Lisístrata 3

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Além de passar a noite espirrando, quando conseguia sonhar, era amedrontada por gritos desesperados e de um casal de jovens. Via a silhueta de Dona Penélope, corpos sem rosto no chão, fuga, sensação de estar sendo carregada com pressa, lua cheia, folhas a cair. Sonhos, aliás, pesadelos, que a perseguiam há meses.

-Aconteceu alguma coisa ontem à noite? Vi roupas suas encharcadas – perguntou Dona Penélope quando serviu o café preto novinho na xícara da moça. – Entrou no rio naquele frio?!

Lis manteve-se uns instantes em silencio, e enquanto cortava o pão salgado pensava numa explicação.

-Sim, vó, entrei no rio. Deu vontade e tomei banho, só isso. Não dizem antigos escritos de que banho gelado faz bem?

-Tá é muita estranha essa história. – tomando seu café, a senhora semicerrou os olhos e ficou observando a garota. Lis fazia de conta que nem percebia e passava margarina no pão.

Dona Penélope, de repente, saltou da cadeira e se levantou apressada. Foi direto ao calendário e deslizou o dedo indicador pelos dias daquele mês.

-O que houve, vovó?

A senhora engoliu em seco e apertou os lábios. Parecia aflita.

-Me perdi nos dias... Em breve será lua cheia após o equinócio de outono! – Dona Penélope falava para si mesma, mas não percebeu que verbalizava alto.

-E daí?

-Huh? E daí o quê?

-Ué, e daí que é lua cheia de outono?

-Ah, você ouviu? Ou está lendo pensamentos também???

-Vó, não viaja! Você acabou de dizer isso, bem alto.

-Ah... – ela levou a mão à testa. – Vou dar comida para os bichos.

-Eu hein...

Minutos depois, Lis lavava sua xícara na pia. A janela da cozinha ficava bem ali em cima e de frente para o lago. Dali podia ver sua vó, parada, contemplando a natureza. Os patos a rodeavam esperando mais milho.

- O que deu nela?

Lis terminou o que fazia e foi olhar no calendário: faltava um dia apenas para a lua cheia.

Alguém bateu palmas lá do portão de madeira, coisa rara de se acontecer. Dona Penélope foi lá atender e Lis a espiou de outra janela, agora do próprio quarto, cuja visão dava para a entrada de seu terreno.

Era um homem, todo vestido de preto, dos pés à cabeça, com apenas os olhos de fora.

-Que isso?

Eles pareceram ter uma conversa bem acalorada , pois gesticulavam com veemência. Dona Penélope tinha o semblante irritado. Lis achou melhor ir até lá.

- Precisa de ajuda, vovó?

Os dois levaram um susto, não haviam percebido a aproximação da garota. O homem se despediu rapidamente e foi embora pelo caminho da floresta que cercava o local.

- Não se preocupe, minha querida. Vou preparar o almoço. – disse a senhora, séria, se afastando.

Lis não entendeu bulhufas. Virou-se na direção do caminho da floresta, o homem já havia desaparecido de vista. Ela deu de ombros e suspirou. Girou nos calcanhares pretendendo voltar para dentro, ao que foi derrubado no chão por algo muito ligeiro e pesado.

-Ei! – gritou zangada. Uma lebre marrom com orelhas douradas, maior do que o normal, a observava debaixo do portão. – Que linda... Nunca a vi antes.

De quatro, caminhou na direção do animal, chegou bem perto e quase a tocou, se ela não tivesse passado por baixo do portão e corrido.

-Ah, droga. Só ia fazer um carinho!

Lis se levantou e bateu nos joelhos para tirar a terra. Foi até o portão e viu a lebre olhando para ela, lá do meio da floresta.

-Ah , mas agora te pego!

Ela deu um salto por cima do portão e correu atrás do bicho. Contudo, a lebre não seguiu o caminho e adentrou no matagal sem qualquer trilha e sumiu.

-Hmmm, brincando de esconde-esconde, hein?

Andou devagar pelo denso mato, na floresta de pinheiros e avistou uma enorme colmeia. Parou e contemplou as abelhas voando ao redor. Ao pé da árvore, a lebre a observava. Estaria a chamando?

-Se eu levar uma picada, torcerei teu pescocinho, sua lebre obesa!

O animal desapareceu, como se fosse uma miragem.

-Hã?! Um fantasma?!

Num enxame, as abelhas desceram até a garota, que recuou lentamente.

-Ai, ai, de mim...

A formação das abelhas de intenso zumbido a assemelhava a uma silhueta humana. Dela, centenas de vozes femininas disseram, em uníssono:

-Filha da Terra,escute nossa advertência. Vá embora antes da lua cheia. Sua vida corre perigo.Vá para longe, muito longe, atravesse a cidade grande e procure pelos grifos emOberon. Não se engane, pois quem tanto te ama, em verdade é um lobo em pele decordeiro. Vá, criança, vá!  

Crônicas de St. YóriaOnde histórias criam vida. Descubra agora