Capítulo XI - parte I

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Um cavalheiro deixa o serviço pesado para as classes trabalhadoras

O traseiro de um homem podia ser fascinante, Charlotte refletiu enquanto observava Rothbury pressionar o ombro musculoso com vigor digno de nota na retaguarda da carruagem dos Greenes.
Embora muitas mulheres dessem maior importância à simetria facial, aos belos olhos, a um queixo forte e aos ombros largos, ela acreditava que um traseiro bonito, firme e atlético era um atributo igualmente significativo.
- Quem poderia prever tanta lama? Na verdade, não temos nada parecido em Coventry. - Hyacinth resmungou sentada em cima da mala, protegendo-se da chuva fina e do nevoeiro com a sombrinha. - Ainda bem que lorde Rothbury fez questão de escoltar-nos até Aubry Park e também trazer três criados a cavalo. Caso contrário eu e você, minha querida, teríamos de tirar a carruagem da lama.
Charlotte também se protegia com uma sombrinha e estava em pé na estrada esburacada perto da mãe. Inclinou a cabeça para observar Rothbury empurrando a carruagem delas com grande energia, ajudado por mais dois homens, os três escorregando na estrada molhada. Eles tentavam tirar as rodas traseiras que haviam encalhado.
O cocheiro gritava ordens de encorajamento para os cavalos, enquanto os homens trabalhavam com afinco. O outro criado fora na frente até Aubry Park para pedir outro veículo, caso o dos Greene precisasse de reparos ou os cavalos necessitassem de um descanso.
- Duvido que isso acontecesse - murmurou, distraída. - Mandaríamos nosso cocheiro em busca de ajuda.
Hyacinth fez um gesto de desdém.
- E esperar até que um salteador resolvesse nos atacar?
Charlotte nem chegou a ouvir as palavras da mãe. Ao contrário dos outros homens, que usavam casacos longos, Rothbury lhe entregara o dele para segurar. Com o agasalho apertado ao peito, ela se deliciava com a quentura deixada no tecido pelo corpo dele. A atmosfera fria do meio da manhã cheirava a frescor, unidade e... de maneira discreta, ela encostou o rosto na gola do agasalho masculino... lembrava um homem limpo e quente. Fechou os olhos e experimentou uma sensação desconhecida e bastante agradável que vibrava em seu corpo. Evitou um suspiro e tossiu para disfarçar.
Hyacinth estalou a língua.
- Espero que não esteja pegando um sezão, Charlotte. Esta será uma viagem rápida e ficaremos em Aubry Park apenas uma noite.
- Sei disso, mamãe.
- Eu não podia imaginar que as estradas ficariam intransitáveis com tão pouca chuva. Estamos aqui por no mínimo um quarto de hora e tantos empurrões de nada adiantaram. As rodas nem saíram do lugar.
- Rot... lorde Rothbury garantiu que outra carruagem está a caminho.
- Espero que ele esteja certo. - Hyacinth moveu a cabeça devagar. - O belo traje dele certamente foi estragado.
- Tem razão.
Naquele momento os homens exaustos recuaram para um intervalo merecido. Rothbury foi um pouco para trás, curvou-se e apoiou as mãos nos joelhos para recuperar o fôlego.
Charlotte fitou a mãe de relance e ficou feliz ao notar que Hyacinth perscrutava o caminho adiante, à espera da carruagem de Aubry. Com a velha senhora devidamente absorta e preocupada, ela permitiu-se satisfazer a curiosidade e olhar para Rothbury. Ele estava de costas para elas e jamais saberia que fora apreciado.
A camisa de linho manchada de barro colava-se nas costas largas como se fosse uma segunda pele. Os braços musculosos apresentavam estrias de lama e chuva a partir das mangas enroladas para cima, assim como as botas de cano alto e a calça preta que agasalhava as pernas longas e fortes.
Admirou os cabelos que pareciam mais escuros por causa da umidade e da poeira. Algumas mechas estavam coladas no pescoço em fios espiralados.
De repente sentiu calor e um certo constrangimento por vê-lo suado. Aquilo era íntimo, secreto. Se não fosse pela lama e pelas roupas , ela poderia jurar que essa seria a aparência dele após um banho.
Arrepiou-se ao ver as gotas de chuva que deslizavam pelo queixo e pescoço, desaparecendo no ninho do laço frouxo ds gravata.
