Em Nome da Minha Sanidade

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Beatriz           

              Tia Rosa surge em nossa casa para nosso costumeiro café da tarde com direito a orelha de gato, rosca de polvilho e café passado. Conversamos animadas e comemoramos meu novo emprego. Minha tia Isabel ficou radiante! Mais por saber o quanto trabalhar é importante para mim, do que em como isso vai ajudar em casa. Mesmo com todas as dificuldades que uma professora passa para sustentar um lar, ela nunca me pressionou a contribuir mais ou buscar um trabalho em tempo integral. Em suas palavras "Só quero que você tenha uma ótima educação minha filha, depois de se formar você vai poder ralar mais" termina brincando com o infeliz fato de que minha escolha em ser professora, me levará por um difícil caminho devido a falta de valorização da profissão em nosso país. 
               Temos sido eu, minha tia Isabel e meu primo Lucas desde que me entendo por gente. Minha 'mãe' me teve muito nova, e ingenuamente achou que com meu nascimento, meu 'pai' iria mudar completamente. Quando percebeu que ele não tinha jeito, arquitetou um plano de me deixar sob os cuidados de sua irmã aos poucos, e aos três anos já praticamente morava com minha tia. De vez em quando ela aparece em um surto de culpa, e tenta ser minha amiga, tenta conseguir o meu perdão. Eu já nem me impressiono com seu egoísmo, afinal foram anos de experiência para que aos dezessete anos, eu me conformasse de vez que ela nunca foi e nunca seria uma mãe para mim. 
                Minha tia sempre cuidou bem de mim como se fosse sua própria filha e nunca falou mal da minha 'mãe' na minha frente. Mesmo depois que Lucas nasceu, ela e o meu falecido tio Carlos não me deixaram nem por um segundo, sentir que eu era uma intrusa ou um fardo ali. Quando o tio Carlos morreu após uma queda de um máquina na indústria metalúrgica em que trabalhava, a ouvi chorar por uma semana enquanto dava de mamar pro Lucas que tinha quase dois anos. Eu me encolhia no sofá enquanto a via nessa situação andando de um lado para outro. Um dia a ouvi falar entre soluços chorosos para tia Rosa: 
                 - Rosa, como vou sustentar esses dois? Antes já era difícil, mesmo com o .... mesmo com ele ajudando. - Ela nem conseguia dizer o nome dele. 
                 - Já tentou falar com a Isadora para pedir ajuda? - Perguntou tia Rosa, mesmo sabendo que a resposta provavelmente não seria boa. 
                 - Você sabe como ela é... Disse que o Marcos perdeu o emprego de novo e que as coisas estão difíceis para ele. - Terminou e limpou as lágrimas com as mãos. 
                 Tia Rosa segurou o ombro esquerdo da amiga, transmitindo em silêncio que sempre estaria ali por ela e por nós. 
                 Eu tinha quase seis anos na época. Saí de onde estava, entrei quietamente no quarto da tia Isabel onde o Lucas dormia como um anjinho em seu simples berço doado pela tia Rosa. Encarei suas bochechas rosadas onde sempre gostava de fazer carinho, então tomei um decisão e ela mudou tudo. 
                 Fui ao meu quartinho, peguei minha mochila de gatos e enchi com alguns conjuntos de roupas, uma toalha, minha escova de dente e um gibi da mônica que ainda não terminara de ler. Após fechar o zíper, voltei ao quarto da tia e sussurrei em direção ao berço:
                 - Tchauzinho Luquinhas, amo você. - Fechei a porta e fui em direção a cozinha, onde ainda estavam minhas tias. 
                 Ao me verem com minha mochila nas costas e de cabeça baixa, perguntaram o que eu estava fazendo. Sem jeito e inocentemente como só uma criança de seis anos consegue fazer disse: 
                 - Eu vô sair daqui tá bem tia? A tia não vai mais chorar e nem se chatear mais comigo. - Disse tentando engolir inutilmente um choro. 
                 Minhas tias olharam espantadas para mim e depois sustentaram um semblante de pena. Tia Isabel levantou de seu lugar e andou em minha direção, depois se agachou e pegando as minhas mãos olhou no fundo dos meus olhos para dizer: 
                 - Você minha filha, sempre vai ter um lugar nessa casa. Nunca vou te abandonar, ouviu bem? - Assenti ainda frágil. Ela continuou - A tia está passando por uma situação ruim, mas vai passar, nós vamos ficar bem viu? - Terminou e então me abraçou forte querendo que eu tivesse certeza que cada uma de suas palavras eram verdade. Que diferente da mulher que me abandonou e mentia para mim, ela não faria o mesmo. 
                Desde então nós três e tia Rosa formamos um time maluco e feliz, que venceu/vence as dificuldades com força, esperança e cafezinhos da tarde. 
                Volto a realidade ainda sorrindo com esse último pensamento e apoio minha xícara de café preto em cima da mesa. Minha tia Isabel acena a mão em frente a minha cara e tentando chamar atenção diz: 
                 - Oi mocinha... Volta para essa terra. - Diz rindo do meu hábito de me desligar e ficar perdida nos meus pensamentos como em As visões da Raven. Sorrio com a brincadeira, que nunca fica velha e falo:
                 - Desculpa tia, o quê foi?
                 - Me conta mais detalhes... A sua chefe foi legal? O Miguel gostou de você? Sabe que se eu depender da Rosa fico no escuro para sempre. - Termina olhando a tia Rosa que só sorri enquanto bebe seu café com leite, pois a tia Isabel é uma curiosa de boca cheia, enquanto sua melhor amiga é o oposto. 
