1- Novo começo

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— Um novo ano na escola... — disse para o meu reflexo no espelho, encarando os olhos castanho-esverdeados que me encaravam de volta.  — Nada vai ser como no ano passado — prometi esfregando as cicatrizes quase idênticas nos meus pulsos, lembretes de como adolescentes podiam ser cruéis.

Passei um ativador de cachos e sorri para o espelho ouvindo os sons da minha família já acordada em outro cômodo. Analu estava gritando alto e tão fino que dali a pouco só as baleias e os morcegos conseguiriam ouvir.

Me dirigi para o quarto ao lado do meu.

Assim que entrei no cômodo avistei a minha irmã mais nova se debatendo na cama contra a nossa mãe que tentava sem sucesso fazer a pequena vestir uma calça branca.

— O que foi, bebê? — perguntei em voz baixa para a ferinha.

Ana Luiza virou os rostinho vermelho e brilhando com suor e lágrimas para mim e meu coração pesou dentro do peito.

— Eu não quero ir para o judô! — gritou batendo as pernas no ar e quase acertando mamãe no maxilar.

— Eu preciso ir trabalhar — minha mãe explodiu, aborrecida. — Resolva isso — ordenou ajeitando o terninho preto e se dirigindo à porta. Nada de "Bom dia" ou "Como foi o seu dia ontem?". Não que eu esperasse qualquer uma das duas coisas vindo dela.

Ajoelhei perto da cama onde minha irmã estava se esgoelando.

— Ana Luiza — falei em voz séria, mas carinhosa, puxando ela para um abraço forte. Ela lutou contra mim, mas logo se acalmou. — Você vai para o judô sem reclamar. Eu vou perguntar para o sensei se você se comportou direitinho.

Minha irmã fungou e tentou bravamente engolir o choro com a respiração trêmula.

— Veste a sua roupa e vai tomar o café da manhã se não você vai atrasar o papai — ordenei delicadamente, cruzando os braços.

Supervisionei minha irmã terminar de se vestir para o treino e levei ela para a cozinha onde meu pai estava na frente do fogão com um avental amarrado na cintura jogando uma panqueca para o alto sob os aplausos e risos do meu irmãozinho. As vantagens de se ter um pai chefe de cozinha.

— Sua mãe já foi para o trabalho — informou com aquela voz grave, como se eu já não soubesse. Ele deu um beijo na minha bochecha e o cheiro da sua loção pós-barba me fez sorrir. — Quer carona? Eu só preciso levar os pestinhas para o judô.

Eu ri e recusei a carona fazendo carinho nos cabelos cacheados das duas pestinhas em questão.

Me inclinei para beijar os gêmeos com cuidado para não sujar o meu uniforme branco e um tanto largo demais. Embora estivesse recuperando, eu tinha perdido muito peso nos últimos meses, quando o trauma que passei me impedia de comer ou dormir direito.

Analu estava com um bigode de iogurte de morango e o rosto de Antônio estava sujo de alguma coisa que eu tinha certeza ser chocolate. Seis hora da manhã.

— Minha mãe não disse que eles estavam proibidos de comer doce de manhã?

Olhei o cardápio que ela tinha pregado na geladeira quando alcancei a minha marmita do dia que estava no congelador. Era dia de salada de frutas e aveia para os meus irmãos. Fiz careta. Que tipo de criança come aveia? Aquilo tinha gosto de terra.

Meu pai, um homem alto e forte de quase dois metros de altura, se encolheu ante a perspectiva de a sua esposa trinta centímetros mais baixa ficar sabendo que ele a estava desobedecendo.

— Ele não queria as frutas — murmurou e virou toda a potência dos olhos escuros para mim. — Não conta para a sua mãe.

— É, não conta! — Antônio mandou com toda a sua marra de cinco anos de idade. Meu irmão parecia a versão mais nova e com cabelos do pai: pele negra, olhos e cabelos escuros. Ele era uma fofura com os cílios grandes e pesados ao redor dos imensos olhos redondos de criança.

Mentira Perfeita [CONCLUÍDA]Onde histórias criam vida. Descubra agora