"puxa que eu vou indo junto"

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 Estava ansiosa. Já fazia duas semanas desde que vi Alice pela primeira vez e ela havia marcado de nos encontrarmos hoje. Meu coração batia forte no peito, com medo dela ter dado continuidade no processo para a guarda dos gêmeos, como ela queria desde o ínicio. Havíamos nos encontrado algumas vezes nesses 14 dias, mas ainda assim não tínhamos chegado num acordo. Era difícil dormir naquela agonia, de não saber se no outro dia minhas crianças ainda seriam minhas. Pedi uma água para tomar enquanto a esperava, numa tentativa de diminuir meu nervosismo. Assim que virei o primeiro copo, a vi entrando no lugar. Como sempre, Alice vestia um dos seus ternos com salto alto. Me perguntei, de repente, o que ela fazia. Ela parecia ter chorado um pouco e se sentou na mesa comigo, parecia tão nervosa quanto eu. Franzi o cenho.

— Eu vi meus advogados hoje cedo. — Ela respirou fundo. — Pedi para tirarem o processo. Eu quero que você fique com eles. — Meu peito explodiu em felicidade, finalmente me senti relaxar desde que tudo aquilo havia começado. — Eu notei essa semana que eu não arrumei minha vida para ser mãe. Estou indo para Londres amanhã, e eu viajo o tempo todo para todos os lugares do mundo. Eu amo meu trabalho, eu amo o que eu faço. Eu sou dona da melhor rede de hotéis atualmente, eu viajo sempre promovendo eventos, dando palestras, eu não paro, Giovanna. Eu não tenho tempo para ser mãe e é injusto eu tirar eles de alguém que se adaptou perfeitamente para poder cuidar deles. — Ela secou algumas lágrimas que caiam do rosto. — Eu pensei no que falou. Sobre Kairós. Eu conheço essa palavra, uma menina me falou dela quando eu estava em Bordéus, na França. Foi no momento em que eu achei que fosse perder roda a empresa. Ela estava trabalhando de segurança do evento e disse que as coisas acontecem porque tem que acontecer. Eu realmente não acho que foi coincidência você me falar dessa palavra. Eu tinha um salão de festas, iria vender o terreno. Mas eu mandei reformar e em alguns meses se tornará um abrigo a moradores de rua. Principalmente crianças. Pessoas como você, Gi, não existem em abundância no mundo. Eu estou feliz que tenha sido você a os encontrar. Eles não poderiam ter uma mãe melhor.

Sorri, sentindo lágrimas escorrerem. Eu estava feliz, muito feliz.

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Voltei para casa, o clima entre eu e Manoela estava estranho. Tudo bem, eu mal parava em casa a semana toda e não parava para contar essas coisas para ela. Não me entenda mal, Manoela não iria entender aquilo tudo. Eu preferia ligar para o Bruno, chorar horas no telefone com medo de perder as crianças. Mas agora isso havia passado, e eu espero que o clima pesado entre eu e ela também. Me preparei para abrir a porta, mas escutei risadas do apartamento de Manu. Helena havia ficado para cuidar dos gêmeos, Aliperti tinha passado o dia em casa desenhando um novo projeto. Escutei risadas de novo e som de piano. Olhei para a porta do apartamento dela, entreaberta.

Me aproximei, havia entrado ali poucas vezes. Todos os móveis em madeira, tudo tão rústico e tapetes coloridos, como almofadas e tudo mais. Decoração vibrante e móveis de acampamento de verão, como ela mesmo dizia. Dali, via de relance a mochila de Helena solta no chão da sala. Meu peito falhou a batida, confuso. Abri a porta, com cuidado e entrei na sala, conseguindo ver Manu e Lena sentadas lado a lado no banquinho. Sorri, vendo Aliperti auxiliando a mais nova no piano, as duas pareciam descontraídas... Helena tentava acompanhar a partitura, com a morena auxiliando a leitura. Aos poucos, Manu pegou a mão dela e ajudou a formar as notas mais difíceis. Era tudo tão inocente e puro... exceto pela forma que Helena olhava Manoela. Isso vez minha mente voltar a semanas atrás, quando a menor havia pedido para conversar comigo antes de sair.