Então ergueu o olhar faminto... e deparou-se com Rothbury que a mirava com a cabeça virada. Todos os pensamentos se evaporaram e ela não pôde pensar em mais nada. Ele endireitou-se e sorriu com arrogância.
Apesar do frio, Charlotte sentiu as faces em fogo. Havia quanto tempo ele percebera que estava sendo analisado? Na certa o suficiente, pelo brilho intenso do olhar.
Ela piscou e sacudiu a cabeça, esperando que ele deduzisse estar enganado.
Rothbury respondeu com uma certa anuência, como se soubesse exatamente o que ela estivera fazendo e visando-a de que fora surpreendida.
Ela tornou a sacudir a cabeça, negando.
Sempre fitando Charlotte de viés, Rothbury voltou para a carruagem com um sorriso largo e deu de ombros como se dissesse: Não me importo, olhe o quanto quiser.
Ela meneou a cabeça novamente.
Ele piscou.
Ela engoliu a seco.
E ele voltou a trabalhar com os homens para desencalhar a carruagem.
Charlotte virou-se e levou um susto ao ver que a mãe a fitava com olhar estranho.
- O que está acontecendo com você, minha filha?
- Por que, mamãe?
- Você não para de sacudir a cabeça.
- Ah, sei. Entrou água de chuva no meu ouvido.
Ela escutou a risada de Rothbury vinda dos fundos da carruagem, mas Hyacinth não fez menção de ter ouvido nada.
O ruído surdo e prolongado anunciou a chegada de outro veículo e a sra. Greene levantou-se.
- Esplêndido! Milorde, a carruagem vem vindo.
Um coche negro e brilhante surgiu na curva da estrada, puxada por quatro cavalos cinzentos. O brasão dos Rothbury nas portas, uma espada e um leão entrelaçados em uma videira espinhosa, proclamava com orgulho a linhagem aristocrática dos donos.
- Que conjunto elegante, milorde - Hyacinth comentou.
Charlotte estendeu o braço para ajudar a mãe que sofria de muita dor nos ossos com o tempo frio e úmido, e ficar sentada por longos períodos na mesma posição enrijecia as juntas como se elas estivessem congeladas.
- Permita-me - a voz profunda de Rothbury veio por trás delas.
Charlotte não entendeu de onde surgiu o lenço branco e engomado que Rothbury estendera no braço para proteger da lama as luvas brancas de Hyacinth.
Devagar e com firmeza, ele conduziu Hyacinth e cruzou o techo de relva até a estrada. Charlotte seguiu-os, segurando a sombrinha da mãe sobre a cabeça deles, equilibramdo a sua com a outra mão.
O coche deu a volta e parou em um trecho da estrada onde havia mais pedras e tojo espinhoso do que lama. Os degraus foram abaixados e Rothbury ajudou Hyacinth a entrar.
- Encontrarei as duas na mansão senhorial - ele disse para Hyacinth. - Perdoe-me pelo atraso de sua carruagem. Assim que for desencalhada, mandarei alguém consertar os estragos.
Hyacinth anuiu e acomodou o corpo magro no assento estofado.
- Sinto muito por seus trajes, milorde. - Ela bocejou. - Sei como sua classe se importa com o estado das roupas.
Hyacinth procurou alguma coisa dentro da pequena bolsa, e Rothbury aproveitou para falar com Charlotte em voz baixa:
- Charlotte - ele se curvou para que Hyacinth não o escutasse -, diga-me o que sua mãe quis dizer. Ela seria capaz de me dar uma surra se eu me aproximasse da filha e agora afirma que tenho um belo coche e se preocupa com o estado de minha roupa. O que disse a ela para que eu fosse aceito?
Ela o fitou com um semblante de pura inocência.
- Não se preocupe. Está dando certo, o resto não importa.
Ele a encarou com ceticismo e ajudou-a a subir na carruagem, depois de fechar as sombrinhas.
Charlotte acomodou-se e notou que a mãe ressonava. Rothbury pôs a cabeça para dentro com uma sombrancelha erguida.
- Ela sempre adormece tão depressa?
- Em quaisquer circunstâncias.
Ele ficou intrigado.
- É o láudano que ela toma por causa da dor nas juntas - Charlotte explicou.
Rothbury anuiu, torcendo para Hyacinth não estar alimentando um vício.
Embora muitos usassem o líquido à base de ópio para aliviar a dor ou induzir o sono, outros usavam o medicamento em excesso, provocando alucinações e chegando em alguns casos até a morte.
