Ruggero

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Enxugo os olhos que estão inchados e cansados por causa de mais uma noite sem dormir e de horas que perdi dedilhando a minha canção preferida.
Cristina dizia que a música era linda, porém se tornaria enjoativa se eu continuasse ouvindo-a a todo momento, mas nisso eu discordava, pois quanto mais ouvia, melhor ela ficava.

Estou sentindo frio, mas não quero ter que ir até meu quarto buscar uma camisa; deixo meu violão no chão ao meu lado e encaro meus pés descalços.

Víveme sin miedo ahora
Que sea una vida o sea una hora
No me dejes libre aquí desnudo
Mi nuevo espacio que ahora es tuyo, te ruego
Víveme sin más verguenza
Aunque esté todo el mundo en contra
Deja la apariencia y toma el sentido
Y siente lo que llevo dentro

Haveria alguém capaz de enxergar em mim além do quê eu mostrava?
Alguém que pudesse salpicar de cor as paredes brancas que havia se tornado meus sentimentos e o meu coração?

Que estupidez!

Esse sentimentalismo não me levará a lugar algum.
Fico de pé e vou até a janela fecha-la para barrar o vento frio que entra por ela sem permissão; depois me dirijo até a mesinha no canto da sala onde ficam as bebidas, porém me detenho no meio do caminho.

Preciso escrever. Preciso mandar algo para Drica.
Tenho responsabilidades.

- Droga! - Rosno e dou meia volta para ir até o birô em busca do meu notebook. - Essa merda de inspiração que não volta.

Eu queria que escrever fosse como cantar. Cantar era mais fácil, eu só precisava ter o violão por perto e tudo fluía. Apesar de amar a escrita, ela estava muito ligada aos meus sentimentos, era quase a parte principal das minhas emoções, minha base, e enquanto eu estivesse totalmente desmontado, ela não iria se manifestar.
E eu continuava encarando a caixa de texto piscando na tela do notebook, uma recordação amarga de que eu havia fracassado como escritor.

Eu não ia publicar nenhum outro livro e iria morrer ao léu como um indigente. Seria enterrado como um homem que se foi depois dos sonhos. Um homem que não viveu. Que não vingou.
Uma terra que não era fértil.

Mesmo assim, mesmo sabendo que não iria dar em nada, apoio o braço na beirada da mesa e deslizo os dedos pelas teclas e uma a uma as letras aparecem na tela branca.

Ontem à noite a menina caipira havia dito que eu era mais um entre tantos que andavam por aí com o coração remendado, mas o que ela sabia de fato? Não parecia alguém que carregava dores.
Tinha os olhos claros, cheios de luz, puro como o oceano. E sorria.
Ela sabia sorrir. Tinha os dentes alinhados, muitos dentes. A boca era carnuda e com contornos firmes que se contorciam quando falou irritada comigo.

Olhos de mulher selvagem e boca de menina malvada que sabe sorrir para enfeitiçar(...)  - Consigo escrever. (...) Palavras duras capaz de persuadir mais do quê ofender. Dentes de animal que morde forte para se defender; garras pronta para atacar; bochecha vermelha e postura de gato que está atento ao menor ruído. Corpo de mulher e espírito de bicho. (...)

Paro no meio do texto e estou respirando descompassado me dando conta que... Não! Por Deus! Fecho a tampa do notebook e mordo a unha do dedo mindinho me negando.
Eu não escrevo sobre ninguém há anos. Nunca fiz isso tão detalhadamente.
Minha mente estava me traindo.

Nos Seus Olhos (Volume 1)Onde histórias criam vida. Descubra agora