— Alô? — Atendi a ligação, era cedo. Fazia algumas semanas desde o aniversário dos gêmeos. Como eu e Manoela erámos vizinhas, ela começou a dormir aqui algumas noites, porque ficávamos até tarde vendo filme. Nesse instante, ela deveria estar jogada no meu sofá.
— Oi, Giovanna. — Falou Lucas, seu tom era sério. — Temos um... temos um problema, Gi. Eu vou ser direto, não existe jeito fácil de dizer isso: A mãe biológica dos gêmeos entrou na justiça pela guarda.
— o QUE!? — Gritei, claramente alterada.
Vamos facilitar para vocês: Depois de surtar no telefone, Lucas conseguiu me explicar que a mãe biológica tinha sido enganada pelo pai biológico dos gêmeos, que é filho de um grande empresário e não queria que o garoto tivesse as crianças tão novo. O pai das crianças tinha cerca de 29 atualmente, estava recém tomando o cargo como dono da empresa. A mãe, que se chama Alice Wegmann, foi descobrir apenas no aniversário dos gêmeos disso, pois a enfermeira que ficou encarregada de sumir com as crianças não aguentava mais guardar o segredo. Pelo que entendi, o avô biológico das crianças havia subornado o médico com uma alta quantia em dinheiro. O pai biológico dos gêmeos se chamava Guilherme Prates. Alice passou a semana atras de notícias até descobrir que os gêmeos estavam vivos sim. Lucas havia me passado o telefone dela, disse que a mulher queria falar comigo.
Ainda sem sair do quarto, me peguei num impasse enorme. Eu ligava? Se ligasse, o que diria? O que ela diria? Será que vou perder meus filhos? Depois de um ano, eu já não conseguia me imaginar não sendo a mãe deles. Eu havia visto os primeiros dentes crescer, as primeiras quase palavras, os primeiros quase passos, os primeiros sorrisos. Fechei os olhos, ouvindo Manoela tocando violão no piso de baixo, cantando alguma música infantil. As crianças deveriam ter acordado e ela estava as distraindo. eu não queria perder isso. Eu não queria perder a sensação de ter uma família minha, tão minha. Disquei o número, sem saber ao certo o que falaria, mas ciente que eu faria qualquer coisa pelos meus filhos.
— Alô? — Disse a mulher, do outro lado.
— Alô. Eu sou Giovanna Grigio, mãe dos gêmeos.
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— Fico feliz que tenha concordado em me encontrar, Giovanna. — disse a mulher a minha frente. Tinha cabelos e olhos claros, usava um terninho azul marinho com risca de giz. — Sei que deve estar sendo uma situação muito difícil. Mas estou feliz que concordou em vir mesmo marcando tão em cima da hora.
— Eu não conseguiria dormir sabendo que posso perder meus filhos. — Respondi, a mulher a minha frente tinha uma aura poderosa, como se fosse a administradora do mundo todo. Ela parecia tão importante.
— Ah... — O rosto dela se abaixou, agora já não parecia mais tão forte. — Você está na defensiva. Tudo bem. Vamos ser diretas, okay? Eu também não consegui dormir quando acordei naquela cama de hospital e soube que meus filhos haviam morrido. Que meu namorado havia saído do país. Eu também não consegui dormir desde que a enfermeira bateu na minha porta de madrugada e me disse que largou minhas crianças em algum canto. Que voltou para buscar horas depois e já não estavam mais lá. Eu não consegui dormir quando soube que estavam vivos. Acontece que meu sogro nunca aprovou meu relacionamento com o filho dele, dizendo que eu estava distraindo o garoto. É triste, mais não fiquei surpresa sabendo que ele fez isso. Não culpo o Gui, também, ele nunca foi capaz de enfrentar o pai.
Mordi a língua. Era óbvio que ela queria cuidar das crianças, que foi uma grande armadilha para ela. Mas não conseguia, eu não conseguia desistir. Eu não podia entregar minha Anninha e o meu Pedrinho assim, mesmo que ela tivesse a preferência clara nesse caso. Os cabelos curtos repicados me lembrava do tom do cabelo das crianças. Pedro sempre teve mais cachos que Anna, mas Anna era claramente mais parecida com Alice, que estava na minha frente agora. O medo tomou conta do meu corpo e eu me vi encarando a mesa, perdida, assustada, sem defesas. Eu precisava achar um argumento que fosse capaz de fazer ela ceder. Eu precisava. Pelas minhas crianças.
