela do tamanho que fosse.

Imagens do homem deprimido na nave ainda preenchiam minha mente, como um alarme que não parava de soar ao fundo.

— Quem é o humano?

— Seu nome é John Bernard Vital. Ele é seu pai.

Nova Ordem (Livro #2)Onde histórias criam vida. Descubra agora