Beatriz
— Estou indo beber água... Quer também? - Pergunta Tiago, me fazendo erguer os olhos das minhas anotações de Fonologia. Tenho uma prova importantíssima dessa matéria hoje e espero me sair bem.
— Quero sim... Obrigada. - Respondo e então ele sai da sala de estudos.
Já se passaram três semanas desde o, que eu gosto de chamar, "episódio do beijo". A Fabi prefere "episódio da pegação", mas eu a ignoro.
Nos primeiros dias, Tiago e eu tivemos dificuldade em olhar nos olhos um do outro. Por um segundo achei que o clima estranho não iria passar nunca, até que em uma quinta, Tiago me chamou para comer algo antes da nossa aula. Até pensei em recusar o convite, mas pior do que estava não poderia ficar, pensei.
Para minha surpresa, assim que sentamos a mesa, Tiago começou a conversar sobre diversos assuntos aleatórios, desde Senhor dos Anéis até a sua dificuldade em ler livros em formato digital. A conversa foi tão boa, que mal percebemos o tempo passar. Nos despedimos para irmos para as nossas respectivas aulas e não pude deixar de conter um sorriso o caminho inteiro. Se as coisas continuassem assim, seria maravilhoso.
Em parte eu estava certa. No decorrer dos dias, que logo se tornaram semanas, fomos nos conhecendo ainda mais e eu descobri nele, um amigo que eu não espera ser tão parecido comigo. Como nem tudo são flores, tínhamos alguns momentos estranhos como por exemplo, na segunda passada.
Ele me encontrou no nosso lugar de sempre, um banco de madeira que fica a frente de algumas árvores e próximo a biblioteca. Conversamos por vários minutos, até que eu decidi mostrar uma citação de O Sol e o Peixe da Virginia Woolf a ele. Ao abrir o livro, o marcador de página caiu no chão e para minha infelicidade, nós dois decidimos pegá-lo ao mesmo tempo.
Senti o toque da sua mão sobre a minha como se fosse brasa e para piorar, estávamos com o rosto tão perto um do outro, que pude senti sua respiração em mim. Aqueles microssegundos foram suficientes para que meu coração vacilasse. O "episódio do beijo" veio com tudo a minha mente e eu só consegui engolir em seco. Percebia em seu olhar, que estava escurecido, que pensava o mesmo que eu.
Fomos salvos pela chegada de Fabi, que debochadamente pigarreou, nos fazendo dar um pulo de volta aos nossos lugares. Como duas pessoas maduras, resolvemos esse pequeno momento da seguinte forma: não falando sobre este e fingindo que o mesmo nunca aconteceu. Particularmente, acho genial.
Nos dias seguintes, mantivemos nossa rotina de conversar antes de nossas aulas começarem até que a Fabi e o Diego chegassem para completar o grupo. A propósito, os dois parecem não se suportar, mas se esforçam em prol da política da boa vizinha. Claro que de vez em quando minha amiga xinga o Diego de 'safado da pior qualidade', mas no fundo eu sei que ela está se esforçando.
Nessa semana, Tiago me convidou para estudar na sala de estudos. Demorei a aceitar, pois acho que não é apropriado que eu fique frequentando os outros cômodos da casa, ainda mais, sozinha com ele. No entanto, ele me garantiu que não havia problema, que a mãe dele não se importaria e que se o Miguel não estava em casa, não tinha porquê eu me preocupar.
Por falar no Miguel, relembro como nossa relação está progredindo. Ele continua fazendo seus periódicos testes, mas agora sempre espera que eu tenha algum plano espetacularmente engenhoso e mal pode esperar para contar ao Tiago minhas peripécias: que eu quase dormi no banco da sua escola, ou que pedi a ele que fosse meu segurança particular assim que pegasse a faixa azul de judô, ou que meu sonho era ser piloto de avião igual ao Capitão de Os Pinguins de Madagascar e por isso, precisava que ele estudasse muito para ser meu co-piloto.
Tiago sempre o ouve atentamente, dando importância para cada palavra que seu irmão diz e sorri para ele a cada término de história. Depois, dirige um olhar significativo para mim, transmitindo sua gratidão silenciosamente.
Isso é algo normal entre amigos. Não, normal é pouco... É normalíssimo. Se fizesse uma pesquisa entre amigos, pode ter certeza que iria ter muitas declarações de histórias como as minhas.
— Desculpa a demora, fiquei conversando um pouco com a Rosa... - Diz Tiago, me tirando dos meus pensamentos longínquos enquanto me entrega um copo de água - E advinha só? Hoje vai ter lasanha a bolonhesa.
— Sério? - Pergunto abrindo um sorriso ao passo que ele assente - Que notícia boa! Eu estou precisando mesmo de algo para me acalmar. - Digo enquanto solto um suspiro de nervosismo.
— Bia, você vai tirar no mínimo nove nessa prova, não precisa se preocupar... Você é a Hermione Granger da UNILLE. - Termina seu argumento enquanto eu começo a rir.
— Quem me dera Tiago Guimarães... Mas você sabe mesmo como elogiar uma garota... Valeu. - Comento. Ele acha graça e volta ao seu lugar para retomar o estudo.
Esse é um dos motivos que fazem nossa amizade ser fácil. Ele é engraçado, sempre tem alguma referência espertinha de Harry Potter na manga e ele ESTÁ USANDO A PORRA DESSES ÓCULOS DE NOVO!
Tiago me olha curiosamente e só então percebo como o estava observando (ok, eu o estava secando. Para de me julgar voz interior) por um tempo anormal. Também poxa... Esses óculos são uma covardia. A armação preta retangular contrasta tão bem em sua pele, a lente de qualidade permite que os seus olhos azuis fiquem com o brilho visível, quase como se a lente fosse transparente e sem contar que o deixam com um ar de nerd sexy que euzinha adoro.
Mas isso é uma observação que eu faria sobre qualquer amigo. O-B-S-E-R-V-A-Ç-Ã-O. E cala a boca voz interior.
— Eu... Seus... Seus óculos estão sujos. - Digo dando de ombros e voltando os olhos rapidamente para as minhas anotações. Sorte da Meryl Streep que eu não estou na jogada... O que seria da atuação dela em comparação a minha?
Tiago tira os óculos e coloca-os contra a luz para tentar encontrar uma sujeira inexistente. Foi até maldade, pois o coitado é maníaco por limpeza. Ou como diz a Fabiana: virginiano né mores.
Após limpar os óculos com o spray especial para lentes. Volta a se concentrar nos estudos e eu tento fazer o mesmo. Tiago não gosta de usar óculos, mas para a nossa infelicidade, não pode mais ignorar que as longas horas de estudo somadas as horas utilizando o computador fazem com que sua vista canse rapidamente.
Eu usando óculos fico com cara de adolescente e depois com uma marca vermelha no nariz. Tiago usando óculos fica maravilhoso, misterioso e gost... Gosto muito de estudar Fonologia... FOCO BEATRIZ!
Preciso voltar a estudar. Preciso voltar a estudar. Preciso voltar a estudar. Mas só vou dar uma olhadinha, sabe... Para me despedir.
Ergo os olhos timidamente como se estivesse espiando um padre tomando banho, e flagro o Tiago com uma das pontas dos óculos na boca. Está tão concentrado que não percebe o movimento de vai e vem que faz com as pontas pelos seus lábios. Meus olhos seguem-o como se fossem um pêndulo de hipnose. Engulo em seco.
Tiago ergue o olhar novamente para mim e eu empertigo em meu lugar.
— Que foi Bia? Você tá me olhando estranho de novo. - Diz enquanto me encara com ar desconfiado.
Pensa Beatriz! Pensa... Qualquer coisa. "Seus óculos estão sujos". Não, essa já foi. Meu deus mulher, você faz Letras-Português, lê quase oitenta livros por ano e está sem palavras, sério?
Tiago continua esperando por uma resposta e eu começo a sentir o suor na palma das mãos.
Socorro!
— Eu estava pensando... - Começo para ganhar tempo.
— Você estava pensando...? - Tiago repete me pressionando. E eu sinto que vou me ferrar.
— Quer sair nesse final de semana? - Pergunto e Tiago parece surpreso. EU PODERIA TER FALADO QUALQUER COISA... QUALQUER OUTRA DROGA DE COISA!
— Claro... - Responde Tiago um pouco sem jeito. - Tem algum lugar em mente?
Não, não tenho! Porque eu sou uma mentirosa de uma figa e vou acabar enfiando meu pé mais fundo nessa jaca.
— Que tal um cinema? - Sugiro e agora estou arrependida com todas as forças do meu ser.
— Eu acho ótimo! - Tiago responde em um tom um pouco alto e tenta corrigir - Eu acho ótimo. - E então baixa o olhar para o seu livro, mas consigo vê-lo tentando esconder um sorriso.
Brilhante Beatriz, simplesmente brilhante. Você. Tiago. Escuro. Proximidade. Não tem como dar errado, certo? Não pedi sua opinião voz interior. Não tem como dar errado, certo? Afinal, amigos vão ao cinema.
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O Silêncio das Páginas
RomanceBeatriz está desesperada! Seu contrato de estágio chegou ao fim e ela precisa encontrar um novo emprego urgente. Após conversar com Rosa, amiga de sua tia, consegue uma entrevista de emprego para ser babá na casa da família Guimarães. Cuidar de u...