                 - A dona Cecília é muito educada e direta, eu gostei disso. Mas é muito observadora também, e isso me deixou um pouco incomodada. Sabe que não sou acostumada com atenção dos outros. - Minha tia assente ficando triste por um segundo e eu decido continuar, porque não gosto de discutir os meus 'complexos'. - O Miguel não pareceu gostar de mim, mas também não pareceu odiar, então talvez seja um bom começo. - Finalizo sem saber para ser sincera, o que esperar dele. 
                 - E o apartamento como é? O pai dele estava lá também? - Eu disse, curiosa de boca cheia. 
                 - O lugar é enorme! Maior que nossa casa mesmo sendo um apartamento. É tudo cinza ou branco, mas não do jeito intocável e estranho que a gente costumava ver naquelas revistas da padaria. Mas de um jeito confortável. Eles têm um lustre na sala. - Pauso por ser interrompida por suas palminhas animadas. 
                 - Que chic meu deus. - Diz toda animada, enquanto tia Rosa só se diverte com sua curiosa e impressionável amiga.
                 - O pai dele não vi e é claro, não perguntei também. Infelizmente tive o desprazer de conhecer o outro filho mal educado dela. - E maravilhosamente lindo, mas nunca vou admitir essa parte. 
                 - Como assim? - Pergunta minha tia já enrijecendo no seu lugar de forma protetora. Ninguém dá nada por seus 1,50 m, rosto e corpo magro e pálido. Mas se mexer com algum de nós, ela vira uma leoa selvagem que protege suas crias. E não é uma cena bonita de ver, a outra vizinha que o diga. 
                 Penso bem nas palavras para não alimentar a fera e respiro fundo andes de contar:
                - Simplesmente, o Tiago, que não me conhece, decidiu ser grosso comigo por zero motivos. É só provavelmente mais um desses milhares de caras idiotas que existem no mundo. - Termino dando de ombros e tento esquecer o quanto a lembrança dos seus olhos azuis ainda fazem o meu coração bater um pouquinho mais forte. 
                - Minha filha, ele não é mau menino, só passou por muita coisa difícil. - Defende tia Rosa e não consigo controlar os pensamentos preconceituosos que vem a mente 'Tipo ter uma vida de luxo e provavelmente tudo do bom e do melhor', mas já me corrijo, pois não é justo julgar uma pessoa sem a conhecer de fato. Mesmo que a pessoa em questão tenha sido idiota. 
                 Suspiro mais uma vez irritada. Poxa vida, ele tinha que ser tão alto e bonito, e com aqueles cabelos loiros caindo de lado... Sem falar no perfume dele, que parece ter impregnado em mim de tão vívido que está na minha memória. Chega Beatriz! Você está parecendo um louca.
               - Bem, se ele continuar sendo grosso, você precisa reportar isso a dona Cecília. Está entendido? Eu sei que o trabalho é importante para você, mas nada nessa vida é mais valioso do que nossa dignidade e saúde mental. - Diz passando da mulher curiosa para uma séria e protetora em minutos. - E você sabe que no pior dos cenários, sempre pode pedir demissão e ... - E a corto, pois não quero atrair essa energia ruim:
               - Ok, não se preocupe tia, vou me defender e estabelecer limites. Fica calma. - Escuta atenta e tenta se acalmar tomando mais café preto. De quem será que puxei esse hábito... Me pego sorrindo para ela, que enfim se desmancha, porque ninguém resiste ao sorriso sincero de Beatriz Campos (pelo menos é assim que eu vejo na minha mente). 
               - Minhas queridas, vou me retirar... Tenho que ir para a faculdade. - Me despeço dando um beijo em cada. Pego minha mochila e saio apressada para não perder o ônibus. 
               Dou de cara com um Lucas suado, que provavelmente estava jogando futebol com os amigos. Ele é viciado em futebol e não o julgo, porque sou em livros. Mas pelo menos os livros não me deixam fedorenta após uma hora de leitura. 
              - Oi priminha. - Diz zombando dos meus 1,65 m, que comparado aos seus quase 1,80 m me tornam uma banqueta. 
              - Você sabe que sou mais velha né priminho? - Respondo fazendo bico - E vê se toma um banho que você está pingando de suor. - Retruco me sentindo vitoriosa, até que ele me dá um beijo melequento e suado. 
             - Que nojo Lucas! Sai pra lá! - Grito irritada e ele sai rindo da minha cara dizendo por alto:
             - Até mais tarde priminha. - E sei o que quer dizer. Ele sempre me busca na parada próxima a nossa casa para eu não voltar sozinha. Mesmo Joinville não sendo uma das cidades mais perigosas de Santa Catarina, ainda assim é um risco enorme para uma mulher andar sozinha pelas ruas, ainda mais a noite. Então Lucas sempre me espera lá para fazer a minha escolta. 
             É horrível ter que sempre temer pela sua segurança não importando o que você esteja vestindo, é horrível não poder ouvir música na rua por medo de não ouvir um possível perigo se aproximando, é horrível muitas vezes ser mulher nesse país, mas só me resta ser grata por meu primo estar ali por mim. 
            Sigo em direção a parada de ônibus e me perco pensando em um menino de seis anos, que ainda não faço ideia de como vou ajudar, uma mãe observadora e um cara grosso de cabelos dourados e olhos azuis, que espero não ver com frequência em nome da minha sanidade. 
               

O Silêncio das PáginasOnde histórias criam vida. Descubra agora