Beatriz
Desço do carro um pouco antes das doze horas e espero em frente a renomada Escola Católica Joinvilense. Faço um caminho costurado entre os pais que aguardam seus filhos em frente a escola, até que vejo uma fila organizada se deslocando até a entrada. Avisto Miguel, que está por último. Desconfio que ele não deve ter muita pressa para voltar para casa ao observar seus passos lentos em contraste com as crianças que juntam forças internas para não sair correndo. Essa professora deveria ganhar um prêmio internacional por conseguir mantê-los tão quietinhos assim.
Após alguns minutos, Miguel finalmente me percebe. Ele parece refletir sobre algo por uns instantes, dá meia volta e senta em um dos bancos da entrada.
- É Beatriz, começamos o trabalho oficialmente agora. - Falo para mim mesma, tentando me preparar psicologicamente pelo o que estar por vir.
Ando sem pressa em sua direção sustentando um olhar tranquilo. Ele fecha a cara e eu a ignoro enquanto sento ao seu lado. Não falo nada, tampouco ele. Ficamos assim por vários minutos.
-
Olho o meu relógio que marca doze e vinte.
Ele finalmente me olha curioso com a situação, então decido falar algo:
- Eai Miguel, como foi a aula? - Pergunto, agora o olhando com atenção. Algum tempo se passa até que ele me olhe e diga:
- Não vai brigar comigo? - Me lança em desafio. Mais tarde irei pensar sobre essa pergunta com mais calma, tem tanta coisa por trás dela. Mas agora tenho que agir.
- Por que eu brigaria com você? - O respondo com outra pergunta.
- Ué... Porque não vou pra casa. - Fala como se fosse óbvio. Sorrio para ele, afinal o que mais posso fazer.
- Ah, entendi. Olha, não estou afim de brigar não. Vou ficar quietinha aqui mesmo. - Termino dando de ombros. E então ele me olha como se eu fosse louca. Talvez eu seja, mas enfim.
Passamos mais algum tempo silêncio. Vemos as crianças e adolescentes do próximo turno chegando. Confiro mais uma vez o meu relógio que marca doze e trinte e cinco. A tia Rosa já deve estar se perguntando onde estamos. O que eu faço senhor?
- Tá com fome Miguel? - Pergunto de repente e ele me olha aliviado. Achei minha brecha!
Ele não responde nada, ainda não quer dar o braço a torcer. Ele quer que eu perca o controle, mas mal sabe o Miguelzinho que eu fiz doutorado em paciência.
- Eu tô com muita fome sabe... - Começo dramática - Miguel você não tem noção... Minha fome está desse tamanho... - Falo enquanto estico os braços, mas ele não se impressiona. Bem, não custava tentar.
- A gente vai ficar aqui então? - Pergunto e ele dá de ombros. - Ok, então vou providenciar meu almoço. - Levanto e vou até uma parte florida próxima de nós. Arranco um ramo de flor e volto a sentar no banco consciente do seu olhar chocado. Isso vai ser bom!
- Quer um pouquinho? - Ofereço educadamente em sua direção, enquanto ele nega em espanto. - Tudo bem então... Sobra mais pra mim. - Termino dando de ombros e levo vagarosamente uma pétala em direção a boca aberta, ele acompanha tudo chocado com o que acha que vou fazer. Chego perto e sinto o cheiro da pétala:
- Poxa - Começo suspirando dramaticamente enquanto desço a mão. Ele parece aliviado com isso. - Logo hoje que a Rosa fez lasanha a bolonhesa... Que triste. - Digo em sua direção, notando que engole seco quando falo da especialidade da tia Rosa.
- Será que o Tiago já comeu tudo sozinho? - Pergunto já sabendo que não vou ter resposta. - Miguel, se a gente for agora, tenho certeza que a gente consegue comer uma 'fatiazona' ainda. Vamos? Por favor? - Termino meu drama barato e torço com todas as minhas forças que dê certo!
Miguel me olha e tenta decidir se o meu 'teste' pode ser adiado para outro momento em nome da lasanha. Depois do que pareceu uma eternidade, se levanta e segura as alças da mochila dizendo silenciosamente que finalmente vamos para casa.
-
Chegamos ao apartamento exatamente às treze e catorze da tarde. Ao abrir a porta me deparo com uma Rosa e um Tiago me olhando preocupados e interrogativos. Poxa, um pouquinho de credibilidade cairia bem agora. Procuro não me abalar e falo para o Miguel:
- Miguel, que tal guardar sua mochila e lavar as mãos, enquanto eu peço pra tia Rosa esquentar a lasanha? - Ele assente e praticamente corre até seu quarto. Coitado, deve estar com muita fome.
A tia Rosa se vira, discreta como só ela, e agiliza em esquentar a tal lasanha. Com todo esse drama, esqueci que nem com fome estou, afinal já fiz o meu horário de almoço, mas acho que seria bom comer junto com o Miguel para fazer a coisa ser mais realista.
Sou atraída pelo olhar de Tiago, que está sentado no sofá ainda esperando uma explicação. E é justo, afinal ele é meio que meu chefe também. Mil pensamentos obscenos me vêm a mente agora envolvendo um loiro chefe mandão e uma Beatriz submissa... Socorro, eu preciso sair dessa seca. Ele deve sentir o cheiro do desespero de onde está.
Volto a realidade para acalmá-lo, afinal já está ficando estranho esse silêncio.
- Então - Começo sem saber bem como explicar - O Miguel disse que não queria voltar para casa, então a gente acabou demorando um pouquinho até ele mudar de ideia - Digo, ciente de que exagerei no 'pouquinho'.
Tiago parece estar tentando reunir forças para falar comigo... Deve estar bravo. Também não é para menos, eu voltei quase uma hora depois do esperado. Deveria ter ligado, mas nem me passou pela cabeça. Tenho que ser mais responsável da próxima vez.
- Você fez alguma coisa contra ele? - Pergunta secamente. Eu nem consigo ficar com raiva, porque claramente alguma coisa bem errada vem acontecendo por aqui para todo mundo ficar alerta e preocupado desse jeito.
- Não, claro que não. - Respondo me explicando o mais rápido possível e vejo o Tiago ainda de guarda levantada pouco satisfeito com a resposta.
- Então o que foi que aconteceu exatamente para que vocês chegassem com mais de uma hora de atraso? - Pergunta seriamente com seus profundos olhos azuis, que me encaram sem hesitação.
Fico tão desconcertada com esse olhar, que saio falando sem pensar direito e já sinto que não vai ser coisa boa, porque isso quebra uma das minhas filosofias de vida:
- Ele não queria voltar para casa, então eu sentei do lado dele no banco. Ficamos um considerável tempo em silêncio, até que eu tive uma ideia, que talvez não era a mais brilhante, na verdade não era de longe a mais brilhante. Eu só queria que ele voltasse, mas não queria brigar com ele, porque era isso o que ele queria. Então eu disse que estava com muita fome, finge que ia comer uma flor, mas então não comi e dramatizei como queria comer a lasanha da tia Rosa, mesmo estando até agora satisfeita. Ele não cedeu tão fácil, mas quando disse que você podia acabar com toda a comida se a gente não voltasse logo, praticamente implorei que a gente pudesse voltar rápido para comer uma 'fatiazona'. - Termino meu monólogo da humilhação e solto um longo suspiro de derrota.
Tiago continua minha olhando boquiaberto até que começa a rir... Isso mesmo: rir! Eu baixo a minha cabeça e sinto meu rosto corar de vergonha. Eu realmente não acredito que falei tanta bobagem de uma vez só. Eu não costumo agir assim, mas isso é totalmente irrelevante agora, porque tudo o que eu mais desejo é uma furadeira para cavar um buraco e me enterrar lá dentro.
- Você fingiu comer uma flor? Sério? - Assenti, afinal o estrago está feito.
Miguel, meu anjo particular me salva desse momento de tortura enquanto senta a mesa completamente cheiroso e de banho tomado. Pelo menos alguma coisa está dando certo para mim hoje. Uso essa oportunidade de fuga para me sentar a mesa com Miguel, enquanto tia Rosa coloca os pratos a nossa frente achando graça (até tu, Brutus?).
Tiago alcança uma simples bolsa de lado, percorre o caminho até a mesa para dar um beijo no topo da cabeça de Miguel e anuncia sua saída:
- Estou indo para o estágio. - Me pergunto onde será que ele trabalha... Será que faz medicina para seguir os passos da mãe? Não né Beatriz, se não seria turno integral. Ele tem cara de quem faz Direito... Será que estou julgando? PELO AMOR DE DEUS, PARA DE ESPECULAR SOBRE A VIDA DO CARA BEATRIZ! - Beatriz? - Congelo temendo ter feito algum questionamento em voz alta.
- Sim? - Pergunto atônita.
- Se precisar de alguma coisa, pede ajuda da Rosa ou liga para mim. Só em último caso liga para minha mãe, tá bem? - Assinto, mas não sei bem ao certo se não informar a Cecília do que aconteceu é uma boa ideia. Por um lado, está tudo resolvido. Por outro, podia não ter dado certo e o que eu faria então?
- Claro. Muito obrigada. - Respondo tranquilamente e pontos para mim, que voltei a ter compostura.
- Certo... Até mais Rosa... Até mais maninho. - Diz carinhosamente para o irmão e lá se vai minha compostura junto com minha calcinha. Tem coisa mais covarde do que um homem desse sendo fofo com o irmão? Talvez tenha, talvez não, ou só talvez eu esteja muito na seca. Nós nunca saberemos. Okay, na verdade, no fundo eu sei.
Tiago desparece ao passar pelo corredor de saída. Eu fico encarando o local por mais algum tempo, já sentindo falta do seu perfume amadeirado e inebriante. Sou interrompida pelo cheiro da lasanha maravilhosa da tia Rosa. Ela deposita o pirex sobre um protetor térmico e antes de sair me dá um olhado divertido de quem ouviu uma piada muito boa, mas que não quer partilhar com ninguém. Nem adianta eu tentar, porque a tia Rosa parece ter sido treinada pela CIA... Daquela boca só sai o essencial.
Miguel me olha com um pouco de impaciência e entendo que o pobre menino está com fome após mais de uma hora perdida em sua tentativa de testar meu autocontrole. Ainda bem que não preciso ser testada por outro ser humano dessa casa, que nem me atrevo a dizer o nome, se não perderia feio.
De repente sinto uma imensa fome surgindo e olho sugestiva para o meu novo 'companheiro' dos dias que virão.
- Fatiazona? - Pergunto já sabendo a resposta.
- Fatiazona! - Confirma Miguel em expectativa.
O sirvo e passo algum tempo o observando comer satisfeito. De repente ele olha para a tia Rosa que traz suco e eles trocam um olhar de entendimento cúmplice, que provavelmente só eles entendem. E eu não sinto a menor vontade de interferir.
As vezes fico encantada com esse lado da minha tia Rosa. Ela diz tanto sem dizer, assim como o Miguel. É como se eles entendessem profundamente o valor das palavras; a força que elas tem para gerar alegria ou tristeza, raiva ou compreensão e quisessem se certificar de usá-las de maneira correta... De maneira que sejam autênticas.
Fico boba com o pensamento, porque as vezes sou mesmo uma manteiga derretida ao perceber fatos aleatórios do cotidiano. Me sirvo com uma 'fatiazona', que mesmo não sendo a palavra correta (a propósito é fatacaz), foi a mais apropriada que eu encontrei para tentar conseguir uma reação boa desse menino de seis anos que senta ao meu lado enquanto come tranquilamente.
O mais curioso é que fatacaz também significa grande afeição por alguém. Espero de coração que eu possa contribuir de forma positiva na vida do Miguel. Mas não transmito meus pensamentos em voz alta. Apenas continuo comendo e sorrindo para ele na esperança de que entenda. Esse é um daqueles momentos em que eu realmente entendo o valor das palavras.
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O Silêncio das Páginas
RomanceBeatriz está desesperada! Seu contrato de estágio chegou ao fim e ela precisa encontrar um novo emprego urgente. Após conversar com Rosa, amiga de sua tia, consegue uma entrevista de emprego para ser babá na casa da família Guimarães. Cuidar de u...