— Alice, eu sei que você jamais iria deixar seus filhos daquela maneira, mas eu não consigo simplesmente deixá-los ir agora. — Respirei fundo. — Eu sei, que você quer vê-los e protegê-los de agora em diante, eu jamais vou impedi-la de saber deles. Mas eu não posso, Alice. Eu cuido deles a mais de um ano. Eu decorei o quarto deles essa semana com novos brinquedos e caminhas novas. Eu vi eles crescendo, vi eles sorrindo, vi eles chorando, vi eles ficando doente. Eu dei banho, troquei fralda, dei comida. Eu me apeguei a eles, eu me sinto mãe deles e não sei se consigo pensar numa Giovanna de hoje em diante que não é mais a mãe deles. Eu sei quem está choramingando de madrugada antes mesmo de levantar da minha cama. Eu sei os desenhos que eles gostam. Eu decorei as marcas de amaciante e sabão em pó que dão alergia no Pedro.
— Espera, qual o nome que deram a eles? — Ela interrompeu. — Eu e Guilherme tínhamos decidido Valentina e Miguel.
— Pedro Augusto e Anna Louise. — Respondi. — Eles não tinham identificação nenhuma.
Naquele momento eu e Alice ficamos nos encarando, quase como se tentássemos ler a mente uma do outra. Meu peito batia forte, eu me sentia enjoada. Eu estava bem inquieta, também. A chance de perder eles era como se alguém tivesse comprando minha casa e eu não tivesse mais um lugar para morar. Quem seria eu, se não a "mama" dos meus filhos? Eu já não sabia não ser essa Giovanna mãe. Talvez, se isso acontecesse nos primeiros seis meses, eu não estaria defendendo isso com tanto vigor. Nos primeiros três meses eu nem tentaria ficar com a guarda. Mas hoje.... Hoje era diferente. Um ano. Eu era mãe há um ano. Era muito tempo.
— Eu sei que é difícil para você. — Alice começou, mas eu a interrompi:
— Não sabe. Eu sei que carregou eles por nove meses, que com certeza tinha feito um quartinho para eles, mas você não faz ideia do quanto só a possibilidade de viver sem eles me assusta. — Sem que eu conseguisse segurar, as lágrimas começaram a cair. — Eu amo meus filhos, eu sei que eles têm uma história antes do momento que os encontrei, eu sei que você sofreu quando achou que eles estavam mortos... Mas eu escuto eles me chamarem todos os dias... Quando eles passaram um final de semana com minha mãe, eu acordei no mesmo horário de sempre e fiz as duas mamadeiras e demorei 5 minutos para notar que eles não estavam em casa. — Contei. — Porque eles já são parte de mim.
— Eu não posso viver com a culpa de ter abandonado eles, Giovanna. — Ela segurou minha mão. — Me dói muito saber que meus filhos estão crescendo e eu não estou vendo isso. Eu queria ter que acordar cedo, queria ter que aprender na marra, queria comemorar o aniversário deles. — Os olhos dela marejaram. — Eu queria ser mãe, Giovanna. Eu sempre. Eu descobri um câncer no meu útero a 6 meses e o retirei faz 2. Eu não posso mais ter filhos, e então no aniversário do que eu achava ser a morte deles, uma enfermeira bate na minha porta e me conta toda a verdade. Gi, eu acredito de verdade que isso tenha sido o destino. Que tenha me devolvido eles, agora eu já sou mais madura, mais responsável. Agora eu estou pronta para eles, como eu sei que um ano atrás eu não estava. Eu quero ter a chance de ter meus filhos.
— Destino foi eu ter passado naquela rua num intervalo de horas enquanto eles estavam lá. Destino foi eu ter virado na rua errada. — Molhei os lábios. Aquela mulher queria falar sobre destino. — Eu não sei porque tudo isso aconteceu, mas eu não acho que o destino seria tão cruel comigo de novo. Eu já disse, jamais vou impedir você de vê-los, mas eu acho que sua história com isso tem uma razão bem maior. É uma história tão complexa para seu destino ter sido somente ter amadurecido e estar pronta para eles. Kairós não funciona assim. Ele não te faria sofrer tanto se não houvesse realmente uma razão. — Falei, lembrando de todas as conversas que tive deitada no tapete do meu apartamento com manoela deitada ao meu lado, depois de meia garrafa de vinho. Sequei meu rosto. — Pensa nisso. Pensa com carinho. — Juntei minhas coisas, me preparando para me levantar.
— Que palavra foi essa que você usou? — Ela me perguntou, parecendo surpresa. Surpresa demais.
— Kairós. — Falei, sorrindo. — É uma palavra um pouco mais profunda para destino.
Depois disso me virei e sai do lugar, sabendo que aquilo não tinha acabado. Algo me dizia que ela já havia escutado aquela palavra antes, mas talvez, essa seja só mais uma grande coincidência do destino para levar ela ao caminho certo.
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Kairós
Fiksi Penggemar"Kairós (s.m); em grego antigo: o momento oportuno, perfeito ou crucial. O acerto fugaz entre tempo e espaço que cria uma atmosfera propícia para ação." Algumas coisas nós sabemos que são feitas para ser. Sentimos no fundo do nosso coração que aquil...