Manoela era tudo que faltava em mim. Não que eu fosse incompleta, eu era assim, inteira com minhas falhas, que ela complementava perfeitamente. Nunca foi sobre precisar, sempre foi sobre preferir. Eu gostava de como ela sabia que eu não tinha paciência para colocar cadarço nos sapatos e não se importava de fazer isso por mim. Eu sabia que ela não gostava de molho com pedaços de tomate, a gente se conhecia e se respeitava. As vezes, claro, se precisa lixar algumas arestas pontiagudas para ninguém se machucar. Isso era amor. Eu lembrava do que minha vó Nonna costumava falar sobre o amor, de repente, cada palavra só fazia sentido se viesse com um sotaque francês charmoso ao dizer meu nome. A vida passou a fazer mais sentido com Manoela.
Nós crescemos juntas e agora envelheciamos juntas. O tempo passou rápido porque cada minuto ao lado dela era tão leve, foi como soltar balões em um campo: Simplesmente sumiu no céu. Vimos juntas os gêmeos aprenderem a andar, a falar suas primeiras palavras, a cantar sua primeira música. Eu já não conseguia imaginar minha vida sem Aliperti, e me peguei pensando se queria Grigio Aliperti ou Aliperti Grigio para o nome das crianças (ficamos com a primeira opção). Acordar com seus braços na minha cintura era rotina, e era triste quando tínhamos que ficar longe. As vezes eu precisava ir até os outros estados para concursos e ela para outros países fazer reuniões para seus projetos. Foi divertido ver as crianças escolherem quem seria a Mãe e a Mamãe. Manoela até que levava jeito para cuidar de crianças, tinha uma paciência invejável e parecia incansável para brincar com elas. Nós tínhamos filhos lindos, os cachos de Pedro cada vez maiores enchiam aquela cabeça. Tínhamos decidido não cortar o cabelo das crianças por hora, deixar crescendo e doar a cada 2 anos. Quando tivessem maiores, escolheriam por si só.
Quando Anna chegou as três anos, contou para nós uma coisa: "Menino!" disse, quando chamei ela de "menina teimosa". Eu até podia não levar a sério, mas o fato se repetiu durante toda semana e resolvemos levar ela a um psicólogo. A doutora disse que podia indicar transexualidade, mas ainda era muito cedo. Mas pontuou que podíamos começar a chamar por "ele" e como "menino", só para vermos as reações e se isso uma hora mudaria. Não mudou. Aos quatro, a ideia era firme em sua cabecinha: Sou menino! Dizia, sem grandes problemas. Era um sentimento tão forte para alguém tão pequeno. Então, e Manu tivemos nossa primeira conversa séria como mães: Temos um filho transgênero, e agora? Qual nome vamos dar?
Fizemos uma lista, uma grande lista, de todas as opções (foi tão difícil dizer a Manoela que nosso filho não se chamaria Ludwig) e chamamos nossa criança sem-nome para perguntar como ela queria ser chamada. Ele - como agora sabíamos que era - era muito esperto para idade e conseguia ser mais objetivo socialmente que Pedro, que teve dificuldade na fala e fazia fonoaudiólogo. O doutor de Pedro, o maravilhoso Tarso, dizia que a fala dele era atrasada porque ele tinha vergonha de falar, por saber que não conseguir dizer as palavras corretamente. Nosso menino sem-nome passou pacientemente 12 minutos e meio com a gente enquanto falava quais nomes havia gostado - depois se cansou e foi ver desenho. Eu agora não sabia qual era mais difícil: Dizer a Manoela que Ludwig não era uma opção, ou dizer ao meu filho que ele não podia se chamar Steve Universo. Entre as opções que ele gostou estavam Markus, Thomas e Eric. Escolhemos Thomas. Agora, tínhamos dois meninos incríveis na casa: Pedro Augusto e Thomas Louise. Pedrinho perdia aos poucos o medo de falar, a gatinha de rua de Manoela ajudou nisso: Ele passava horas falando com ela, que pacientemente ouvia cada coisinha que ele falava, ainda o lambia uma vez ou outra.
Um dia, o circo Abracadabra veio fazer um espetáculo na cidade e eu insisto que Manoela nos levasse, afinal, era o circo onde meus avós se conheceram e se apaixonaram. Havia toda uma expectativa infantil envolvida e Pedro amava circo com todas as forças do corpinho de um metro de altura que ele tinha. Então, nós fomos. Era fácil saber porque minha vó falava tanto daquele lugar: era mágico, como entrar em um sonho. Toda a aura do lugar parecia vir de outro mundo, de outra camada de realidade. Naquele segundo eu entendi porque ela se apaixonou ali: o clima de sonho fazia querer viver amores impossíveis. O rosto de Manu ficava tão lindo naquelas luzes. Thomas estava nas costas dela, parecia tão feliz, abrindo a boca e apontando para tudo que era colorido. Pedro estava no meu colo, dizendo "olha, mamãe!" para exatamente qualquer coisa que ele visse. Nesse segundo desejei que na infância eu não tivesse sido assim com minha mãe, mas eu tinha certeza que tinha sido. Era o esperado, enfim, eles tinham o auge dos seus 4 anos e meio, estavam perguntando e interagindo com qualquer coisa que visse (Tom até conversou com uma senhorinha na fila do mercado, perguntando como o cabelinho dela podia ser uma nuvem e se ele podia passar a mão. Ela deixou). Apesar daquelas crianças não terem meu sangue, ou a minha cor dos olhos, muito menos meus traços ou o da Manu, era impossível não me ver em cada gesto delas. Pedro tinha minha mania de dormir esfregando a coberta no nariz, Thomas parecia uma mini versão de Manoela com ondas bagunçadas no cabelo. Tom era o garotinho que gostava de brincar com blocos de montar, Pedro todo dia tinha um restaurante imaginário diferente.
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Kairós
Fiksi Penggemar"Kairós (s.m); em grego antigo: o momento oportuno, perfeito ou crucial. O acerto fugaz entre tempo e espaço que cria uma atmosfera propícia para ação." Algumas coisas nós sabemos que são feitas para ser. Sentimos no fundo do nosso coração que aquil...