Capítulo 25

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Bruno ficou com o objeto mas mãos, me olhando solenemente, enquanto meu olhar passeava entre o objeto e o olhar dele, minhas mãos imóveis. Como eu poderia tocar naquilo? Esse era, então, a legalidade dada, lá no início disso tudo, para que chegássemos no ponto do que estávamos agora. E o próprio Bruno, ou Masnik, havia assinado isso!

— Você está de brincadeira, se acha que vou colocar minha mão nesse objeto maldito.

— Não é apenas um objeto e não é maldito. Ele significou muito para muitas pessoas.

— Olha, Bruno, entendo que você deva ter memórias e sentimentos positivamente significativos do relação a esse... esse tratado, mas eu não tenho simpatia alguma para o que ele representa para a humanidade hoje, então, não vou colocar minha mão nisso.

O Bruno continuava olhando para mim com olhar sereno, como se estivesse olhando para uma parede e não para mim. Lentamente, desviou seu olhar do meu para o objeto e, com cuidado, o colocou de volta na prateleira.

— Quando você estiver pronta, então...

Pronta para quebrar essa coisa.

— Não quero mais fazer turismo nessa biblioteca. Tenho um idioma para aprender.

Virei as costas para o Bruno e o deixei para trás, enquanto buscava a saída desse lugar. Atravessei a porta de energia sem me preocupar muito se a nano tecnologia integrada a mim me permitiria atravessar ou se me pulverizaria instantaneamente.

Assim que cruzei a porta me dei conta de que não sabia para onde ir. Parei em meio ao hall que precedia a porta de vidro e decidi os olhos, deixando minha consciência vasculhar o ambiente. Como tudo parecia mais fácil agora. Era como se ou ficasse cada vez mais forte enquanto sentia o despertar de Ewha em mim.  Não demorou para que eu simplesmente conhecesse o mapa do lugar. Eu poderia ir para qualquer lugar. Mas eu não poderia deixar o Bruno para trás; não poderia descontar nele o que eu sentia em relação ao tal tratado de dominação, mesmo que o mesmo representante algo positivo para ele. Não deveria ser assim.
Esperei em pé no lugar onde eu estava até que ele se aproximasse, o que não demorou muito. Ele estava sereno como antes e eu me sentia como uma criança pirracenta que acabara de dar um chilique. Mas ele não tinha o direito de me mostrar algo tão ofensivo de uma maneira tão solene. Ele tem a parte dele de merecimento em minha reação.

— Você conseguiu o material e infraestrutura para eu aprender o idioma daqui?

— Já está tudo pronto lhe aguardando.

— Ótimo. Então me leve até lá.

Ele me devia desculpas, oras.

— Vamos até o piso superior onde fazemos o estágio de intercâmbio. Pedi para prepararem a sala menor de reuniões, que é mais confortável e reservada.

Assenti com a cabeça enquanto caminhávamos em direção aos elevadores. Ao chamar o elevador, a porta de um dos quatro que ali haviam, o mesmo elevador luxuoso que nos trouxe, abriu sua população suavemente. Dessa vez, o Bruno apertou o botão referente ao décimo oitavo andar. Sem códigos secretos dessa vez.

— É relevante que saiba o significado histórico daquele tratado, Lene.

Eu podia sentir que o Bruno queria que eu entendesse algo além da minha percepção inicial sobre o tratado. Para ele aquele objeto significava muito mais que uma sentença de morte para os humanos. Ele estava sendo atencioso e sereno diante de minha reação, como se ela fosse algo já esperando. Seria eu assim tão previsível?

— Assim que eu estiver dominando o idioma local, estarei disponível para apreciar aquele artefato que você chama de tratado.

Não me submeterei a algo... criminoso.

Bruno assentiu com a cabeça e parecia estar satisfeito com minha mudança de atitude. E eu começava a ficar curiosa em relação a isso. Eu também não poderia desconsiderar que o objetivo maior de eu estar em meio ao mundo réptil era o de trabalhar para a causa e contribuir para o fim dessa dominação e, para isso, eu precisava de informações, eu precisava aprender o máximo que eu pudesse sobre esse mundo.

