A minha amargura.

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Dei uma última olhada para a enorme casa que se estendia a minha frente. A cada eu vivi os meus melhores dias e as minhas maiores lutas. Ali no silêncio, eu podia até escutar meus dois filhos correndo pela casa e pedindo para eu marcar o quanto cada um havia crescido na nossa parede. Conseguia escutar Eli chegando e me contando sobre seu dia na empresa e mesmo que eu não entendesse nada o escutava com a maior atenção.

Eu podia ver as lembranças tão vivas a minha frente que eu quase poderia toca-las, mas elas eram apenas isso, lembranças. Lembranças de um passado que tinha que ficar para trás. Me virei para o táxi que nos levaria até o aeroporto, e ali estava em minha frente um futuro que eu tinha que enfrentar, só não sabia como.

***

A cidade não havia mudado muitas coisas, então em menos de um dia morando novamente na casa que eu e Eli havíamos construído assim que casamos próximo a dos meus pais, todos na cidade já sabiam do ocorrido.

Eu ainda andava com a aliança no dedo, mas era só olhar para mim, para ver que algo estava faltando. Rute tentava me animar e na frente de todos eu ainda conseguia fingir que eu era uma pessoa forte, mas chegava em casa trancada no meu quarto eu desabava, chorava como uma criança e não conseguia mais me animar com nada.

Foi aí que os pensamentos contra Deus começaram a surgir e ao invés de lutar contra eles, eu deixava que ganhassem espaço.

Eu deixei a dor me consumir e eles vinham, poxa eu sempre havia feito tudo certo! Nunca tinha deixado de fazer nada para Deus! Eu tinha o Espírito Santo! Por que Deus havia deixado aquilo acontecer justamente comigo?

Esses pensamentos me enfraqueciam e por pouco eu não perdi o Espírito Santo.

Eu sou humana ainda, pessoal. E se eu não fizer manutenção na minha vida espiritual a todo momento, o diabo encontra brechas.

Era nítido o quanto eu estava mal e Deus, mesmo eu sendo tão besta de não confiar, ainda teve misericórdia de mim e usou uma antiga amiga minha para vim falar comigo.

Talita era minha amiga desde criança e mesmo com a distância não havíamos deixado de nos falar.

O Pastor havia acabado a reunião e eu ainda estava sentada, arrumava a minha bolsa sem pressa, pois não tinha nada para fazer. Rute estava nas ruas entregando currículo, e eu não queria ficar em casa sozinha. Por isso, qualquer coisinha, eu enrolava o máximo.

-Noemi? Você pode esperar um momento? -Talita me chamou. -Gostaria de falar com você, é rapidinho.

Concordei e permaneci sentada enquanto ela terminava de organizar as coisas do término da reunião.

-Como você esta, minha amiga? -Ela perguntou se sentando e olhando para mim. O tempo havia passado para nós duas, mas a altivez de seu olhar permanecia como se fossemos duas meninas de quinze anos partilhando segredos.

Respirei fundo, para Talita eu não precisava mentir.

-Eu estou destruída, Ta! Como Deus pode deixar que tudo isso acontecesse comigo?

-Noemi, você precisa ser forte!

-Não sei se consigo mais.

-Poxa! Cadê aquela Noemi forte que sempre me levantava para cima?

-Ela não existe mais, eu deveria até trocar de nome... -Falei com o coração ainda pior, era como se eu tivesse perdido a mim mesma. -Mara, porque é grande a amargura que estou sentindo! -Comecei a chorar. -Eu tinha tudo quando eu parti para São Paulo! Um marido fiel, grávida do meu primeiro filho, a empresa... Eu estava cheia de bençãos e agora, vazia eu estou retornando. Por que então eu seria a mesma Noemi? O Senhor tem me deixado tão triste!

Talita olhou para mim e depois pegou seu celular e abriu o aplicativo da Bíblia:

-Vou ler um versículo para você que está em Jó...

-Talita, eu já sei a história de Jó do começo ao fim! -Reclamei parecendo uma criança de sete anos.

-Então por que está agindo dessa maneira? Por que está retrucando? Por que está deixando de confiar em Deus?

-Eu não estou retrucando! -Rebati ofendida. -Muito menos deixando de confiar em Deus.

-Então sou eu que estou chorando pelos cantos?

Fiquei em silêncio. Vocês devem pensar: Misericórdia! Que amiga dura é essa? Mas todos já haviam sido legais comigo, eu tinha que escutar a voz da razão e não de quem tinha dó de mim. Mas meu orgulho de achar que eu merecia dó de alguém foi maior, peguei minhas coisas e sem olhar para trás me dirigi para o carro. Entrei e sentei no banco, mas não consegui ligar o carro. As palavras de Talita haviam mexido comigo.

Balancei a cabeça e liguei a rádio para ocupar a mente, já era costume ligar na frequência da rádio da igreja e uma música tocava:

Jó, como pode ainda adorar
Se não tem motivos pra cantar?
Abandona esse Deus e morre

Mas não o adoro pelo que Ele faz
Nem menos por bens materiais
Eu o adoro pelo que Ele é
Eu sou dEle, tudo é dEle

Jó, você não tem motivos
Perdeu os seus bens, seus filhos, os seus amigos
O que você vai fazer?

Eu vou adorar
Simplesmente adorar
Eu vou adorar

Deus me deu, Deus tomou
Bendito seja o nome do Senhor
A Ele a glória, a Ele a honra e o louvor

Encostei a cabeça no volante derrotada e peguei a Bíblia que estava no banco do passageiro. Abri no livro de Jó, eu Noemi, que conhecia a Bíblia de capa a capa, tive que ler como se fosse a primeira vez. Cada versículo era eu e em nenhum momento Jó se levantou contra Deus. E consequência dessa sua fidelidade, Deus deu tudo em dobro e o fez conhece-Lo verdadeiramente.

Ali sozinha, chorei como uma criança, pedindo perdão e ajuda para que Deus me fizesse ver tudo aquilo de forma diferente.

Não sei quanto tempo fiquei ali no carro, mas quando levantei meu rosto o céu já começava a escurecer. Dei partida no carro, mas era diferente, me sentia leve, como se a sombra que estava sobre mim, houvesse saído.

Meu nome é NoemiOnde histórias criam vida. Descubra agora