Tô Ferrado

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 Tiago     

Acordo com o som do despertador indicando que é cinco e meia da manhã. Mesmo sendo tentado pelo conforto das cobertas, levanto de prontidão em direção ao chuveiro. Tomo um banho quente e rápido. Me enxugo e depois encaro meu reflexo por alguns segundos. Meus olhos azuis buscam alguma resposta no reflexo, mas como sempre, falham. — Só preciso continuar estudando e trabalhando como tenho feito e logo dou o fora daqui. — O pensamento em voz alta me dá a motivação necessária para eu continuar com minha rotina.

Eu realmente não quero fazer o papel ridículo do cara privilegiado que perde a noção da realidade quando diz que tudo o que tem ou que vai passar a ter é fruto do seu único digníssimo esforço, porque eu não acredito nisso. Alias, na minha faculdade estou cercado de gente assim e eles me irritam com essa fala idiota. 

Mas eu quero sim me esforçar ao máximo todos os dias, estudar bastante e ter uma formação excepcional, afinal eu tenho todas as condições para isso acontecer. Eu acredito que esse esforço vai me levar a conseguir um bom emprego em outro país, que eu ainda não decidi qual vai ser, pois qualquer lugar frio e calmo serve. E também não é tanto sobre o lugar, mas sim sobre o ir. 

Para que isso aconteça eu me certifico de acordar cedo todos os dias, colocar uma roupa que não grite conforto e ir para a sala de estudos, onde eu fico estudando até o horário do almoço. Á tarde vou para o estágio. Á noite para a universidade. Depois retorno para casa, treino, leio e durmo. Se alguém me perguntasse sobre minha rotina, seria dessa forma que eu a descreveria. 

Ao terminar de me arrumar, confiro meu relógio que marca cinco e cinquenta da manhã. Ouço a campainha soar e não me surpreendo, já que as pessoas que trabalham na minha casa precisam seguir um horário incomum de trabalho. No entanto, me dou conta rapidamente, que a Rosa já está aqui... Isso quer dizer que deve ser a possível nova babá do meu irmão. 

Me irrito com a dedução e me esgueiro para o corredor, a fim de tentar descobrir quem vai ser a infeliz da vez. Já nem consigo lembrar se ela vai ser a quinta ou a sexta em menos de sete meses. Mas não importa, porque no fim, ela não vai durar muito e meu irmão vai acabar piorando ainda mais. 

Miguel tem seis anos, e está passando pelo o que minha mãe chama de "fase difícil". De uns anos para cá, ele começou a ficar deprimido, carente, nervosamente agitado e até agressivo em alguns casos. Começou a frequentar psicólogo nos últimos três meses, quando minha mãe percebeu que talvez, só talvez, essa não seja apenas uma droga de "fase difícil".

Ela voltou a trabalhar quando ele tinha quatro anos, desde então, o convívio em casa foi mudando gradativamente até que quando menos percebemos, ele estava completamente mudado. Se eu pudesse, tirava a dor dele e a carregava sozinho, afinal estou acostumado. Vê-lo assim me quebra por dentro e só torço para que ele possa superar isso melhor do eu. Como se pudesse ouvir meus pensamentos, o meu maninho aparece silenciosamente e fica encostado em mim por um tempo. Essa é a manifestação de carinho que ele consegue oferecer, e só não é a única, pois Rosa e ele possuem sua própria linguagem de olhares e sorrisos cúmplices. 

Fico mais atento ao início da conversa entre minha mãe e a tal nova babá. 

— Você deve ser a Beatriz. Prazer, eu sou a Cecília. — Fala minha mãe em seu típico tom firme e educado. 
               
Beatriz? Sei que parece loucura, mas Beatriz não parece nome de senhora. 

— O prazer é meu. — Responde uma voz feminina agradável, que não soa como o de uma senhora, se é que isso também faz algum sentido. 

Sinto meu irmão endurecer a postura e automaticamente esqueço da conversa entre as duas. Inclino em sua direção e sussurro: 

— Vamos lavar esse rosto e tomar café maninho? — Digo em um tom de voz que uso exclusivamente para falar com ele. Um tom que transmite que mesmo que eu seja um irmão estranho, o amo. Ele vira em direção ao seu quarto e o sigo mais para confortá-lo do que para ajudar. 

Geralmente ele é acordado às seis e meia, mas hoje levantou sozinho como se pressentisse que aquele momento o afetaria pelas próximas semanas. Continuo me sentindo mal por ele enquanto o aguardo lavar seu rosto em sua pia, que ainda fica um pouco alta para sua pequena altura. 

Quando termina, se enxuga e passa por mim para sentar em sua cama bagunçada. Olha para frente sem prestar atenção em algo específico. Depois diz baixinho:

— Não tô com fome. — Soa triste, então sigo em sua direção e agacho até tentar ficar mais ou menos da sua altura, mas é algo difícil pros meus 1,82 m. Penso um pouco antes de decidir o que falar, regra básica criada por mim mesmo para situações importantes. 

— Tem certeza? Acho que tô sentindo cheiro de cuca de banana. — Não demora muito para eu ganhar mais sua atenção, afinal ele ama cuca de banana, se pudesse, comeria todos os dias. 

— Sério? — Pergunta como se desconfiasse que fosse uma armadilha. 

— Sim, mas se não for, eu prometo que saio para comprar uma para você. — Respondo sorrindo, e ele me encara com seus olhos azuis, que sinceramente, me fariam comprar cuca de banana todos os dias... Ah se ele soubesse desse seu poder de gato do Shrek, penso. 

Ele se levanta e segue em direção a sala trajando seu pijama do Toy Story, que tanto gosta. Eu demoro um pouco ao fazer o mesmo, e caminho até ao que de fato é sua armadilha querendo ou não, mas antes de me fazer percebido vejo uma garota que parece ser bem mais nova do que eu sentada próxima a minha mãe. 

Seu cabelo castanho escuro está preso em um rabo de cavalo, que deixa evidente uma charmosa franja na testa e fios soltos nas laterais. Está vestindo uma camiseta azul escura básica quase do mesmo tom que a minha, e eu só penso que percebi isso, por essa cor contrastar tão bem em sua pele branca e por seu modesto decote em V dar uma pequena visão do seu busto. Engulo em seco, porque ela é desconcertantemente bonita. Penso primeiro em como dever ser além desse decote, mas meus pensamentos são interrompidos pois noto que está dirigindo ao mesmo irmão, enquanto o mesmo murmura algo baixo em resposta. 

Decido entrar de vez na sala e tentar ajudar o meu irmão a se sentir o mais confortável possível diante dessa situação. Chego a tempo de ouvir minha mãe terminar de contar algo a Miguel — vai te ajudar com o que você precisar, tá bem? — Que coisa mais idiota de dizer para ele.

Puxo uma cadeira para sentar ao lado de Miguel, enquanto encaro irritado, um par de olhos azuis que parecem estar surpresos com minha presença. Por que essa reação dela me dá um frio na barriga? Mas que inferno! 

— É sério, que essa menina é a nova babá? — Pergunto, me dirigindo agora para minha mãe, mais em uma tentativa de escapar dos olhos azuis que ainda me buscam, do que em fazer uma cena. 

—Tiago, por favor... - Responde minha mãe em um tom que sempre usa comigo, como se dissesse que está cansada. Só não sei dizer se é de mim, ou de Miguel, ou de tudo que ela considera um fardo em sua vida. — Essa é a Beatriz, ela começa amanhã.

Volto meu olhar para Beatriz, que agora me dá um meio sorriso sem graça, e reviro os olhos em resposta aos meus próprios pensamentos que surgem dizendo — desgraça de rosto bonito! —Ela fica ainda mais nervosa com minha reação e minha mãe tenta amenizar a situação: 

— Desculpa Beatriz... — Pede minha mãe e faz uma pausa que dura alguns segundos constrangedores — Vamos, eu te acompanho até a porta.

Ela afasta a cadeira educadamente e antes de se retirar, pensa por algum tempo antes de dirigir um olhar a Miguel: 

— Tchau Miguel, a gente se vê amanhã tá bom? — Diz em tom que quer dizer para esse menino a sua frente que ela se importa e que realmente quer vê-lo amanhã. Não é um tom culpado, típico da minha mãe ao falar com Miguel. Mas um mais delicado, que até parece um pouco com o que eu uso com ele. Reviro os olhos novamente em respostas a esses meus pensamentos absurdos mesmo sabendo que estou sendo um verdadeiro idiota.

— Tchau. — Meu maninho incomodado se limita a dizer baixo. 

Mais uma pessoa para decepcioná-lo. Coitado. 

— Deixa que eu a acompanho. — Anuncio. Minha mãe me olha séria e intervém: 

— Tiago, para com isso por favor. — A escuto, mas não levo em consideração o que falou. Não sei porque ela ainda tenta... Não gosto de me 'vê' nessa situação, pois parece que sou um cara de 22 anos mimado, que fica perturbando a vida da sua pobre mãe. Eu só não consigo ter mais paciência, ela praticamente sumiu quando nos demos conta do que estava acontecendo com o meu irmão. 

Beatriz segue parte do caminho e eu vou atrás. Ela para um pouco e se dirige a minha mãe: 

— Até amanhã senhora Cecília, e obrigada novamente pela oportunidade. — Fala em uma voz bonita e educada, que me dá um novo frio na barriga. Para piorar mais, ela se vira e me encara rapidamente... Fico momentaneamente nervoso. Juro que nem estou pensando direito, quando falo, me arrependo na hora: 

— Até amanhã Beatriz, vamos ver quantos dias você aguenta. — Digo sarcasticamente enquanto não desvio do seu olhar. Toda essa idiotice é apenas uma desculpa para poder admirá-la. 

Ela me olha séria, demonstrando claramente o quanto está irritada. Isso dura ao que parecem milhares de segundos até desviar em direção a Rosa, que a olha como se estivesse se desculpando por mim. O mundo não merece pessoas como ela. Pessoas que honram compromissos e respeitam sentimentos. Ela trabalha em nossa casa há mais de 7 anos e me sinto mais próximo dela do que dos meus próprios pais. Isso é possível mesmo a dona Rosa sendo uma mulher de poucas palavras. Eu gosto muito dela.

— Até mais tarde tia. — Se despede Beatriz. E eu me empertigo na hora ao ouvir a palavra tia. A Beatriz é sobrinha da dona Rosa? Meu deus! Olho para ela agora ainda mais envergonhado por ter destratado sua sobrinha. Bondosa como é, Rosa me responde com aquele semblante que diz que sou uma boa pessoa. Como gostaria de acreditar nela. 

— Até mais minha filha. — Rosa responde simples e amorosa. 

— Beatriz se vira mais uma vez para mim e me encara ainda mais irritada do que antes. Eu só consigo a observar surpreso. 

— Tchau Tiago, bom dia pra você também. — Termina sarcasticamente e então sai firmemente pela porta. 

Me demoro algum tempo encarando a porta branca a minha frente. Meus pensamentos só conseguem me alertar: Você tá ferrado! E eu concordo dizendo em um sussurro: Tô ferrado. 
                 

O Silêncio das PáginasOnde histórias criam vida. Descubra agora