Alguns instantes depois a porta se abria novamente, desse vez, para um corredor de carpete que parecia recém colocado. Uma intrincada corda dourada contornava o tapete na parte em que este tocava a parede a qual era em um branco impecável. As paredes eram adornadas com belos e grandes quadros que pareciam antigos e caros. Alguns passos sobre o tal carpete que parecia absorver todo o impacto e ruído de nossos pés, e estávamos de frente para uma bela porta de madeira com entalhes esculpidos que a emolduravam graciosamente. O Bruno colocou sua não sobre a maçaneta que parecia banhada em outro envelhecido e a abriu, colocando-se de lado e dando espaço para que eu entrasse.

O interior da sala de reuniões era não muito grande, o suficiente para acolher confortavelmente umas seis pessoas. Não havia projetor, ou qualquer outro objeto normalmente usado em reuniões de trabalho, a não ser uma mesa de madeira brilhante e enormes poltronas acolchoadas de couro. Sobre a mesa repousava um tablet, dois livros uma caneta e um bloco de anotações os quais eu sabia que eram para meus estudos da língua inglesa.

— Esta é sua sala pelo tempo que precisar. Ninguém virá te incomodar. Se precisar de algo, é só me avisar que eu peço para te trazerem aqui.

O Bruno estava muito formal para o meu gosto. É como se o simples fato de estarmos nesse lugar o deixasse tenso. Se eu não o conhecesse e se não pudesse senti-lo, talvez eu não notasse.

— Está tudo bem?

— Sim. Apenas estão me chamando para uma pequena reunião. Estarei aqui por perto. Qualquer coisa que precisar, é só me chamar.

Lembrei que aqui ele trabalha para os Répteis. Estávamos em uma das instalações dele, um lugar que era território réptil. Ser precaução verifiquei se meu isolamento básico estava de pé, garantindo que ninguém sem permissão entrasse em minha consciência. Hora de me concentrar e fazer meu trabalho. Diante de mim estava meu companheiro de causa e é assim que eu devo vê-lo, não como um colega estagiário, nem o dragão que, de certa forma, começou isso tudo que estávamos tentando resolver agora. Olhar para ele e enxergar o que ele representava me parecia de suma importância para que eu pudesse cumprir bem minha missão. Eu não poderia deixar de confiar nele. Além disso, eu não poderia ter pensamentos menos importantes como o eventual interesse nele por mim, ou... meu por ele.

— Obrigada, Bruno. Se precisar, eu te chamo.

Ao vê-lo acenar com a cabeça e lentamente fechar a porta entre nós, sem, contudo, desviar seus olhos de mim, até que a população nos separou.

Respirei profundamente e me dirigi até o lado da mesa onde estava o material separado para meus estudos.  Sentei e senti como se a enorme poltrona me abraçasse carinhosamente. Olhei para os livros: um dicionário e uma gramática, exatamente o que eu havia pedido. Liguei o tablet que pareceu acender instantaneamente. Nele havia instalados alguns aplicativos: um navegador de internet, um dicionário onde eu poderia ouvir a pronúncia de palavras em inglês e um serviço de filmes e séries.  A caneta era pesada e tinha a já famosa estrela branca na ponta. Eu certamente ficaria com ela para mim.

Olhei a hora indicada no tablet: 2pm. Eram apenas duas horas da tarde e nem parecia que eu já havia aprendido tanto hoje, de programas de hibridização a artefatos jurídicos alienígenas de milhares de anos atrás. A cada momento eu me dava mais conta de que havia uma infinidade de informações para tomar conhecimento. E, no momento, a missão é aprender Inglês.

Eu sabia que minha memória muito acima da média, modestamente falando, seria crucial para que eu pudesse atingir esse objetivo, e eu não me esforçarei menos por isso.

Abri a primeira página do dicionário e coloquei a caneta cara marcado a página. Cliquei sobre o ícone do aplicativo de filmes e séries e escolhi uma série que se chamava carbono alterado. Achei o nome curioso e me senti impelida a começar por ela. Apesar de estar em inglês, meu interesse era o de mergulhar meus ouvidos no idioma, seu ritmo e pronúncia. Não demorou muito para que as palavras começassem a fluir dentro da pequena sala. Aumentei o volume, respirei fundo é observei que, para produzir o ritmo e pronúncia do idioma, eu teria que mudar a postura de minha língua e mesmo e minha garganta. Comecei a imitar os sons que ouvia, mesmo sem entender palavra.

Abri novamente o dicionário, prendendo a caneta entre meus dedos anular e médio, enquanto usará o polegar e indicador para trocar as páginas. Eu repetia cada palavra usando a nova postura de minha língua, lábios e garganta. Na medida em que as dizia do voz alta, eu usava minha memória visual e auditiva, enquanto formata registros na parte de meu cérebro usada para verbalizar. A cada segundo ou dois eu aprendia uma nova palavra e, aos poucos, já as podia reconhecer ditas no seriado exibido no tablet.

Um par de horas depois e eu podia sentir minha boca seca. Olhei ao redor em busca de algo para beber. Nada. Lembrei que eu poderia solicitar ao Bruno que me trouxesse algo. Mas bem que uma esticada nas pernas seria útil. Está aí algo para pensar com carinho. Sorri e resolvi voltar aos estudos mais um pouco. Marquei a página do dicionário que já tinha mais de um terço das páginas percorridas e abri a gramática da língua inglesa. Nouns, adjectives, phrasal verbs, verbal tenses, sentences... Olhei casa capítulo da gramática atenta à forma como cada frase deveria ser estruturada. Memorizei verbos e suas conjugações, perdendo-me no tempo e sendo trazida de volta após um audível ronco no meu estômago. Verifiquei o relógio novamente: 6pm. Já era mais de seis horas da noite e eu havia devorado a gramática. Faltava apenas um rojão mais de metade do dicionário para eu concluir a absorção de informações contidas nos dois livros. O seriado continuava a ser exibido, um atrás do outro, automaticamente, e, agora, eu já conseguia entender boa parte do que era dito. O que eu não havia aprendido através do dicionário, eu poderia inferir intuitivamente na medida em que os diálogos aconteciam. Era uma série sobre recondução de consciência através do uso de tecnologia. Talvez os répteis usassem algo assim para trazer o Bruno de volta e, quem sabe, transformar pessoas de bem do avatares, marionetes de sua vontade criminosa.

Mais um ronco. A fome aumentava, mas eu não sairia antes de cumprir essa missão.

Acelerei o ritmo na leitura do dicionário, concentrando-me em cada nova palavra, enquanto, simultaneamente, a buscava em meio às palavras que eu ouvia e que já havia deixado de ser estranhas. Eu agora entendia cada palavra dita pelos personagens da série. Um sorriso largo encheu ou rosto. Agora eu precisava falar inglês além de apenas entender o que ouvia.

Talvez ainda tenha um pouco de comida limpa para mim no restaurante.

Desliguei o tablet e fechei os livros empilhando-os carinhosamente sobre a mesa. A caneta eu preferi guardar comigo como lembrança desse momento de conquista e porque ela era linda também.

Olhando ao redor, percebi que apenas uma tênue luminosidade emanava de um abajur do um canto da sala. O escritório já devia estar vazio. Já devem ser quase oito horas da noite.

Abri a porta lentamente e olhei o corredor, de um lado e de outro. Silêncio. Será que me esqueceram aqui?  Sai cautelosamente, acessando o mapa mental daquele lugar, o qual me dava a certeza de conhecer cada parte, podendo encontrar qualquer lugar que eu quisesse ir, bastando eu pensar onde para então ser movida por minha consciência, atraída como que por um imã.

Mais um ronco de meu estômago e eu não tinha mais como adiar minha busca por comida. Eu não precisava acessar mapa mental algum para saber como cidadãos ao restaurante.

Sem querer fazer barulho do meio ao silêncio, fechei a porta atrás de mim e caminhei pelo corredor até o elevador. Decidi os olhos para acessar em minha memória o momento em que o Bruno digitou o tal código até o restaurante. Sequência de botões pressionados passou então diante de meus olhos e eu só precisei repeti-la no painel. No segundo seguinte à porta se fechou e a caixa de metal se moveu. Como que antecipando a possível refeição, meu estômago roncou em alto e bom som. Ainda bem que só tem eu nesse elevador.

Um quase inaudível sinal sonoro indicou que eu havia chegado ao andar do restaurante. A luminosidade no hall era pouca, mas aconchegante, criando um ar de mistério que, de certa forma, atiçava minha curiosidade.

Caminhei cautelosamente até o restaurante, afinal, eu não poderia esquecer onde eu estava e, esse assunto de ser a mãe da nova raça, não me fazia sentir mais segura agora, aqui, sozinha.

Não precisei caminha muito para avistar o restaurante que estava iluminado por dentro, sinalizando que estava aberto e funcionando. O garçom de mais cedo estava na porta, como se esperasse por mim. Isso me deixou desconfortável, mas não o suficiente para esquecer o quanto eu estava faminta.

Com um aceno de cabeça o homem mais baixo do que eu e de fisionomia pálida e comum, inclinou-se e gesticulou com o braço, convidando-me a entrar. O cheiro de arroz com tomate e manjericão me atraía para dentro como a água atrai o peixe.

Com passos largos me dirigi até a mesa que mais cedo havia sido ocupada pelo Bruno e por mim. Ela estava iluminada também com uma luz suave e relaxante. Sobre a mesa, um antepasto e torradas já me aguardavam. Quanta eficiência.
Eu ainda olhava para a mesa, sorvendo o aroma da caponata de berinjela, dos patês de tomate seco e grão de bico, quando senti a cadeira sendo retirada para que eu sentasse. Estranhamente senti, enquanto sentava, uma mão firme e grande segurar meus ombros como se guiasse meu corpo até o assento. O toque da mão do garçom me fez estremecer por dentro, em uma onda que percorreu meu corpo, do estômago até meu ventre. Esse não é o garçom.

Olhei para trás lentamente, já imaginando com quem eu me depararia. Os grandes e semicerrados olhos azuis da cor do mar do Caribe olhavam os meus como se quisessem entrar na minha alma. Erro era Czanor.

— O que você está fazendo aqui?

— Esperando você, pequena. Ansiosamente.

Sua voz rouca parecia conter algo mais que ansiedade por ter uma companhia para o jantar.

— Você também vai jantar agora?

Eu perguntava o óbvio em um tom mais agudo e alto do que gostaria. Seu olhar, fixo no meu, não deixava margem para que eu imaginasse que ele me deixaria comer sozinha.

— Sim. Contigo, se você não se importar e eu espero que não se importe.

Discutir agora com Czanor para que me deixasse sozinha, certamente estragaria meu apetite ou minha digestão. Talvez ambos. Olhei para os antepastos sobre a mesa, tendo a certeza de que eu investiria meu tempo na comida e não em Czanor. Ajustei-me na cadeira, sinalizando que não me importava se ele ficaria ou não. Mas era certo que a sua presença não me permitiria comer em paz, pois meu corpo, certamente, teria que lutar entre comer e resistir a sua presença. E ele sabia disso.

Eu senti seu corpo se mover ao redor da mesa, como se eu sentisse um campo magnético percorrer o espaço ao meu redor. Era como se Czanor me puxasse para si. Eu não precisava olhar para saber o momento exato em que ele se sentou. Levantei os olhos para dar de cara com o par de olhos azuis travados em mim. Ele sabia o que me acusava e gostava disso. Eu não tinha dúvidas de que hoje ele tentaria concluir o que não conseguiu comigo da última vez que nos vimos na festa do hotel em minha primeira noite nesse país.

— Quero que você relaxe, pequena. Quero apenas comer em boa companhia.

Sei qual é o prato principal que passa na cabeça desse menino.

— Eu só quero comer em paz.

— Excelente. Somos dois, então.

Com um daqueles sorrisos meio de lado que já lhe eram típicos, virou levemente a cabeça para o lado, enquanto falava telepaticamente com o garçom. Diferentemente de mim, Czanor me dava acesso a sua consciência. Não acesso irrestrito, mas o suficiente para capturar intenções e sentimentos que ele me permitisse acessar. Ele, apesar de manter segredo sobre seus pensamentos, me permitia observá-los pela fresta que me oferecia.

===☆ continua ☆===

Nova Ordem (Livro #2)Onde histórias criam vida. Descubra agora