Capítulo IX - Aquele dia

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As gravações terminaram por volta de 18:30. Eu estava assistindo o céu tomar uma cor alaranjada do lado de fora do estúdio, encostado numa árvore enquanto Billie estava resolvendo alguns assuntos financeiros com Michael e seus pais. A frente do estúdio havia um grande gramado, caminhei por ele até me afastar algumas dezenas de metros do estúdio e me sentei no chão de costas para o estúdio, apoiando meus braços sobre os joelhos, encarando o sol desaparecendo entre as árvores.
Mesmo depois de gravar uma série de cenas com Billie, agindo de forma completamente profissional, minha cabeça repetia em looping o que havia ocorrido no camarim, ao fechar os olhos conseguia sentir o corpo dela contra o meu, seu toque, o gosto do beijo, a forma como eu sentia genuinamente o desejo, o mais puro desejo que eu sentia por ela ser retribuído na mesma intensidade.

– Cris? – A voz aveludada de Maggie adentrou meus ouvidos juntamente com o som dos passos dela na grama. – Posso te chamar assim? – Ela disse e parou na minha frente.
– Claro, Sra. O'Conn... Digo... Maggie.
– Eu queria conversar com você um pouco. Podemos? – Engoli seco, começando a pensar na pior das possibilidades. Ela poderia achar que eu era um oportunista por tudo o que havia acontecido no camarim.
– Com certeza... – Eu disse evitando contato visual com Maggie.
– Eu gostaria de saber o que aconteceu com você hoje mais cedo, se não se incomodar em falar sobre... Claro. – Respirei fundo me sentindo um tanto quanto envergonhado do ocorrido, não era algo que eu tinha passado durante o trabalho, e era essa a parte que mais me incomodava.
– Bem... Eu... – Cocei a parte de trás da minha cabeça num evidente sinal de desconforto.
– Se não quiser falar tudo bem.
– Não... Não é isso... Eu tenho ataques de pânico esporadicamente, quando algum gatilho é ativado.
– Entendo... E o seu gatilho é?
– Minhas cicatrizes... Olhar pra elas por muito tempo, prestar atenção nelas no geral me faz desabar.
– Finneas comentou sobre suas cicatrizes depois que lhe deixamos em casa, ele reparou quando você trocou de blusa no carro. – Com um olhar distante e sério encarei Maggie. – Se sentiria bem pra falar de onde elas vieram? Cicatrizes são normais, mas a quantidade nas suas costas é... Assustadora. – Minhas mãos ficaram trêmulas e eu rapidamente as coloquei no bolso. "Foco, Cristopher... Você consegue".
– Eu disse no jantar ontem que eu e minha mãe passamos por momentos ruins com meu padrasto... – Maggie cruzou os braços e assentiu com a cabeça, sua expressão era de curiosidade e preocupação. – Quando eu recebi a oportunidade de vir morar nos Estados Unidos minha mãe decidiu se separar dele. Depois das passagens estarem compradas, do visto estar legalizado, a viagem toda organizada ela se sentou na sala para conversar com ele. Oficializar o término explicando todos os motivos, desde o fato de ele ser extremamente abusivo até a mudança de país. Eles discutiram verbalmente, a briga foi intensa o suficiente para eu ouvir do meu quarto, estressada a minha mãe pegou o carro e saiu para espairecer. Ele nunca havia encostado um dedo em mim até aquele dia, nem eu nem minha mãe esperávamos que fosse acontecer o que aconteceu. – A medida que as lembranças iam se fazendo presente, minha respiração se tornou mais pesada. Um nó se formou na minha garganta e lágrimas começaram a encher meus olhos, os fechei fortemente e respirei fundo, voltando a encarar Maggie em seguida. – Ele foi até o meu quarto gritando que era minha culpa, que eu estava levando minha mãe pra longe dele, ele me xingou de todos os nomes imagináveis enquanto me arrastava pela camisa até a sala... Ele foi casado com minha mãe durante 5 anos, dos meus 11 aos meus 16, que foi quando tudo aconteceu eu nunca havia levantado a voz pra ele, e mesmo enquanto ele fazia tudo aquilo eu não falei nada... Nem chamei por ajuda... Ele dizia que se eu gritasse ele ia me matar e matar minha mãe depois. Ele quebrou a sala inteira nas minhas costas, cadeiras, quadros, objetos de decoração da minha mãe... Tudo... E eu não emiti um som... Ele quebrou duas costelas minhas e deixou minhas costas completamente ensanguentadas. Ele fugiu depois, e eu agonizei de dor até que minha mãe chegasse... – O choro que eu estava segurando se tornou impossível de ser contido. Abaixei a cabeça com uma das mãos no rosto e desabei em lágrimas. – Desculpa...
– Oh, querido... – Maggie me puxou para um abraço e confesso que fiquei surpreso e sem reação com o gesto, a ponto de sequer retribuir aquele abraço. – Isso só prova o quão forte você é... E eu pensando que o seu ato heróico havia sido proteger Billie no palco, você foi muito além tirando sua mãe das mãos desse... Monstro.
– Obrigado, Maggie... – A afastei sutilmente e, ao me virar para trás vi Billie caminhando em nossa direção. Sequei minhas lágrimas rapidamente com as mãos e as levei ao bolso. Maggie notou minha ação rápida e sorriu vendo a filha se aproximar de nós.
– Achei que a conversa seria comigo. – Disse Billie.
– A conversa com você será em casa.
– Sinto como se tivesse 8 anos.
– Para as mães nós nunca temos idade o suficiente pra nada. – Disse num tom descontraído tentando não pensar na minha conversa com a mãe de Billie.
– Sábias palavras, Cris. – Maggie sorriu docemente para mim. – Vou deixar vocês dois. – Ela disse e saiu caminhando com as mãos no bolso de seu casaco.
– Você não parece bem... – Billie disse enquanto me encarava atentamente, como se tentasse me ler.
– Eu imagino... – Respondi forçando uma leve risada no final da frase, mas nada eficiente o suficiente para esconder as lembranças horríveis que passavam na minha cabeça.
– Quer conversar?
– Conversei bastante com sua mãe, acho que foi mais do que suficiente.
– Sobre o que estavam falando? Se não for muito invasivo perguntar... – Engoli seco e olhei pro chão. – É... É invasivo. Desculpa.
– Não... Relaxa... Ela perguntou sobre as minhas cicatrizes.
– Ela fez o que? – Billie soou um tanto quanto incomodada com o ato de Maggie. – Cristopher, me desculpa... Ela não devia ter feito isso...
– Ei, ei... – Me aproximei dela e toquei seu rosto com a mão direita. Com toda aquela conversa com Maggie eu não havia parado para reparar o quanto Billie ficava linda sobre a luz alaranjada do sol de final de tarde. – Era necessário... E de certa forma foi bom ter falado isso pra alguém além da minha mãe e meu psicólogo.
– Pretende me contar em algum momento?
– Sim... Mas se você quiser pode perguntar a sua mãe.
– Não... – Ela colocou a mão sobre a minha. – Eu quero que você me diga, quando estiver bem pra isso. – Esbocei um leve sorriso de canto e depositei um beijo em sua testa.
– Obrigado. – Em meu bolso meu celular começou a vibrar. Me afastei de Billie e verifiquei o aparelho. – Minha mãe...

