Beatriz
Subo as escadas em direção a portaria do edifício Rubi, um dos mais caros aqui em Joinville. Olho para cima tentando contar rapidamente a quantidade de andares... Vinte. - Nossa! - Deixo escapulir em um sussurro. Não me impressiono com a altura, mas sim por pensar no tipo de vida luxuosa e totalmente longe da minha realidade que os moradores daqui devem levar. Bem, vou descobri os pormenores em breve.
— Bom dia, meu nome é Beatriz. A senhora Cecília do apartamento 1801 está me aguardando. — Digo ao segurança da portaria. Ele pede meu documento e aguardo enquanto liga para o meu 'talvez novo trabalho'.
— Sua entrada está liberada. A senhora pode seguir direto e pegar o elevador com a identificação de 'serviços' à esquerda. — Me instrui automaticamente, o segurança.
— Obrigada. — Sigo até a recepção espelhada e entro no elevador indicado em direção a minha grande chance.
Relembro o desespero que senti, quando meu contrato de estágio na editora Leia estava encerrando, e como se fosse obra de uma força maior, os meses passaram rapidamente sem que eu conseguisse encontrar um novo trabalho na minha área. Eu achava que por estar no 5º período de Letras - Português, conseguiria um trabalho ainda mais rápido do que a primeira vez, mas essa foi uma expectativa muito ousada, já que consegui o meu estágio com muita sorte. Ou melhor... O consegui graças a indicação da minha professora de Metodologia Científica, que por um motivo ainda desconhecido por mim, decidiu indicar uma caloura para uma concorrida vaga de estágio na editoria joinvilense Leia.
Eu vibrei de alegria quando recebi o telefonema da minha agora antiga chefe, anunciando que eu havia conseguido a vaga. É claro, minha alegria não foi constante, pois trabalhei muito duro lá, fazendo de tudo um pouco como todo bom estagiário. Algumas vezes, eu ficava tão irritada com os curtos prazos de revisão ou com quando tínhamos que ligar para ilustradores cobrando suas metas do dia e ter de ouvi-los nos respondendo grosseiramente que precisavam de mais tempo. Mas na maior parte do tempo, eu só me sentia tão grata por ter aquele trabalho e por ganhar o meu próprio dinheiro.
Os dois anos que trabalhei lá parecem ter passado tão rápido quanto essa subida no elevador. Desperto dos meus pensamentos quando o aviso de chegada do elevador aciona e saio em um hall minimalista e sofisticado. Sigo em direção a uma porta que é identificada pelos números 1801. Aperto a campainha e sou recebida por Rosa, a empregada doméstica da casa e também melhor amiga da minha tia Isabel. Foi ela quem me indicou para esse emprego.
— Oi Bia! Entra minha filha. A dona Cecília está te esperando na mesa. — Diz Rosa, sorrindo com os lábios e com os olhos como só ela sabe fazer.
— Oi tia Rosa... Tá bem... Licença.
Nem nos meus pensamentos mais exagerados poderia imaginar um apartamento tão elegante quanto esse. Ele é decorado em tons de branco e cinza, possui uma sala ampla com dois ambientes, o primeiro de jantar com uma belíssima mesa de vidro de seis lugares que fica sob um pendente circular de cristal, e o segundo de estar com um sofá cinza a frente de uma enorme televisão com sistema de Home Theater. Um local que aparenta ser sofisticado, mas também simples, prático e confortável.
Sentada a mesa, uma linda mulher loira entre seus quarenta e cinco anos, traja um conjunto branco de blazer e saia lápis, enquanto termina de digitar algo em seu celular. Ela ergue seu olhar para mim um tanto curiosa. Isso me pegou de surpresa, pois esperava aquele retrato estereotipado de uma mulher rica e esnobe. Apesar de a Rosa me assegurar, que "a dona Cecília era uma mulher muito boa", tive minhas dúvidas, afinal a tia tem uma alma tão doce e inocente quanto seu sorriso. Já perdi a conta de quantas vezes foi enganada por pessoas que abusaram da sua personalidade maravilhosa.
— Você deve ser a Beatriz. Prazer, eu sou a Cecília. — Comenta enquanto estende a mão para me cumprimentar.
— O prazer é meu. — Respondo, ficando um pouco nervosa.
— Senta, por favor. — Diz enquanto indica a cadeira próxima a sua. — Aceita um café ou uma água?
— Um café, por gentileza. — Fico aliviada pela oferta, pois minha entrevista está acontecendo um pouco mais que seis horas da manhã. E pelo o que a tia Rosa adiantou, esse é o horário de trabalho incomum que a família Guimarães estabelece, e o porquê ela não comentou, pois discreta como é, nunca falou muito sobre o dia a dia deles.
Um minuto depois, a minha querida Rosa serve uma xícara de café preto sem açúcar do jeito que sabe como gosto, e sorrio agradecida a ela. A senhora Cecília não perde esse rápido momento de afeto e continua me olhando curiosa. Bebo um gole do café para tentar me acalmar diante de sua observação, até que a ouço falar:
— Então Beatriz, a Rosa me falou muito bem de você. Disse que é uma mulher responsável, estudiosa e muito esforçada... O que vindo dela é algo bem impressionante, já que é uma mulher de poucas palavras e muito reservada. — Diz sorrindo como se deixasse implícito nele, que também gosta da tia Rosa. E quem não gosta?
