Capítulo 21

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O café da manhã, ou breakfast, como dizem aqui, foi previsível. Bruno comeu ovos com bacon e um suco de laranja enquanto eu comi apenas uma salada de frutas. Logo em seguida, pegamos minha bolsa no meu quarto e nos dirigimos a um carro com motorista que já nos aguardava diante do hotel.

O carro era grande, preto e lindo. O cheiro de coisa nova, que eu conseguia sentir à distância, o fazia parecer que havia saído direto da fábrica antes de vir nos encontrar.

O dia estava lindo, ensolarado e algumas aves podiam ser vistas voando aqui e acolá. Assim que saímos hall afora,  o Bruno colocou um par de óculos escuros caros que, juntamente ao terno cinza escuro e camisa branca sem gravata perfeitamente alinhados que ele vestia,  o fazia parecer um modelo em mais um dia de trabalho glamoroso. Eu ainda admirava sua beleza, imaginando que, talvez, ela enquanto holograma, também tivesse sido pensada e manipulada geneticamente. Ainda em meus devaneios, mal percebi quando ele abriu a porta do carro para mim,  ao mesmo tempo em que exibia os famosos furinhos. Suspirei desfrutando de todo o luxo que eu nunca havia imaginado que pudesse experimentar algum dia.

Com um sorriso, entrei no carro com o máximo de graça que pude reunir, na tentativa de me encaixar nesse mundo tão diferente do qual eu havia saído.

Assim que sentei, o Bruno fechou a porta e se dirigiu para o outro lado do carro, sentando ao meu lado no banco de trás. Ele não precisou dizer nada para que o motorista desse partida no carro e seguisse, seja lá para onde.

— Então, nada de ônibus para mim aqui?

— Absolutamente não, Lene. Teremos um motorista à disposição sempre que quisermos.
Ele me lançou um rápido sorriso como se não achasse muita graça no assunto.

— Bom, eu não tenho do que me queixar.

É difícil esquecer como as viagens em transporte público podem ser desconfortáveis às vezes.
Eu estava intrigada com o fato do Bruno se sentir confortável em comer o que eu não me sinto mais nem um pouco confortável em ingerir.

— Você sabe que seu café da manhã foi tóxico, não sabe?

— Sim. Os pedaços de bacon e ovos carregavam dor e angústia. O suco tinha uma boa quantidade de substâncias tóxicas nocivas.

— Você não se importa? Quer dizer, aquilo é um veneno, não é?

— Especialmente para os humanos. Os componentes energéticos densos no animal sacrificado altera o centro de geração de energia humana, criando uma espécie de invólucro ao redor dele, tirando do humano a capacidade da empatia, um sentido que lhe é natural. Sem empatia, ele se desconecta de outras formas de vida, se isolando do mundo real e criando um outro à parte, onde só ele importa. Isso acarreta ações egoístas e reproduz a energia contida na carne do animal, acarretando reações violentas e mais isolamento.

Era fácil imaginar que o consumo de animais é capaz de trazer muito mais danos que o mero aumento das taxas de colesterol no sangue das pessoas.

— Mas, você come isso mesmo assim?

— Eu não sou humano. Além disso, preciso manter as aparências. Como eu disse, preciso dos répteis para estar na Terra. Sem eles, não sou reconduzido.

O Bruno completou a frase telepaticamente. Isso, certamente, não era algo para dizer em voz alta por aí. Só em pensar nos perigos que o Bruno corre caso venha a ser descoberto, sinto calafrios pela espinha.

— Mas porque os humanos comem isso? Se souberem, terão chance de escolher melhor o que comem e isso beneficiará todo o planeta.
Imaginei a quantidade de florestas que não seriam mais queimadas para virar pasto, nas vidas poupadas, nas guerras que não mais existiriam, na saúde preservada, na violência evitada...

— Concordo. Mas esse não é o plano. O plano é fazer com que as fibras no tecido se rompam, puindo o todo e fazendo com que o tecido fique fraco e rasgue.

— Que tecido?

Estamos falando de roupa, agora?

— Imagine os humanos, assim como cada ser vivo da Terra, como tramas de um tecido vivo e interligado, constituindo uma coisa só, unidos e compartilhando um mesmo propósito, interagindo em pensamentos e sentimentos. Se essas tramas se separam do todo, o que acontece?

Essa pergunta era fácil de responder.

— O tecido rasga. O todo deixa de existir.

— E a dominação acontece muito mais facilmente.

O Bruno olhava para frente agora, como se estivesse envolto em pensamentos, como se houvesse muito mais por trás do que ele dizia. Como se uma história muito mais detalhada estivesse se desdobrando em sua cabeça.

Percebi que os répteis estão em tudo na superfície, como um vírus que infecta cada célula do hospedeiro. É como se cada indústria estivesse sob a influência deles, envenenando gradativamente todo o ser vivo na Terra, tornando-o muito mais suscetível a ser dominado, explorado ou a deixar de existir.
Mas, que graça existe em tornar os humanos como agentes de destruição? Se acabarem com o planeta, o que haverá para dominar?

Olhei para o Bruno, repetindo meu questionamento telepático e ansiando por uma resposta que me mostrasse o ponto fraco deles nisso tudo.

— O plano não inclui destruir os humanos ou o planeta. O que querem é adoecê-los e escravizá-los num ciclo de oferta e demanda sem fim, onde o que norteia a vida deles é o consumo sob a ilusão de poder, controle e dominação. Uma satisfação inalcançável.

A roda de hamster! Escravos sem correntes, depositando nos sonhos de consumo alcançar aquilo que os répteis lhes tiraram: saúde, completude e paz. Não é possível que isso tudo aconteça sem que sequer desconfiem que algo esteja errado.

