Lisístrata 1

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-Há quantos anos estou com a senhora, mesmo? – perguntou a moça de cabelos negros trançados, enquanto, na beira do lago, modelava algo no barro frio.

-Hmmm, vish... Há uns dez anos? Estou quase perdendo a conta, minha pequena. – respondeu a senhora negra de cabelos brancos, sentada ao seu lado numa cadeira d embalar.

-Dez anos... E eu com quase 18 e a senhora me chama ainda de "minha pequena". Hahaha!

-Ah, sempre será. Sente saudades de sua família, não é?

-Não sei se "saudade" é o que define melhor. A senhora se tornou minha família. Eles... sei lá. Apenas fico curiosa sobre como estão. E se pretendem me rever.

-Eles quiseram te proteger, você sabe. Na época, uns homens descobriram suas habilidades e te sequestraram. Lembra?

-Pois é, essa parte me parece tão nebulosa em minha memórias.

-Você devia ter uns cinco anos e já atraia olhares. Sua mãe contou que você estava assim, brincando na rua na frente de casa, com barro, potinhos e talheres com seus amigos e seus irmãos. Quando subitamente, ao modelar um animal, não lembro qual, deu vida a ele. Assustou todo mundo, claro. No início pensaram que o bicho estava escondido ali perto. Contudo, logo depois eles viram com mais clareza que saiu do barro em suas mãos.

-Por que será que nasci com isso?

-Mistérios da vida, meu bem.

-Essa minha primeira família morava em Gavinus, né?

-Isso, no extremo oeste, num vilarejo qualquer.

-Quem estava atrás de mim?

-Um servidor qualquer do governo, acho que um Vereador. Tentou te comprar, oferecendo muito dinheiro aos seus pais.

-Eles recusaram? – a menina a olhou.

-Claro. Se não nem estaria aqui.

-E como te conheceram? Como parei aqui?

-Uma de suas irmãs mais velhas se ofereceu para te levar o mais longe possível e me encontrou, numa noite de temporal. Eu a abriguei, na época morava em outro lugar. Ela me contou tudo rapidamente e decidi ficar com você. Por segurança, nos mudamos.

-Foi nessa época que meu avô emprestado faleceu, não foi?

-Sim, sim... E então viemos para cá, um canto qualquer de Santa Yória.

-Ninguém sabe, então, onde estamos.

-A princípio, não.

-Em pensar que esse lago estava à beira da morte há uns meses... – a garota desviou o assunto.

-Hmm? Ah sim, sim...

O lago possuía uma coloração negra, seu centro devia chegar a vinte metros de profundidade. Por pouco não secara totalmente, devido a uma forte seca que assolou o país nos últimos meses. Uma família de patos deslizava pela superfície tranquila.

-Bem, minha querida, vou entrar para passar um café.

-Está bem, vou terminar aqui e já vou.

A senhora pegou sua cadeira e entrou no chalé.

Este ano, Lisistrata deveria pensar em que rumo profissional escolher. Não fazia ideia, mas na melhor das hipóteses, trabalharia num mercado qualquer só para ajudar nas contas. Sempre viveu em torno do seu vilarejo, nunca havia ido para o centro comercial. Tinha curiosidade, pois, agora que a vida escolar encerrara, a monotonia começava a incomodar.

O sol se punha no horizonte e a sombra dos pinheiros que cercavam sua casa se estendia até o começo do lago onde Lis continuava a modelar. Com o barro em suas mãos, deu forma a um boi. Subitamente, ele se mexeu e saltou, caminhando desajeitado na direção da água. Ao se molhar, se pôs a desmanchar.

A noite baixou e Lis , quando ia se deitar, teve vontade dar uma caminhada do lado de fora. Uma brisa fresca balançava os galhos das árvores, sinais do outono que recém chegava. Dona Penelope lhe advertiu para não demorar e nem ir muito longe.

-A senhora se esquece de que não sou mais criança, né? Hahaha. Daqui a pouco vai dizer que o lobo mau pode me pegar.

-Tááá! – e as duas gargalharam.

Ela carregava um lampião para iluminar seu caminho, apesar de que a orbe lunar em duas noites alcançaria seu ápice. Embrenhou-se na mata e percorreu uma trilha que apenas ela sabia das demarcações. Por um lado, sabia que se uma pessoa qualquer encontra-se aquilo, não ia adiantar de nada. Apenas ela tinha o poder. Ainda assim preferia manter a cautela.

Desceu um caminho íngreme cheio de pedregulhos e cipós a lhe atravessar, até que desembocou num espaço parcialmente rodeado por paredões de rocha. Pelo chão, sinais de desmoronamento, grandes pedras espalhadas. No centro, um volume chamava atenção: um amontoado organizado de pedras de diversos tamanhos, lembrando um lagarto gigante.

-Python...

Lis acariciou o que devia ser a cabeça do animal de pedregulhos e escutou estalos.

Retirou a mão rapidamente e se voltou para todos os lados com o lampião.

-Quem está aí?!

- O lobo mau, ora...

Disse uma voz masculina, sabe se lá de onde.

Crônicas de St. YóriaOnde histórias criam vida. Descubra agora