— A tia Rosa é como se fosse uma mãe pra mim, sou muito grata pela indicação dela e por ter dito tantas coisas boas a meu respeito. Agradeço também a senhora, por ter me chamado para essa entrevista. — Falo sincera, pois minhas tias sempre presaram na minha educação, a humildade e a gratidão.
— De nada... Confesso até que estou curiosa, pois você claramente é uma mulher muito inteligente, e mesmo essa posição sendo de muito valor, em minha opinião, ao meu ver parece que não é bem o que você procura. Estou certa?
Reflito um pouco antes de responder, regra básica de entrevistas de emprego: não dê respostas rasas, automáticas ou impulsivas. Então digo:
— Sendo sincera senhora Cecília, sou estudante de Letras - Português e o meu maior sonho é ser professora de Literatura. Justamente por dar tanta importância a ele, posso lhe garantir que vou dar o meu melhor a cada dia, caso consiga esse emprego, dado que ele pode ser parte do caminho e o que me ajudará a alcançar esse sonho.
Cecília me olha divertidamente como se não pudesse adivinhar em mil anos que eu daria uma resposta como essa. E eu sorrio transmitindo que apenas quis ser sincera e objetiva. Como se pudesse ler parte dos meus pensamentos ela comenta:
— Pois bem Beatriz, como sou também sincera e objetiva, deixe-me comentar mais sobre a posição em questão, antes de decidirmos algo. Miguel, o meu filho mais novo de seis anos, precisa dos cuidados de uma babá. Infelizmente, a senhora que exercia essa função não se adaptou e pediu demissão. — Por um segundo ela para e ficar um pouco mais séria antes de continuar — O meu filho está passando por um fase difícil, fica irritado e impaciente com muita facilidade, tende a ignorar instruções e principalmente ordens, e as vezes fica agressivo. Ele está fazendo acompanhamento com psicólogo, mas como há certas coisas que demandam um pouco mais de tempo, acredito que ainda temos um longo caminho pela frente. — Faz uma pausa e me permite assimilar suas palavras.
Eu não tenho muita experiência com crianças, na realidade só tive uma e foi com o meu primo. A única coisa que eu imagino que possa usar a meu favor nessa situação é a minha paciência. Sou conhecida por ela e nem é algo que nutro com dificuldade, na verdade sempre foi muito natural para mim, quase como se fosse um sentimento vinculado ao meu realismo. Como sei que ela vai continuar sua fala, espero atenta ao que mais tem a dizer.
— Eu digo tudo isso de forma direta, pois não será um trabalho fácil. Espero que leve em consideração que estamos fazendo nosso melhor para que ele supere essa fase, mas como eu disse, há certas coisas que demandam um pouco mais de tempo — termina enfatizando a última frase.
— Senhora, sou muito paciente e como minha tia disse, esforçada. Darei meu melhor a cada dia e lhe manterei informada sobre o que for necessário. Espero contribuir também para que o Miguel supere isso o mais cedo possível.
Ela dá uma meio sorriso esperançoso, que mostra que está pensando: 'Também espero querida'.
— Bem, dado que já lhe informei o que penso ser mais importante, e você reagiu positivamente ao o que eu disse, vamos falar da rotina... O Miguel estuda de manhã, suas aulas começam às 7:30 e vão até às 12:00, na Segunda e na Quarta a tarde, ele pratica judô. Ás Sextas ele vai ao psicólogo. E todos os dias precisa fazer tarefa de casa... Sei que é algo incomum, mas para facilitar nossa rotina, buscamos uma pessoa que comece às seis da manhã e trabalhe até às dezesseis horas com duas horas de almoço de 10:00 às 12:00 de Segunda à Sexta. O que acha?
Como a tia Rosa havia adiantado alguns detalhes, imaginava algo em torno do que ela propôs. E mesmo que seja uma rotina puxada, tenho a vantagem de estar mais próxima da faculdade e também de ganhar mais do que em um estágio. Já que estudo a noite, parece prático para mim. Decidida respondo:
— Acho ótimo senhora. — Reajo animadamente.
— Fico feliz... A essa altura já deve imaginar que quero que ocupe essa posição, e se me permite dizer, o quanto antes. Para finalizar, vamos discutir seu salário para que decida se está de acordo ou não...
Nada nessa vida me preparou psicologicamente para o valor de salário que ouvi sair de sua boca. Simplesmente é o dobro do que eu esperava! Com esse dinheiro posso ajudar mais em casa e pagar parte da minha faculdade. Quase me esqueço de dizer algo, tamanho foi o meu espanto.
— Está... maravilhoso! - Respondo não conseguindo conter minha empolgação.
Ela olha para mim um pouco afetada, eu diria. Provavelmente, ela não deve considerar essa quantia alta. Finalmente anuncia:
— Então o emprego é seu, seja bem vinda. — Termina e suas palavras ecoam em minha mente.
"O emprego é seu", o emprego é MEU! Não acredito! Estou muito feliz! É tanta empolgação que quase não percebi o par de olhos azuis idênticos aos da mãe que me encaram curiosos do corredor de entrada para os quartos.
Sorrio para o menininho fofo, que parece ter mais ou menos seis anos.
— Oi meu filho! Vem cá conhecer a Beatriz — O menino vem devagar em seu pijama do Toy Story e não demonstra muito interesse em mim ou na mãe. Ele senta na cadeira de frente para mim, e aguarda a tia Rosa terminar de colocar o café da manhã a mesa. Eles trocam um sorriso cúmplice, demonstrando estarem se divertindo com algo que só os dois sabem.
Tomo coragem e o cumprimento naquele tom que os adultos fazem com crianças.
— Oi Miguel, tudo bem? Eu sou a Beatriz. — Digo simpática, e só recebo um:
— Oi Beatriz. — E então volta a comer sua fatia de cuca de banana olhando para baixo.
Cecília me diz com os olhos, que isso é parte da fase difícil. E como toda boa pessoa paciente, decido deixar que o Miguel me receba no tempo dele.
— Estou feliz de te conhecer viu Miguel? — Tento uma última vez, já esperando que a despedida comece, porque provavelmente não começarei hoje.
— Filho, a Beatriz vai ser sua nova babá. Ela vai começar amanhã aqui em casa e vai te ajudar com o que você precisar, tá bem? — Ela diz toda carinhosa pro filho, e eu me pergunto o que será que aconteceu com ele, pois ela parece se importar de verdade com o menino.
Sou desviada desses pensamentos por sentir no ar um maravilhoso perfume amadeirado. Quando busco com o olhar de onde vem, fico sem reações. Um cara de mais ou menos 1,80 m, loiro, com olhos azuis idênticos aos de Cecília e Miguel, segue em nossa direção trajando uma camiseta azul escura básica e uma calça jeans preta.
Se eu não estivesse tão impactada feito uma boba, teria percebido mais rápido seu olhar irritado de encontro ao meu. Mal puxou a cadeira ao lado de Miguel para sentar e foi logo dizendo:
— É sério que essa menina é a nova babá? — Disse secamente ignorando minha presença e se dirigindo a mãe.
"Menina", oi? Esse cara é doido ou quê? Nós provavelmente temos quase a mesma idade. E qual é a dele?
— Tiago, por favor... — Cecília pede em um tom cansado, como se isso fosse algo com que tivesse que lidar constantemente. — Essa é a Beatriz, ela começa amanhã.
A grosseria dele foi tamanha, que nem sei o que dizer, então dou um sorriso tímido em sua direção. Ele revira os olhos e começa a se servir.
— Desculpa Beatriz... — Pede Cecília, querendo dizer muito mais que isso, talvez um "Por favor não desista ainda", realmente não dá para saber. — Vamos, eu te acompanho até a porta.
Me afasto devagar para me retirar, e ainda sem saber muito bem como agir, digo:
— Tchau Miguel, a gente se vê amanhã tá bom? — Me despeço e vejo o Tiago revirando os olhos de novo... Sério, qual é a desse cara? Nem me conhece! Enquanto isso o Miguel só se limita a dizer:
—Tchau. — Mal termina e já desce o olhar para a comida.
Estou seguindo em direção a porta, quando Tiago diz sério:
— Deixa que eu a acompanho. — Sua mãe o olha mais séria ainda e só se reduz a falar:
— Tiago, para com isso por favor.
Ele a ignora e me acompanha. Sendo derrotada ao que não parece ser a primeira vez, ela volta a se sentar perto de Miguel e me olha adiantando um silencioso pedido de desculpas.
— Até amanhã senhora Cecília, e obrigada novamente pela oportunidade. — Me despeço grata, mesmo com o constrangimento que ainda estou passando com o olhar de Tiago sobre mim.
— Até amanhã Beatriz, vamos ver quantos dias você aguenta. — Me diz sarcástico com aqueles olhos azuis maravilhosos me encarando, me fazendo pensar no desperdício que é estarem em um ser humano tão grosso.
Idiota! Penso. Olho para a minha querida Rosa e digo um pouco sem jeito:
— Até mais tarde tia. — Ela me olha como se quisesse justificar o comportamento do Tiago (a cara dela ser tão boazinha) e me responde:
— Té mais minha filha.
Volto a encarar o Tiago, que agora parece curioso e um pouco constrangido. Não ligo... Decido dizer:
— Tchau Tiago e bom dia pra você também. - Respondo sarcasticamente enquanto saio pela porta soltando um ar que nem lembro de ter segurado.
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O Silêncio das Páginas
RomantikBeatriz está desesperada! Seu contrato de estágio chegou ao fim e ela precisa encontrar um novo emprego urgente. Após conversar com Rosa, amiga de sua tia, consegue uma entrevista de emprego para ser babá na casa da família Guimarães. Cuidar de u...