Jó define-se como quem foi pó e há de ser pó: Abraão define-se como quem é pó. O texto sagrado não diz: converter-vos-eis em pó mas tornareis a ser pó. O que chamamos vida não é mais que um círculo que fazemos de pó a pó.
Parece-me que tenho provado a minha razão e a conseqüência dela. Se a quereis ver praticada em próprios termos, sou contente. Praticaram este desengano dois homens que sabiam mais de nós que nós: Abraão e Jó, com outro memento como o nosso, dizia a Deus: Memento quaeso, quod sicuit lutum feceris me, et in pulverem deduces me: Lembrai-vos, Senhor, que me fizestes de pó, e que em pó me haveis de tornar (Jó l0, 9). – Abraão, pedindo licença ou atrevimento para falar a Deus: Loquar ad Dominum, cum sim pulvis et cinis: Falar-vos-ei, Senhor, ainda que sou pó e cinza (Gên. 18, 27). – Já vedes a diferença dos termos que não pode ser maior, nem também mais natural ao nosso intento. Jó diz que foi pó e há de ser pó; Abraão não diz que foi, nem que há de ser, senão que já é pó: Cum sim pulvis et cinis. Se um destes homens fora morto e outro vivo, falavam muito propriamente, porque todo o vivo pode dizer: Eu fui pó, e hei de ser pó; e um morto, se falar, havia de dizer: Eu já sou pó. Mas Abraão que disse isto, não estava morto, senão vivo, como Jó; e Abraão e Jó não eram de diferente metal, nem de diferente natureza. Pois se ambos eram da mesma natureza, e ambos estavam vivos, como diz um que já é pó, e outro não diz que o é, senão que o foi e que o há de ser? Por isso mesmo. Porque Jó foi pó e há de ser pó, por isso Abraão é pó. Em Jó falou a morte, em
Abraão falou a vida, em ambos a natureza. Um descreveu-se pelo passado e pelo futuro, o outro definiu-se pelo presente; um reconheceu o efeito, o outro considerou a cousa; um disse o que era, o outro declarou o porquê. Porque Jó e Abraão e qualquer outro homem foi pó, por isso já é pó. Fostes pó e haveis de ser pó como Jó? Pois já sois pó como Abraão: Cum sim pulvis et cinis. Tudo temos no nosso texto, se bem se considera, porque as segundas palavras dele não só contêm a declaração, senão também a razão das primeiras. Pulvis es: sois pó. E por quê? Porque in pulverem mverteris: porque fostes pó e haveis de tomar a ser pó. Esta é a força da palavra reverteris, a qual não só significa o po que havemos de ser; senão também a pó que somos. Por isso não diz: convertetis, converter-vos-eis em pó, senão: reverteris, tomareis a ser o pó que fostes. Quando dizemos que os mortos se convertem em pó, falamos impropriamente, porque aquilo não é conversão, é reversão: reverteris. É tornar a ser na morte a pó que somos no nascimento; é tornar a ser na sepultura a pó que somos no campo damasceno. E porque somos pó e havemos de tomar a ser pó: Ia pulverem neverteris, por isso já somos pó: Pulvis es. – Não é exposição minha, senão formalidade do mesmo texto, com que Deus pronunciou a sentença de morte contra Adão: Donec reverteris in terram de qua sumptus es: quia pulvis es (Gên. 3,19): – Até que tomes a ser a tenra de que fostes formado, porque és pó. – De maneira que a razão e o porquê de sermos pó: Qutíapulvis es, é porque somos pó, e havemos de tomar a ser pó: Donec revertaris in terram de qua sumptus es. Só parece que se pode opor ou dizer em contrário, que aquele donec: até que, significa tempo em meio entre o pó que somos e o pó que havemos de ser, e que neste meio tempo não somos pó. Mas a mesma verdade divina que disse: donec, disse também: pulvis es. E a razão desta conseqüência está no reverteris, porque a reversão com que tornamos a ser a pó que fomos começa circularmente, não do último senão do primeiro ponto da vida. Notai. Esta nossa chamada vida não é mais que um círculo que fazemos de pó a pó: do pó que fomos ao pó que havemos de ser. Uns fazem o círculo maior, outros menor, outros mais pequeno, outros mínimo: De utero transíatus ad tumulum4. Mas, ou a caminho seja largo, ou breve, ou
brevíssimo, como é círculo de pó a pó, sempre e em qualquer parte da vida somos pó. Quem vai circularmente de um ponto para o mesmo ponto, quanto mais se aparta dele tanto mais se chega para ele; e quem quanto mais se aparta mais se chega, não se aparta. O pó que foi nosso princípio, esse mesmo, e não outro, é o nosso fim, e porque caminhamos circularmente deste pó para este pó, quanto mais parece que nos apartamos dele, tanto mais nos chegamos para ele; o passo que nos aparta, esse mesmo nos chega; o dia que faz a vida, esse mesmo a desfaz. E como esta roda que anda e desanda juntamente sempre nos vai moendo, sempre somos pó. Por isso, quando Deus intimau a Adão a reversão ou revolução deste circulo: Donec revertaris, das premissas: pó foste, e pó serás, tirou por conseqüência: pó és: Quia pulvis es. Assim que desde o primeiro instante da vida até o último nos devemos persuadir e assentar conosco, que não só somos e havemos de ser pó, senão que já a somos, e por isso mesmo. Foste pó e hás de ser pó? És pó: Pulvis es.

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Sermões
SonstigesREPUBLICAÇÃO AUTOR: Antônio Vieira APENAS SERMÇOES SELECIONADO PELA COMVEST 2021 O padre Antônio Vieira é das personagens mais importantes da história do Brasil e de Portugal no século XVII. Qualquer que seja a posição que se tenha quanto à sua atua...