"acho que estou apaixonada por uma menina, Gi." ela havia dito. "meu peito dispara perto dela, a conheci nas aulas de piano lá da empresa do Bruno... ela toca tão bem". Droga, eu era tão ingênua. Manu havia se tornado professora de piano desde Mikael ter saído e começado seu projeto individual. Como não liguei uma coisa a outra?? Eu era tão burra. Continuei olhando, vendo a morena rindo perto dela, que se virou para encará-la, sorrindo também. Não, Lena, não faça isso. Ela se aproximou, rápido, colocando os lábios nos da minha garota. Meu mundo desabou completamente. Manu logo recuou, se colocando de pé, com os olhos arregalados. Então, pareceu me notar. Poucos segundos depois, Helena também notou.

— Eu... Eu preciso ir para casa. — Ela se levantou, pegando a mochila e correndo para fora do apartamento.

— Você não devia ter deixado isso chegar a esse ponto. — Briguei, fechando a porta e olhando para Manoela.

— Eu nem sequer sabia disso! — Reclamou. Aquilo era novo. Ela estava rebatendo.

— Como não?? Olha o jeito que ela te olha!

— Eu achei que ela me admirasse! Dei aulas para crianças na França, todas me olhavam dessa forma, como eu iria saber?

— Se todas suas alunas te olhavam dessa forma eu tenho um recado para te dar, James Dean. — Me sentei, escondendo o rosto nas mãos. No peito, voltei para o dia que brigamos por causa de Gabi pela primeira vez.

— O que você tá insinuando?

— Estou insinuando que você tem todo esse seu jeito galã dos anos 80s e não nota o efeito que tem nos outros, principalmente em menores de idade.

— Eu não seduzi ela. — Ela colocou as mãos na cintura. A encarei de cima a baixo. vestia um jeans escuro justo, de cintura alta e uma camisa de botão bem estampada. Os cabelos soltos e embaraçados escondendo as orelhas. a típica guitarrista da banda de rock do momento nos anos 80s.

— Você devia saber que ela se sentia assim. Ela estava confusa.

— Como você sabe?

— Porque ela me contou.

— E porque você não me contou? — Ela parecia irritada. Isso era novidade. Eu nunca tinha discutido com Manoela. — Aliás, não me conta nada. Fiquei sabendo que ficou com a guarda dos gêmeos pelo Bruno, que me ligou feliz querendo saber como eu estava com a notícia da adoção, e adivinha, eu não tinha ela. Porque você, Giovanna, não me conta as coisas.

A encarei de boca aberta, naquele segundo eu quis socar aquele nariz de golfinho que ela tinha. Ela não sabia como eu me sentia, ela não era obrigada a saber dos meus filhos como prioridade, entrou na minha vida a alguns meses e na deles há muito pouco tempo. Eu nem sequer deixava ela a sós com eles porque era muita responsabilidade, e atualmente, Manoela Aliperti não era sinônimo de maturidade. Revirei os olhos, me levantando e saindo do apartamento dela.

— Onde está indo? — Perguntou.

— Para minha casa. — Bufei.

— Então você não vai querer resolver isso, é isso?

— Você não sabe o que eu estou passando.

— Porque você não me conta!

— Porque é tudo recente, Manoela! Você voltou para minha vida faz alguns meses, conheceu os gêmeos a menos tempo ainda, você é a coisa mais incerta que eu tenho. Eu vou fazer exatamente o que você fez comigo anos atrás, eu vou para minha casa e te deixar sem resposta, e talvez quando você esteja casada eu volte para bagunçar sua vida de novo. — Falei, numa raiva instantânea. Manoela olhou para mim e concordou com a cabeça, descendo as escadas rapidamente. Bufei, realmente. Isso era uma das coisas que ela mais sabia fazer: Sumir.

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Um acidente acaba de acontecer na avenida principal. Uma motociclista bateu com um carro, o motorista não sofreu ferimentos, mas a garota que pilotava está internada em estado grave. — Abri os olhos, vendo a tv passar o jornal. Eu havia dormido no sofá, droga. Devia ser cerca de 3h da manhã. Estava passando o jornal "corujão". Olhei para a tv, vendo a notícia do acidente. Um mal estar tomou conta do meu peito. Esperei falarem o modelo da moto. Harley Davidson shovelhead, vermelha, 1984. Ah, não. Por favor, não.

Essa era a moto da Manoela.

KairósOnde histórias criam vida. Descubra agora