{Oi, filho. Você tinha uma reunião marcada pra hoje daqui a uma hora que eu esqueci completamente. Remarco?}
{Não precisa, eu já terminei aqui, vou direto pra lá então.}
{Certo. Quer que eu te busque quando terminar?}
{Precisa não, eu pego um uber.}
{Tá bom. Está tudo bem?}

"Esse sexto sentido de mães..."

{Está sim. Tenho grandes novidades pra te contar.}
{Boas?}
{Você nem imagina o quanto. Até mais tarde.}

– Está tudo bem? – Perguntou Billie.
– Está sim. – Guardei o celular de volta no bolso da calça. – Eu só... Preciso ir. Tenho uma reunião. E você tem show hoje não é?
– Yep.
– Cuidado... Certifique-se de que nenhum fã alcoolizado vai tentar te agarrar. – Ela soltou uma risada e eu sorri em resposta.
– Vou tomar cuidado, relaxa.
– Ótimo... Fico mais aliviado assim. – Olhei para o estúdio, me certificando de que não havia ninguém na parte externa e me aproximei de Billie, deixando nosso rosto a poucos centímetros de distância.
– Você realmente precisa ir? – Ela sussurrou enquanto olhava fixamente nos meus olhos.
– Infelizmente... O que eu mais queria era poder ficar... – Respirei fundo fechando os olhos por alguns segundos e encostei minha testa na dela.
– O que aconteceu com o "ir devagar"? – Ela disse num tom descontraído.
– Mas quem me beijou foi você.
– Eu não me lembro disso, Capitão...
– Não?
– Não... – Dei uma leve risada.
– Vamos ver se não mesmo. – A puxei pela cintura, colocando nossos corpos um contra o outro e a beijei. Sentir nossos lábios e corpos juntos me causava sensações impossíveis de serem postas em palavras. Tudo o que eu queria era que o tempo parasse, mas nem eu nem Billie tínhamos esse privilégio. Ela se afastou de mim com um lindo sorriso no rosto.
– Você vai se atrasar.
– Eu nunca me atraso.
– Vai acabar tendo a primeira vez.
– Não... Jamais... Nos vemos amanhã então?
– Claro.
– Até. – Dei um largo sorriso e fui caminhando para a saída. Olhei para trás algumas vezes e Billie estava me observando.

Sabe quando a ficha não cai? Quando tudo parece um sonho e que a qualquer momento você vai acordar? Billie era um sonho distante sonhado por um garoto do interior do Rio de Janeiro. Um garoto que sempre ouviu que nunca ia chegar onde chegou. Esse mesmo garoto agora está cada vez mais perto do coração de Billie Eilish... E nada iria me parar.

Where do we go? - Billie EilishOnde histórias criam vida. Descubra agora