Embora a mãe de Charlotte não parecesse estar trilhando o caminho da destruição, Rothbury sentia necessidade de atertá-la. Talvez fosse possível encontrar um medicamento alternativo para ela em um de seus livros guardados em Aubry Hall.
- Logo as encontrarei. - O tom dele foi casual, mas o olhar estava escurecido.
Era possível que ele estivesse evitando um riso trocista, Charlotte refletiu. Nos últimos dois dias ela o beijara e ele a surpreendera olhando- o com intimidade. Rothbury estaria pensando que ela era uma devassa? Seria melhor não pensar nisso ou acabaria pulando do coche e voltando para casa a pé.
O que Rothbury estaria pensando? Não havia dúvida que se sentia atraída por ele, mas seria uma tolice deixá-lo perceber isso. Para começar, Rothbury não se interessava por ela e mesmo se por um milagre isso acontecesse, seria apenas por desejo. Ele nunca se casaria, era um farrista terrível, incapaz de conhecer outra coisa que não fosse o amor físico cujos detalhes ela pouco conhecia.
O casamento de seus pais fora por amor e representava um belo exemplo de como um bom enlace funcionava. Havia afeição, respeito mútuo, admiração e devoção. Era o que desejava para si mesma e cismou que poderia ter sido assim com lorde Tristan.
Paixão era um pecado ou pelo menos isso lhe fora ensinado com insistência. O pai a advertira de que se entregar à paixão era como comer um doce proibido. Depois de tudo acabado, restaria apenas o tormento e a vergonha pela falta de controle. Apesar dos avisos do sr. Greene, ela não podia impedir Rothbury de deslizar para dentro de sua imaginação.
A atração por ele estava se tornando difícil de esconder e ela temia despertar a atenção dele para o que a atormentava. O que ele faria se soubesse? Caçoaria? Daria boas risadas? Ou a seduziria?
Suspirou, acomodou-se no coche suntuoso e acariciou com as mãos enluvadas o estofamento grená. Como esperava que Rothbury recuasse e fechasse a porta do coche, assustou-se quando ele pôs a cabeça molhada para dentro do veículo.
- Eu pretendia dizer-lhe...
-O quê?
- Há uma coisa no seu nariz.
- É mesmo?
Ele roçou-lhe a ponta do nariz com o dedo e deixou uma mancha de lama.
- Milorde!
- Não faça barulho ou acordará sua mãe. Além do mais, a lama nunca teve um aspecto tão bom.
Ele fechou a porta e deu ordens para o cocheiro pôr-se em marcha.
- Namorador desavergonhado - ela murmurou, evitando sorrir.
Com uma guinada, a carruagem de molas agastou-se com o ruído surdo característico.
Charlotte começava a entusiasmar-se por Rothbury. Na verdade, ela o considerava um amigo. Ele a convidara para dançar, quando ninguém mais se dispusera a fazê-lo e conversara com ela no ano de seu debute, embora ela nada houvera dito em virtude de uma gagueira horrível, felizmente temporária. Ele nunca tentara seduzí-la nem mesmo aproveitar-se dela, apesar de que oportunidades houvessem se apresentado. Elea salvara de Witherby, oferecera-se para ajudá-la a encontrar um pretendente e concordara em prestar-lhe auxílio para vingar-se do melhor amigo dele. Rothbury sempre fora bondoso com ela, mesmo à custa de algum sacrifício. Talvez ele fosse uma pessoa melhor do que ela pensava.
Se não tomasse cuidado, sua mãe estaria certa e seu coração ficaria em perigo novamente.
Era muito mais seguro pensar nele como amigo ou um conhecido que fazia parte de seus planos. Dessa forma seria mais fácil mantê-lo à distância. Não deveria esquecer que flertar fazia parte da natureza e do caráter de Rothbury. Seria uma tolice imaginar que um sentimento florescia entre os dois. Perguntou a si mesma se o amor poderia ser uma consequência da paixão. Ou a paixão seria destinada a terminar em sofrimento e vergonha como seu pai a advertira? Sem saber a resposta, decidiu não pensar mais em um assunto tão complexo.
Além disso, encontraria com lorde Tristan mais tarde. Hyacinth concordara em visitar a condessa viúva e fazer um passeio pelos jardins famosos. E haveria tempo suficiente para implementar seu plano.
Uma excitação vertiginosa tomou conta de Charlotte. Rothbury prometera flertar com ela como um louco e, pelo jeito, ele já entrara no espírito da promessa.

Um Conde Sedutor (Concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora