Prólogo

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A hora de nossa morte é um evento muito especial e particular. É nesse exato momento que toda a inocência do homem se encontra com seus sonhos de infância e sua alma assume a forma de uma gotícula de luz enquanto cai de volta para as estrelas.

Dizem que, independente de quem você seja, ou da maneira que você escolheu para levar a sua vida, é nesse momento que todo o seu crescimento emocional e sua evolução espiritual adquirido serão postos à prova. Porque essa é a única e verdadeira oportunidade que você terá para se conhecer, de dentro para fora. De verdade.

Muitas das pessoas que estão para cruzar essa linha entre a vida e a morte surpreendem-se ao olhar para o seu interior, no momento da sua partida, e não se reconhecer. Alguns dizem que a morte é injusta, iníqua. Que chega de forma tão invisível e silenciosa, que é impossível para alguém estar, de fato, preparado para iniciar uma nova jornada.

Aos olhos daquela criança que é dragada para as profundezas lamacentas do lago, a morte não é justa e nem injusta, mas sim algo que sempre a ensinaram a temer, pois ela a levaria para longe de tudo e de todos. E esse é o seu único sentimento ali. Um medo cru e real de nunca mais ver seu pai, sua mãe e seus amigos. O medo do desconhecido. Da escuridão para a qual ela se encaminha.

Lutando para segurar a vontade de respirar, o garoto nada pode fazer para impedir que a correnteza arraste o seu corpo queimado e quebrado, desfalcado de sua perna esquerda, cada vez mais para longe da superfície. Pedaços incandescentes de madeira e metal boiando na superfície iluminam parcamente o seu caminho até o fundo, como um fogo fátuo que guia as almas até o mundo dos mortos. No leito do lago, algas compridas levitam delicadamente na água, como braços aguardando a chegada daquele ser para envolvê-lo em seu abraço final.

A queimação em seus pulmões, causada pela ausência de oxigênio aumenta a cada segundo, chegando ao ponto dele não conseguir mais ir contra o seu instinto e acaba por abrir a sua boca à procura de ar.

A primeira sorvada de água desce rasgando a sua traqueia e, de certo modo, trazendo-o de volta de seu torpor inicial. A sensação, porém, é bem diferente do que imaginava - para pior. O desespero faz com que o garoto debata seus membros restantes de forma caótica e desajeitada. A segunda e a terceira golada já nem são mais sentidas. Seu cérebro estava lentamente se desligando devido à falta de oxigênio e seu corpo entrando em estado de choque. Estava morrendo e sabia disso.

Em um último esforço a criança abre seus olhos, a fim de se despedir do mundo. Da luz. Na superfície, o que restou do avião bimotor teimava em permanecer boiando. E foi no meio disso tudo que ele a vê pela primeira vez.

Os raios de sol matutino que o guiavam ao abismo da morte emolduram a presença daquela figura celestial. Suas asas, como labaredas de fogo cintilante, dançam livres, sem sofrer as ações da correnteza, da gravidade ou de quaisquer outras leis da natureza conhecidas pelo homem.

A criança consegue distinguir apenas a silhueta da entidade e admite para si mesma que esse anjo - se é que isso fosse um -, não lembra em nada as imagens e ilustrações que estava habituada a ver. Esse anjo parece ser muito maior que um ser humano normal. Uma armadura metálica espacial o protege da cabeça aos pés, lembrando muito mais um explorador alienígena ou um guerreiro cósmico do que uma manifestação divina.

Talvez o céu e o inferno não sejam nossos destinos em outros planos ou realidades, mas sim em outros planetas, afinal de contas.

O anjo da morte se aproxima flutuando de uma forma graciosa e, gentilmente estende sua mão protegida por uma manopla de combate estelar, em uma tentativa de tocá-lo. O gesto percorre metade da distância entre eles. Cabe ao menino percorrer com a sua mão a outra metade.

A princípio o garoto se contém. Apenas para em seguida, com uma força que ele achava que seu corpo já não mais possuía, estender a sua mão em direção à do celestial e tocá-lo.

O toque no metal de sua armadura, da palma de sua mão não é frio como o esperado. Pelo contrário. O menino sente um calor irradiar por todo o seu corpo, acalentando e aquecendo o seu espírito. De repente ele já não sente mais dor, medo ou desespero. Seus ossos quebrados, seus órgãos esmagados e sua perna decepada já não o incomodam mais.

Os olhos da entidade emitem um brilho azulado por detrás do visor de seu elmo. - Percorri eras atrás de você e finalmente o encontrei. Não se preocupe, você está a salvo. Não vai morrer.

O anjo não possui boca. Pelo menos não aparente. Suas palavras ecoam diretamente na mente do jovem. E, por alguma razão, isso soa como uma verdade absoluta do universo. Ele realmente se sente a salvo e acolhido, como em meio a um abraço maternal.

O celestial subitamente levanta sua cabeça, como se tivesse ouvido alguma coisa ou localizado algo que procurava. Algo que chama a sua atenção. Partes retraídas de seu capacete se movimentam e se fecham ainda mais, como se preparando para uma viagem interdimensional. Seus olhos emitem o brilho anil novamente, mas dessa vez a luz se expande envolvendo-o por inteiro. Seu corpo se transforma em uma esfera de energia cósmica e parte em direção aos céus, sumindo em frações de segundos entre as pesadas nuvens de uma tempestade que começava a se formar.

Ogaroto finalmente cerra seus olhos e adormece.

Armacell - Primeiro ImpactoOnde histórias criam vida. Descubra agora