Capítulo XIX

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Um cavalheiro sensato conhece o momento apropriado para depositar o coração aos pés da amada.

Charlotte ajeitou melhor o travesseiro e procurou adormecer. O calor da cama era muito confortável,  mas o barulho leve e semelhante ao tiquetaquear de um relógio não cessava.
Abriu uma pálpebra,  relanceou um olhar ao redor, concluiu que tudo continuava como antes e tentou voltar a dormir.
Na certa imaginara o ruído.  Não havia outra explicação.
Entrara em casa pela porta dos fundos e passara por Nelly que cochilava em uma cadeira diante do fogão da cozinha segurando um porrete, hábito que adquirira desde o incidente com um camarada que tentara invafir a residência.
Subira a escada pé ante pé, com cuidado para não pisar no penúltimo degrau que estalava, com receio de acordar seus pais e principalmente o pai.
Já em seu quarto, permitira que a criada a ajudasse a desabotoar o vestido e a dispensara em seguida. Ainda na carruagem vira uma pequena mancha de sangue na barra da saia e não queria que a moça espalhasse para todos o que vira.
Lavou-se, vestiu a camisola, escovou os cabelos, foi para a cama e ficou olhando o teto, lembrando-se dos detalhes do amor que fizera com Rothbury.
Os eventos e as novidades do dia haviam deixado sua mente confusa e o corpo cansado. Logo ela mergulhara em um sono reparador. Nunca se sentira não relaxada.
O ruído preosseguia.
Aborrecida, virou-se de costas.
Era um barulho estranho.
Charlotte suspirou, afastou as cobertas, pôs as pernas para fora da cama, apanhou o penhoar e vestiu-o.
As leves batidas ecoavam através da porta da sacada.
Charlotte ergueu um castiçal e aproximou-se com cuidado das portas francesas. Deveria chamar por Nelly?
Assustou-se quando uma pedra pequenina atingiu a vidraça.
- Quem está aí?
Alguém assobiou do lado de fora, embaixo do balcão.
Ela deixou o castiçal em uma mesa, afastou a cortina, destrancou a fechadura e abriu as portas.
Agasalhou-se melhor com o penhoar, saiu na pequena sacada e olhou para baixo, onde ficava a horta.
Rothbury, atraente como de costume e com uma das mãos nas costas, sorria para ela.
Naquele exato momento, Charlotte entendeu que o amava com todo o seu coração. Ele era seu amigo, seu amante e, a partir daquele momento, seu marido para sempre. Era extraordinário. Sua esperança era que ele chegasse a ter por ela metade do amor que ela lhe dedicava. Ele era perito em amor carnal, mas e o amor verdadeiro? Como um homem criado por um bando de patifes poderia saber o que era o amor?
- O que está fazendo aqui? - ela sussurrou.
- Procurando uma maneira de subir.
- Será que andou bebendo em excesso?
Ele riu em voz baixa, mas sugestiva.
- Não, tomei apenas um gole de uísque.
- E nada de Shakespeare para mim?
- Não.  - Ele deu um sorriso torto. - Porém tenho isto. - ele trouxe a mão para a frente e exibiu um belo ramalhete de tulipas róseas, cuja flores se fechavam à noite.
Ela sorriu, mas disfarçou a alegria e tentou parecer desaprovadora.
- As flores não são do jardim de minha mãe, são? Se forem, ela o estrangulará.
- Não. - Ele mostrou-se insultado. - Eu jamais faria isso.
- Então me desculpe.
- Na verdade, são do jardim vizinho.
Charlotte teve de rir e abafou a risada com a manga do penhoar.
- Suba antes que alguém o veja.
Rothbury pôs o pequeno ramo no cós da calça e começou a escalar o bordo que na verdade era um conjunto de quatro bordos menores que partilhavam o mesmo tronco principal próximo à sacada.
Os ramos superiores balançaram, as folhas foram sacudidas enquanto ele subia e depois se fez o silêncio.
Deus do céu, Rothbury teria caído?  Ela não escutara nada.
Um instante depois ela viu as mãos fortes que se agarravam no corrimão. Charlotte ofereceu-lhe ajuda, mas ele recusou e jogou para dentro as pernas longas em um único movimento.
Ao vê-lo parado no terraço de seu quarto, não conseguiu acreditar que ele fosse seu marido. O que ele pretendia?
- O que veio fazer aqui? - ela perguntou e pegou as flores. Algumas pétalas haviam caído por caisa da subida acidentada. - Quero dizer, estou feliz em vê-lo, mas por que você não está em sua casa?
- Minha casa é onde minha esposa dorme.
- Você não pode dormir aqui - ela afirmou com gentileza, voltou para o quarto e bocejou. - Sabe que horas são? Creio que logo chegará o amanhecer.
Rothbury também bocejou e seguiu-a.
- São quatro e meia.
Ele andou pelo quarto, examinando pequenos objetos.
Charlotte puxou as cortinas, fechou as portas francesas e trancou-as.
- Não vou ficar - Rothbury afirmou e pegou um pequeno recipiente da penteadeira. Desenroscou a tampa e cheirou.
- Limão. - Ele sorriu. - É por isso que você sempre exalava essa fragrância cítrica?
- Deve ser. Charlotte sentou-se em um banco estofado de listras azuis que ficava aos pés da cama. - É uma mistura feita por minja mãe e por mim, para evitar sardas. Eu não podia imaginar que você tovesse reparado em meu perfume.
Ele se virou, olhando com seriedade.
- Aposto que você não imagina quantas coisas notei a seu repeito.
Ela estremeceu, olhou para o colo e viu que esquecera das tulipas.
- Perdão.  - Ela se levantou, foi até o canto onde se situavam as prateleiras de livros para escolher um vaso entre os quatro ali colocados.
Decidiu-se por um branco com listras rosas que combinaria com o matiz das flores. Despejou água no vasilhame de um jarro que estava sobre o lavatório,  pôs as flores dentro e deixou tudo na escrivaninha,  próximo a uma janela.
Depois de admirá-las por alguns segundos, virou-se... e encontrou Rothbury adormecido na cama.
Ele estaria fingindo?
Charlotte aproximou-se.
A respiração era suave e uniforme, e a cabeça estava virada na maciez do travesseiro por ela ocupado até pouco antes.
Ele parecia mais jovem... Tranquilo, perdera os traços do sorriso cínico. E também dava a impressão de conforto e calor.
Ela tornou a bocejar e supôs que não haveria problema em deitar-se ao lado dele por algum tempo.

