Poderia Jurar que Ele Sentiu Ciúmes

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Beatriz             

                - Segundo dia de trabalho, aí vou eu! - Digo alto para me motivar enquanto passo pela portaria do luxuoso edifício onde trabalho. 
               Enquanto subo em direção ao apartamento 1801, me pergunto se as coisas vão continuar sendo tranquilas como foram ontem. 
               Eu sei que tive que usar minhas (péssimas) habilidades de atriz para conseguir fazer o Miguel voltar para casa, mas não achei tão ruim assim, afinal ele é uma criança... Não é o que elas costumam fazer para nos tirar do sério de vez em quando?
               Depois do almoço de ontem, nós assistimos a um episódio de Os Pinguins de Madagascar. Miguel e eu demos tantas risadas! Aqueles pinguins são uma graça. 
               Só no final do desenho reparei como não havia o visto sorrir ou se divertir ainda, fiquei com tanta dó. O menino tinha tantos brinquedos, vídeo games, estudava em um ótima escola, e ainda assim falta algo para ele. E tenho impressão que não é por birra ou por ser mimado que age dessa forma. 
               Isso ficou claro para mim durante o que aconteceu em seu horário de estudo.
               Após anunciar que iriamos começar a estudar, seguimos em direção a sala de estudos. Sim, eles tem uma sala só para estudos! E ela é maravilhosa... 
               Duas paredes são ocupadas por prateleiras brancas, estas sendo abarrotadas de livros sobre diferentes assuntos, desde Medicina até Fantasia. Fiquei literalmente de queixo caído. O lugar é bem iluminado e tem um cheiro fresco de lavanda no ar. Próxima a janela, encontra-se uma elegante escrivaninha de madeira crua que comporta um moderno computador. No meio da sala, um lindo tapete cinza está sob uma mesa mais longa com cadeiras brancas e delicadas a sua volta. 
              Um verdadeiro paraíso! Relembro, ainda maravilhada pelo luxo daquele lugar. Se um dia eu tiver condições, vou pelo menos tentar copiar a decoração do lugar. 
              Sentamos a mesa central, e eu a fim de saber o que precisava ser estudado, abri sua agenda. 
              - Miguel, vamos começar pelas atividades de inglês. Você tem que revisar family members e fazer as atividades que a professora passou como dever de casa. - Disse direcionando minha atenção a ele.
              Ele não disse nada ou se quer deu indícios de que iria fazer a atividade. Só ficou com a mãozinha apoiada no queixo encarando o seu livro ainda fechado sobre a mesa. 
              Tudo o que eu conseguia pensar era: Por que deus? 
              Tentei usar todos os argumentos pacíficos para convencê-lo a fazer a tarefa, "Vamos Miguel, você é inteligente, vai terminar isso rapidinho", "Se você não fizer, provavelmente sua professora vai ficar chateada" ou  "Quanto mais cedo você fizer, mais cedo você fica livre para brincar". Nada funcionou. 
              O tempo passava e eu comecei a ficar desesperada. E são nesses momentos em que ou tenho idéias ou espetacularmente engenhosas ou desastrosamente idiotas. Torci para ter a mesma sorte do dia anterior. 
              Levantei e segui em direção a saída. Senti que ficou nervoso quando encontrei os seus olhos antes de sair pela porta. Alguns minutos depois, retornei com minha bolsa e voltei a sentar a mesa. Me deu um nó no coração vê que ainda estava nervoso sem saber o que iria acontecer, mas não podia amolecer. Já falei que sou uma manteiga derretida, e isso com crianças pode sua glória ou o seu fim (dramático, eu sei). 
              Abri a bolsa enquanto tirava meus materiais da faculdade e fingi que comecei a estudar. Depois de alguns minutos me encarando com curiosidade e tentando ver melhor os livros a minha volta, achei que era a perfeita deixa para eu agir.
              - Eu tinha esquecido completamente do meu dever de casa Miguel! Você acredita? Não posso chegar na aula sem nada ter feito, minha professora não vai gostar. - Comecei mais um ato do meu teatro barato. - Se eu tiver alguma dúvida pergunto pra você, tá bom?
              Crianças são seres bons demais para esse mundo, tão inocentes... Me sinto até mal por ter mentindo, mas talvez seja absolvida desse pecado já que foi por uma boa causa. 
              Ele me olhou nervosamente de novo e disse:
              - Eu não sei fazer tarefa de gente grande. - Terminou não só nervoso, mas um pouquinho envergonhado. Socorro, que dó! Será que vou para o inferno? 
              Fingi pensar por um tempo, e então falei:
              - Então vamos fazer assim: você faz a sua tarefa de gente pequena, e eu te ajudo. Depois eu peço para o Tiago para me ajudar, afinal ele é maior que eu. - bote maior penso, alias, será que aquela outra coisa também é tão... FOCO BEATRIZ! FOCO! - Pode ser Miguel? - Perguntei esperançosa. 
             Ele soltou um ar aliviado e assentiu. Um fofo! Com certeza vou para o inferno. Mas pelo menos ele terminou todas as atividades daquele dia. O guri é muito inteligente, nem precisou tanto da minha ajuda.
             Relembro tudo isso com um sorriso afetado e torço para que continue tendo sorte com ele enquanto toco a campainha do apartamento.  
                                                                                            - 
             Sou recebida na porta pela tia Rosa, que chega um pouco mais cedo do que eu. Penso que talvez valha a pena chegar mais cedo para poder acompanhá-la, assim não faz o trajeto para o trabalho sozinha. A partir de amanhã farei isso. Afinal, posso ficar lendo algum livro, enquanto espero pelo horário de começar o serviço.
              Tão logo me aproximo da sala, sinto um cheiro maravilhoso no ar, que vem é claro, do Tiago. Não bastasse ser tão cheiroso, está arrumado mais uma vez em seu estilo básico e matador, do tipo que deixa claro para os que o olham, que não importa o que vista, vai continuar sendo ridiculamente bonito. Mas provavelmente ele nem se esforça para isso. 
              - Bom dia. - Cumprimento tímida como se eu tivesse catorze anos de novo. Por que deus, por quê? Eu sei que não sou o melhor exemplo de sociabilidade, mas eu pelo menos finjo bem quando preciso. O que está acontecendo comigo? Parece até que nunca vi um homem bonito. 'Não desse nível', penso traindo a mim mesma. Na tentativa de me recompor, emendo - Vou acordar o Miguel para tomar café. 
              - Bom dia Beatriz. - Me cumprimenta de volta com uma matutina voz rouca de quem acordou a pouco tempo e eu me sinto torturada, porque até isso é sexy nele. Poxa, ele poderia acordar descabelado, desarrumado, talvez com remelas, qualquer coisa que facilitasse minha vida. Mas duvido que resolveria muito, o Tiago deve ser parecido com aqueles bloggers famosos, que acordam lindos como se vivessem 24 horas em um filtro de Instagram. - Claro, fica a vontade. - Termina e eu sigo em direção ao quarto do Miguel. 
              Tento ser o mais delicada possível ao acordá-lo para que não tenhamos nenhum problema, principalmente na frente do Tiago, penso. 
               - Miguel? É a Beatriz... Vamos acordar? O café já está na mesa. - Anúncio e ele sai debaixo das cobertinhas para me olhar com olhos sonolentos. Meu deus, esse quarto está me congelando. - Vou desligar esse ar, antes que eu vire um picolé, tá bom? - Mais anuncio do que pergunto enquanto alcanço o controle e desligo o aparelho. 
               Ele levanta devagar e anda cambaleando em direção ao seu banheiro. O guri tem uma suíte só para si. Agora fiquei com inveja, afinal, por mais que eu ame o Lucas, ele é muito bagunceiro e demora horrores no banheiro. O que eu não daria por um banheiro para chamar de meu, me pego sonhando, mas atenta caso Miguel precise de mim. 
               Após alguns minutos, aparece um pouco mais desperto e eu não consigo evitar de ser a mais velha 'chata':
               - Lavou bem as mãos? - Pergunto e ele assente. Bom menino, penso. 
               Andamos em direção a mesa e Tiago nos acompanha com o olhar. 
               - Bom dia maninho, dormiu bem? - Pergunta atencioso ao irmão e eu solto um 'awn' na minha mente abobalhada. 
               - Sim manão. - Responde Miguel de um jeito fofinho, enquanto Tiago dá um sorriso para ele de forma afetuosa. 
               O Tiago foi um verdadeiro grosso comigo no dia em que nos conhecemos, mas isso não parece condizer com sua personalidade, já que é tão doce com o irmão. Além disso, tratou a tia Rosa com tanta gentileza e bom humor. Me faz pensar que provavelmente só estava preocupado com Miguel, afinal eu realmente sou nova para o que se espera de uma babá. Não justifica seu comportamento, mas me ajuda a entendê-lo um pouco melhor.
               Ele dirige seu olha para mim, enquanto endureço em meu lugar. Pergunto-me se estava nítido na minha cara, que estava pensando nele. Ele desce seus olhos para o prato vazio que está a minha frente e então volta-os para mim:
               - Você não quer se servir? - Pergunta educadamente e me sinto aliviada por não ter sido pega. 
               - Muito obrigada, mas já comi em casa. - Respondo formal e dou vivas internos por ter reencontrado forças para agir normalmente. 
               - Não que seja da minha conta, mas como sai cedo de casa... - Começa escolhendo bem cada palavra - Se quiser tomar café da manhã aqui, pode ficar a vontade. - Oferece timidamente, tentando transmitir com seu olhar que não está deduzindo nada sobre minha condição de vida, mas sim, que está tentando ser gentil. 
               Acho que preferia quando ele era grosseiro. Eu não sabia lidar com aquilo, mas tampouco com esse lado fofo dele. Alguma força maior me ajude, por favor! 
               - Te agradeço. - Respondo com uma formalidade que passou dos limites (e olha que meus limites para isso são distantes do comum). Beatriz, você não é uma mocinha do livro da Jane Austen, se situe pelo amor de deus, repreendo a mim mesma. 
             Alguns minutos de silêncio tomam conta da mesa, permitindo que eu me recomponha da curta conversa que tive com Tiago. Um coração sensível esse meu, ou vai ver é a tal da 'seca'. 
              Tem pessoas que se incomodam com o silêncio, mas eu não. Acho que na falta do que dizer ou até mesmo na falta do interesse em dizer algo, o melhor que se faz é se calar. Mas essa é só a minha humilde opinião. 
              Miguel termina de comer e então digo que é melhor ele se arrumar para que a gente não chegue atrasado na escola. Uma mentira e tanto, porque o pobre menino tem tempo de sobra, no entanto eu não aguento mais ser torturada pelo perfume maravilhoso do Tiago. 
              Peço licença e Miguel encosta molinho no ombro do irmão por um tempo até receber um beijo fraterno no topo de sua cabeça, decidi seguir em direção ao quarto. Lá, passo por mais um de seus 'testes', e após mais uma vitória, saio com um Miguel arrumadinho para mais um dia na escola. 
                                                                                                 

                                                                                                        - 

             Estou sentada a mesa, tentando terminar uma análise crítica sobre Os Lusíadas. De repente ouço o interfone tocar e tia Rosa permite a entrada de alguém. Será que é algum serviço que farão aqui? Penso. Tia Rosa passa por mim em direção a sala de estudos, onde descobri, ser o lugar onde o Tiago passa suas manhãs. Não me impressiono, afinal, se eu tivesse uma sala daquelas, talvez até dormisse no lugar. Rio da minha própria tolice enquanto vejo a tia retornar para a cozinha. 
              Só agora penso, que talvez seja a namorada dele. Sinto um frio na barriga. Será que ela é alta, loira e maravilhosa como ele? Será que eles vão fazer aquilo? Claro que vão, afinal são namorados. Mas isso não é da minha conta e por que eu estou tão nervosa com isso, pela fé... Eu conheço o cara há o quê... 1 dia? Isso soa desesperado demais dona Beatriz Campos e não tem seca que justifique isso. 
              Socorro, eu quero sair daqui, se ela for tudo isso meu coração não vai aguentar. Eu sei que é errado, afinal ele não é um pedaço de carne que nós duas temos que brigar... E por que eu acho que ao menos tenho chance, ele não sabe nem o meu sobrenome... Esse monólogo de sofrimento me atrasou, agora Tiago surge na sala a fim de receber sua namorada e a tia Rosa já está abrindo a porta... Não consigo nem olhar. 
              - Bom dia amor da minha vida. - Amor da minha vida... Socorro... Não, pera aí... Isso é uma voz masculina. 
              Então percebo a figura de um homem um pouco mais velho que eu. Alto, mas não tão alto quanto Tiago e forte. Definitivamente têm muitos músculos por baixo de sua camiseta branca justa e do jeans preto que cola um pouco nas suas coxas. Sua pele negra e brilhante contrastam com a cor da camiseta, e seu sorriso alinhado alcança Tiago até que recai sobre mim com curiosidade. 
              O Tiago é gay.
              Certo, não tem nada de errado nisso, claro... Mas o Tiago é gay e eu tenho zero chances com ele, primeiro por não ser um homem e segundo por não ser nem páreo para a beleza do seu namorado, não que esse último argumento faça muito sentido. Estou confusa demais para fazer sentido. 
              Após me estudar por alguns segundos, um sorriso de lado se forma e então ele se volta para Tiago que o encara extremamente... irritado? 
              - Vem logo Diego. - Ordena deixando claro seus sentimentos. Mas por que meu deus? Será que é porque o namorado me viu aqui estudando na mesa? Será que está, sei lá com vergonha? Não consigo nem ter tempo de juntar minhas coisas para sair dali quando sou interrompida:
               - Calma Tiago... É falta de educação não cumprimentar as pessoas. - diz de forma divertida - Bom dia, eu sou o Diego. - Diz olhando em meus olhos, enquanto segura um das minhas mãos colocando um pouquinho de pressão nelas. 
               Se eu não soubesse que Tiago é seu namorado, poderia jurar que ele está dando em cima de mim. 'Pobre Beatriz', penso, 'a seca está tão longa, que nem um homem gay pode mais ser simpático com você'. Decido largar mão de ser boba para que não pense que eu seja uma homofóbica ou sei lá o quê:
               - Bom dia Diego, eu sou a Beatriz. - Retribuo o aperto de mão com o famoso sorriso de Beatriz Campos. E sinto o olhar de Tiago me fuzilar, enquanto o de Diego parece estar extremamente satisfeito. 
               - Os dois estão apresentados, agora será que dá para vir logo! - Ordena pela última vez um furioso Tiago, que vira para se dirigir a sala de estudos enquanto seu namorado o segue.
               Eu ein... Casal estranho! Se eu não soubesse que são namorados, poderia jurar que ele sentiu ciúmes. 
         
        
               









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