O menino do playmobil (prefácio)

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Manda a etiqueta que um professor nunca comente como seus ex-alunos se comportavam em sala de aula. Trata-se de um mal maior do que a indiscrição - o da injustiça. As pessoas, afinal, mudam, amadurecem, ou se embrutecem. De modo que a escola pode ser o mais pantanoso dos cenários, o mais caduco dos termômetros, a mais torturante das miragens.


Lembro de um Globo Repórter em que uma mestra, já velhinha, com uma fotografia em mãos, tentava adivinhar o destino de cada um de seus pupilos, previamente contatados pela reportagem. Pois errou feio, em quase todos os casos, confirmando o que disse o semiólogo Roland Barthes sobre a importância da preguiça no aprendizado. Explico o que tem a ver uma coisa com a outra.


Os educandos que resistem a determinados rituais do conhecimento formal, preferindo em lugar tarefas prazerosas, tendem a ser mais inventivos. Para surpresa da professora que vi na tevê, o menino do fundão não estava atrás das grades - como ela poderia jurar - mas vivendo o melhor dos mundos. Barthes tinha razão: ao fazerem escolhas, alguns alunos não fazem malandragem, fazem a diferença, paga não raro com pitos, provas finais e reprovações. Até hoje não sei como o pensador, esse blasfemo, não foi parar na fogueira. Melhor dizendo, sei muito bem.


Estamos treinados para enxergar os estudantes que são a nossa imagem e semelhança, ou à imagem e semelhança do que idealizamos, afinal, nunca fomos santos. Sabemos os efeitos maravilhosos da "preguiça criativa", essa expressão que Domenico De Masi "não" inventou. Provamos na prática que a rejeição a determinados conteúdos pode ser uma experiência tão ou mais rica do que o acolhimento. Mas por medo de contrariar dogmas, colocamos Barthes na coleira, domesticando-o, de modo que latindo, não morda. Repetimos o que ele diz, não o que ele fala, com perdão ao pobre trocadilho.


E la nave va. Identificamos aqueles guris e gurias que elegem a criação com modo de vida - na física, na música, nos diabos. Em segredo, admiramos. Sabemos quem são aqueles que deveriam matar o bom aluno que mora dentro deles, de modo a que encontrem a própria voz. Mesmo assim, seguimos em linha reta, e com viseiras. Temos notas a fechar.


Bom, a gente não veio aqui para falar de educação, mas do livro de crônicas O fantástico mundo das quinquilharias, de Paulo Roberto Pacheco Filho - "Paulo Roberto" para a mãe, quando está brava, Beto para todos. Dei esse loop na montanha russa porque fiquei pensando no que aquela professorinha da televisão diria sobre ele, em tese. Seria indiscreta. Seria injusta. Daria mais uma vez provas da miopia educacional que nos assola. Depois fiquei pensando no que vi. E na sorte de ter cruzado com Barthes algum dia, o que pode ter me salvado de alguns pecadilhos contra os Betos que encontrei na lista de chamada.


Lembro exatamente o momento em que ele entrou na sala de aula, no curso de Jornalismo da PUC. Aparentava menos idade, como até hoje, e não imaginei que fosse um desistente da faculdade de Educação Física. Riam. Acho que o senhor Pacheco não quer que essa informação apareça em sua biografia. Não a menciona em suas crônicas. Ao contrário, confidencia mais de uma vez seus maus bofes contra as academias de ginástica. Pois é - eu também mal o imaginava dando lições de polichinelo. Esse moço de fato não cabe numa equação.


Da primeira vez, sentou-se nas carteiras da frente, vizinho dos mais aplicados. Fez vários estágios nas dianteiras, mas sem paixão pela perspectiva renascentista. Não tinha endereço fixo. Podia estar em qualquer ponto cardeal da sala. Ou não estar, o que me fazia perguntar se alguém tinha ido ao IML reivindicar o corpo. Assuntos de sua predileção o tiravam do silêncio e do sumiço, como que por encanto. Outros despertavam o que julguei ser uma espécie de "síndrome da perna inquieta". O sinal me servia de baliza - perna balançando, assunto enfadonho.

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