Rothbury,  que fingia dormir, não se moveu ao sentir Charlotte deitar-se junto de si. Manteve a respiração calma e constante, o que era um feito extraordinário,  considerando-se que seus sentidos ficavam alertas sempre que ela entrava em um recinto, ainda mais repousando a cabeça loira em seu peito, bocejando em sua camisa e aconchegando-se nele.
O calor do corpo esguio invadiu-o, assim como o perfume delicioso de jasmim e levemente cítrico.
Escutou um gemido suave, não muito diferente dos sons que ela emitira na carruagem havia não mais de duas horas. Ela fora extraordinária. Apesar de não se sentir merecedor de tanta efusão,  ansiava por ouvir de novo as palavras que ela dissera. Seria o homem mais feliz do mundo se ela o olhasse, por pelo menos um dia, da maneira como olhava para Tristan.
Por muito tempo representara o papel de sedutor que manipulava as mulheres à sua vontade. Um papel que lhe fora ensinado sob a orientação do idoso conde, embora orientação não se ajustasse exatamente a seu pai nada nobre.
Mas o estilo de vida que fora parte da vida de seu pai e de seus tios perdera o lugar em seu coração.
Em sua infância,  teria preferido caçar, cavalgar, ajudar na criação de cavalos, pescar ou até jogar cartas com sua avó que era uma grande trapaceira, do que estar em qualquer lugar próximo a seu pai bêbado, dissoluto e por vezes violento.
Se houvesse demostrado, com palavras ou expressões fisionômicas, a própria insatisfação, teria despertado o caráter violento do pai. Por isso o pequeno Adam se acostumara a esconder seus sentimentos verdadeiros.
E a medida que crescia, mais a mãe se afastava, presumindo que seria inevitável ele adquirir o modo de vida masculino dos Faramond. Aquela era uma herança que o tornaria igual a todos os homens Faramond que o haviam precedido. Farristas, jogadores, depravados, perdulários indolentes e sem coração.
Adam não podia imaginar o que levara Josephine Aubry aos braços de um homem como seu pai. Encantos consideráveis? Casamento arranjado? Ele não sabia e também nunca tivera a oportunidade de perguntar.
Charlotte mexeu-se a seu lado.
Rothbury entreabriu um olho e espiou. Ela, adormecida, parecia exatamente como a imaginara vestida com a camisola branca.
Não era verdade. Ela era ainda mais linda do que supusera.
Ele sorriu, certo de que ela estava adormecida. Gostaria de beijá-la, de fazer novamente amor com ela, mas também se contentava em ficar ali, descansando com sua esposa.
Sua esposa.
Havia muitas coisas que gostaria de dizer-lhe e era o que acabaria fazendo com o tempo. Mas no momento, em que ela estava aconchegada nele com tanta confiança, ele se permitiu admitir tudo.
Falou baixo para Charlotte não acordar e na língua materna, para ela não entender. Ainda não se emcontrava pronto para desnudar o coração,  por não ter certeza se ela ainda dedicava afeição a Tristan.
Relatou fatos pertinentes à mãe, o que faziam juntos e a falta que sentia dela. Depois contou sobre o dia em que ela simplesmente arrumara a bagagem e o abamdonara. Na época ele estava com oito anos e não imaginava que tudo haveria de piorar com a partida de Josephine. Ela não escutara seus apelos e o enxotara.
Disse ainda que se não fosse pela avó,  provabelmente estaria morto. Por isso ele fazia questão de deixá-la feliz, sempre que possível.
Ao terminar, revelou à esposa adormecida, ainda em francês, que sempre a amara. Ele se referiu a tudo o que sabia.
Só não poderia saber que Charlotte estava acordada.

Um Conde Sedutor (Concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora