Davi x Golias

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Há pouco meu cachorro começou a latir lá fora. Não sei você, mas eu conheço todos os latidos do meu cachorro. Sei quando é gente passando na rua, quando é fome, quando é sede, quando é manha, quando é o Tio Gê, quando é o carteiro... Aliás, latido para carteiro aqui em casa é sempre sucedido de um ataque à caixa de correio - de metal - que mais parece um abridor de lata de tão retorcida que ficou ao longo de anos e anos de mordidas. Não a troco porque sei que o dog ficaria deprimido. Às vezes ele sobe na "casinha" onde está o botijão de gás e fica espiando pela janela da cozinha. Daí, se há alguém ali dentro, tomando café ou conversando, ele começa a resmungar. Eis uma marca registrada dele: é um cachorro que resmunga. Fica parecendo o Xodó da Vovó (lembra-se dele?) pedindo biscoito.

Porém, o latido dessa vez era diferente. Mais baixo, como se ele não quisesse ser ouvido. Estranho. Quando ele não quer ser ouvido, porque vai fazer alguma arte, ele não late. Apenas vai lá atrás, escolhe uma peça de roupa do varal ou uma planta com a qual não foi com a cara e destroça. Pá-pum, simples assim. Então, levantei e fui lá ver o que estava acontecendo. Quando abri a porta o vi com o focinho no chão, dando latidos secos e rápidos e tentando pegar alguma coisa. Latia baixo, resmungava, partia para a mordida, não conseguia concluí-la, tomava um susto, recuava e logo voltava ao alvo. Ah, e babava.

Meu cachorro baba muito, afinal, é um boxer. Baba e tenta dar patada nos outros. Já o levei a um psicólogo para resolver tal surto, mas ele não falou muito durante a consulta (o cachorro) e desisti. Eu ia gritar com ele - poderá ser esse o motivo dos surtos? - mas achei melhor descobrir o que estava acontecendo antes. Aproximei-me e vi qual era a bronca: uma abelha. Ele tentava mastigar uma abelha, que lutava pela sobrevivência. Infelizmente, não era a primeira vez que isso acontecia. Ele tem problemas com abelhas. Deve ser algum complexo de infância, sei lá. Se fosse apostar, diria que sofreu bullying, mas não sou especialista para fazer tal afirmação.

O fato é que a abelha já devia ter levado um golpe do meu cachorro, pois não conseguia voar e viu-se acuada, lutando com as armas que lhe restavam. Fiquei sem saber o que fazer no momento. Mas, enfim, como a tarde estava meio monótona, decidi que o melhor era assistir à luta. Fui lá, estourei um pacote de pipocas, peguei um copo de refrigerante e sentei na escada em frente à porta. Lugar privilegiado em relação ao ringue.

Logo no início, percebi que era dura a luta para a abelha. Apesar de ser mais rápida, com esquivas à la Sugar Ray Leonard, a diferença de peso era descomunal (sempre quis usar essa palavra). Meu cachorro é um peso-pesado e ela uma peso-abelha (existe?). Acho que o justo seria o canino descer de categoria - algo que a dieta, baseada em geladeira ¾ vazia, aqui de casa até ajuda, mas a idade dele não. Se eu pudesse exemplificar, meu cachorro é um Rocky Balboa, mas o do último filme. Sem velocidade, pouco ágil, fala mole e resmungada, mas com muita força bruta.

Ele tentava mastigar a coitadinha que esquivava ao ataque e buscava, na sequência, dar-lhe uma ferroada. Como o meu cachorro demonstrava certo respeito nos contra-ataques da listradinha, julguei que ele já tinha sido picado alguma vez na vida - nunca esquecemos quando apanhamos. Era uma luta de Davi contra Golias. E por conta disso, aconteceu algo inesperado: peguei-me torcendo pela abelha. Pois é, eu sei, mas foi inevitável. Tenho uma queda pelos mais fracos.

Já estava ali havia alguns minutos, assistindo àquele espetáculo de babadas protuberantes do meu cachorro em investidas contra a pequenina abelha deficiente (é, ué, vai ver era por isso que ela não voava, e não por causa de uma patada do cão), quando ele partiu para o golpe final. Conheço meu cachorro e sabia que era tudo ou nada. Ou ele mastigava a pequena ou ela o ferroava nas fuças e eu ia rolar de dar risada da cara dele até amanhã. O cachorro tomou distância, sustentou o peso nas patas dianteiras, saltou e... Nhoc! Engoliu a abelha.

É, gente, o mundo realmente é dos mais fortes. Dos mais fortes e dos mais nojentos, porque ele está babando pela garagem toda até agora. Algo me diz que a abelha era indigesta.

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