Além de passar a noite espirrando, quando conseguia sonhar, era amedrontada por gritos desesperados e de um casal de jovens. Via a silhueta de Dona Penélope, corpos sem rosto no chão, fuga, sensação de estar sendo carregada com pressa, lua cheia, folhas a cair. Sonhos, aliás, pesadelos, que a perseguiam há meses.
-Aconteceu alguma coisa ontem à noite? Vi roupas suas encharcadas – perguntou Dona Penélope quando serviu o café preto novinho na xícara da moça. – Entrou no rio naquele frio?!
Lis manteve-se uns instantes em silencio, e enquanto cortava o pão salgado pensava numa explicação.
-Sim, vó, entrei no rio. Deu vontade e tomei banho, só isso. Não dizem antigos escritos de que banho gelado faz bem?
-Tá é muita estranha essa história. – tomando seu café, a senhora semicerrou os olhos e ficou observando a garota. Lis fazia de conta que nem percebia e passava margarina no pão.
Dona Penélope, de repente, saltou da cadeira e se levantou apressada. Foi direto ao calendário e deslizou o dedo indicador pelos dias daquele mês.
-O que houve, vovó?
A senhora engoliu em seco e apertou os lábios. Parecia aflita.
-Me perdi nos dias... Em breve será lua cheia após o equinócio de outono! – Dona Penélope falava para si mesma, mas não percebeu que verbalizava alto.
-E daí?
-Huh? E daí o quê?
-Ué, e daí que é lua cheia de outono?
-Ah, você ouviu? Ou está lendo pensamentos também???
-Vó, não viaja! Você acabou de dizer isso, bem alto.
-Ah... – ela levou a mão à testa. – Vou dar comida para os bichos.
-Eu hein...
Minutos depois, Lis lavava sua xícara na pia. A janela da cozinha ficava bem ali em cima e de frente para o lago. Dali podia ver sua vó, parada, contemplando a natureza. Os patos a rodeavam esperando mais milho.
- O que deu nela?
Lis terminou o que fazia e foi olhar no calendário: faltava um dia apenas para a lua cheia.
Alguém bateu palmas lá do portão de madeira, coisa rara de se acontecer. Dona Penélope foi lá atender e Lis a espiou de outra janela, agora do próprio quarto, cuja visão dava para a entrada de seu terreno.
Era um homem, todo vestido de preto, dos pés à cabeça, com apenas os olhos de fora.
-Que isso?
Eles pareceram ter uma conversa bem acalorada , pois gesticulavam com veemência. Dona Penélope tinha o semblante irritado. Lis achou melhor ir até lá.
- Precisa de ajuda, vovó?
Os dois levaram um susto, não haviam percebido a aproximação da garota. O homem se despediu rapidamente e foi embora pelo caminho da floresta que cercava o local.
- Não se preocupe, minha querida. Vou preparar o almoço. – disse a senhora, séria, se afastando.
Lis não entendeu bulhufas. Virou-se na direção do caminho da floresta, o homem já havia desaparecido de vista. Ela deu de ombros e suspirou. Girou nos calcanhares pretendendo voltar para dentro, ao que foi derrubado no chão por algo muito ligeiro e pesado.
-Ei! – gritou zangada. Uma lebre marrom com orelhas douradas, maior do que o normal, a observava debaixo do portão. – Que linda... Nunca a vi antes.
De quatro, caminhou na direção do animal, chegou bem perto e quase a tocou, se ela não tivesse passado por baixo do portão e corrido.
-Ah, droga. Só ia fazer um carinho!
Lis se levantou e bateu nos joelhos para tirar a terra. Foi até o portão e viu a lebre olhando para ela, lá do meio da floresta.
-Ah , mas agora te pego!
Ela deu um salto por cima do portão e correu atrás do bicho. Contudo, a lebre não seguiu o caminho e adentrou no matagal sem qualquer trilha e sumiu.
-Hmmm, brincando de esconde-esconde, hein?
Andou devagar pelo denso mato, na floresta de pinheiros e avistou uma enorme colmeia. Parou e contemplou as abelhas voando ao redor. Ao pé da árvore, a lebre a observava. Estaria a chamando?
-Se eu levar uma picada, torcerei teu pescocinho, sua lebre obesa!
O animal desapareceu, como se fosse uma miragem.
-Hã?! Um fantasma?!
Num enxame, as abelhas desceram até a garota, que recuou lentamente.
-Ai, ai, de mim...
A formação das abelhas de intenso zumbido a assemelhava a uma silhueta humana. Dela, centenas de vozes femininas disseram, em uníssono:
-Filha da Terra,escute nossa advertência. Vá embora antes da lua cheia. Sua vida corre perigo.Vá para longe, muito longe, atravesse a cidade grande e procure pelos grifos emOberon. Não se engane, pois quem tanto te ama, em verdade é um lobo em pele decordeiro. Vá, criança, vá!
VOCÊ ESTÁ LENDO
Crônicas de St. Yória
FantasyAs "Crônicas de St. Yória" ocorrem num mundo em decadência, regido pela orbe vermelha de Marte, onde imperam os deuses do bronze e ferro das guerras. Endureceram os conflitos entre povos, as pessoas estão mais irritadiças, a violência multiplica-se...