— Desde quando?

— Desde que iniciamos a manipulação da espécie a fim de alinhá-los aos propósitos répteis, tanto para a criação da segunda matriz quanto para obter legalidade em nossas ações.
O Bruno me explicava com um olhar distante, como se estivesse resgatando memórias antigas.

Lembrei-me do que Lakun explicou sobre uma espécie de código legal, o Pacto Galáctico, através do qual as regras intergalácticas eram estabelecidas.

— Então os répteis encontraram brechas jurídicas para fazer algo que a princípio seria ilegal...

Tudo me parecia muito familiar... Não é assim que os humanos fazem, principalmente quando estão em posição de poder e querem alcançar seus objetivos a qualquer custo?

— Digamos que sim.

— Mas os répteis deveriam se submeter a esse Pacto Galáctico, certo?

— Eles escolheram não se submeter às regras da Federação, mas não podem impor suas próprias regras aos planetas que optaram por seguir o Pacto Galáctico ou os que ainda não se manifestaram quanto a ela.

— Imagino que a Terra seja um desses planetas que não se manifestaram.

— Exatamente. Ainda não.

Deve haver alguma saída legal para isso.

— O que acontece se for caracterizada a infração por parte dos répteis?

— Expulsão sumária da Terra por parte da Federação. Guerra.

Não me parece mal ver os répteis tomando uma surra da Federação. Talvez essa seja uma solução adequada.

— Como conseguimos isso?

Bruno suspirou e demorou alguns segundos a mais que o esperado para me responder. Seu olhar permanecia perdido no infinito.

— Assim como os répteis, a Confederação prefere que não haja guerra. Isso já aconteceu antes e não foi algo bom para nenhuma das partes. Libertar os humanos vai além de expulsar os répteis.

Assim que me disse essas palavras, o Bruno se virou no banco do carro, girando o tronco até que pudesse me olhar nos olhos.

— Lene, os humanos não estão sendo obrigados. Não há um véu sequer que não possa ser retirado de sobre os olhos deles.

— Isso tudo me parece mais uma venda que não os deixa enxergar o que fazem.

— Não uma venda. São múltiplos véus que sobrepostos lhes tampa ou confunde totalmente a visão. Cada véu retirado possibilita a eles enxergar melhor até que consigam ver sua prisão e encontrar a saída para liberdade. Os répteis são fracos, Lene. A força que eles tem provém dos humanos.

Desviei meu olhar e contemplei a cidade de Washington se movendo do lado de fora da janela do carro, sem, contudo enxergar muita coisa. Então os humanos eram como um gigante entorpecido amarrado com fios podres e finos.
Isso tudo é mais complicado do que me parecia no início.

Antes que eu pudesse perceber, chegamos a um prédio suntuoso e imponente com uma imensa escadaria diante dele. A Universidade de Washington era intimidadora. As escadas levavam até uma porta larga que parecia protegida por duas enormes colunas, as sentinelas de um castelo. Caminhamos em silêncio enquanto eu absorvia os detalhes daquele lugar. A atmosfera era diferente, havia um perfume de coisa velha misturado com cera de polir.

Quase não se via pessoa alguma ali, como se fosse algum período de férias ou recesso. O Bruno caminhava como se conhecesse o lugar de longa data, dando cada passo como se fosse dono do prédio.

— Para onde vamos?

Imaginei que seria alguma secretaria ou biblioteca.

— Nos apresentar para o curso de direito internacional.

— Você parece familiarizado com o lugar...

— Já fui aluno daqui. E também já fui professor.

Me olhou e piscou os olhos exibindo um sorriso autêntico.  Talvez ele carregue boas memórias desse tempo.

Imaginei como seria viver tendo tantas memórias na cabeça, tendo que lidar com tantas mudanças culturais e tecnológicas.

— Você se lembra de todas as vidas que você teve?

— Sim. Boa memória é parte da manipulação genética à qual fomos submetidos. Você não é a única a se lembrar de quase tudo.

O sentimento de ter mais isso em comum com o Bruno, além do fato de sermos os dois híbridos, me fez sentir bem. A memória de quantas vidas deve existir em sua mente?

— Quantas vezes você foi reconduzido?
Talvez fossem tantas vezes que ele já tenha até perdido as contas.

— Oitocentas a quarenta e três vezes.

A resposta saiu automaticamente como se ele contasse e se lembrasse de cada uma delas todos os dias, como filmes passando em sua cabeça.

— Então você tá viveu oitocentas e quarenta e três vezes!

— Oitocentas e quarenta e quatro, contando com Drasskun.

— Quando você foi Masnik...

— Sempre fui Masnik, sendo reconduzido sob diferentes identidades e missões. Aprendendo e tentando ser melhor que da vez anterior. Um nome não é um rótulo imutável. Aprendi que evolução e mudança, quando positivas, não são para se envergonhar e sim para comemorar.

— Não aprendeu isso com os répteis, imagino.
Não imaginaria nada assim tão positivamente filosófico vindo de seres como Kuterat, o dragão gigante albino da nave, por exemplo.

— Na verdade, a minha primeira professora nessa disciplina foi uma réptil.

— Hashimea?

— Sim.

Novamente essa réptil falecida, ex-proprietária de parte do meu DNA e presente na minha vida como uma espécie de assombração.

— O que ela foi sua?

As palavras saíram um pouco mais agressivas do que eu gostaria. Eu não queria demostrar para o Bruno que essa história de Hashimea de certa forma me incomodava.

— Ela foi minha amante, amiga e aprendiz. Ela também foi minha mãe.

Nova Ordem (Livro #2)Onde histórias criam vida. Descubra agora