O exemplo dos bárbaros passianos celebrando com festas a morte dos filhos, e os louvores dos romanos aos suicidas. Os suicídios de Saul, de Aquitofel e de Sansão. S. Paulo, os patriarcas da lei escrita e o desejo da morte.
Persuadidos os homens à verdade deste desengano, não é muito que a morte lhes começasse a parecer menos feia que a vida, antes que a vida lhes parecesse feia, e a morte formosa. Os passianos, e outras nações, que barbaramente se chamam bárbaras, choravam e pranteavam os nascimentos dos filhos, e celebravam com festas as suas mortes, porque entendiam que nascendo entravam aos trabalhos, e morrendo passavam ao descanso. E certamente que as lágrimas dos nascimentos os mesmos nascidos, sem mais ensino que o da natureza, as aprovam e ajudam com as suas, e as festas com que se celebravam as mortes também os mortos, pela experiência do seu descanso, se pudessem falar, as louvariam. Por isso Samuel, obrigado a falar com Saul depois de morto e sepultado, o que disse foi: Quare inquietasti me (1 Rs. 28, 15)? Por que me inquietaste? – Muitos filósofos, e particularmente os estóicos, cuja seita, pela preferência da virtude, se avizinhava mais ao lume da razão, não só davam licença aos seus professores para que antepusessem a morte à vida, mas aos que em caso de honra tomavam por suas mãos a mesma morte – a que chamavam porta da liberdade – os introduziam por ela à imortalidade da glória. Assim o fez aquele homem maior que todos os romanos, Catão, cujo juízo e autoridade, na opinião da mesma Roma, se punha em balança com a dos deuses, como soberbissimamente cantou dele Lucano, na demanda imperial de César com Pompeu:
Magno se judice quisque tuetur,
Victrix causa diis placuit, pars vicia Catoni[7]
E se alguém me replicar que estes homens eram gentios, eu lhe perguntarei primeiramente se era gentio Sansão, ou Saul, ou Aquitofel, e que fizeram em semelhantes casos? Sansão não duvidou matar-se a si mesmo, por se vingar, como ele disse, dos filisteus, pela injúria que lhe tinham feito em lhe arrancar os olhos. Saul, por não vir a mãos de seus inimigos, vencido em uma batalha, mandou a seu pajem da lança que o matasse, e porque não foi obedecido, ele, pondo a ponta da espada no peito, com todo o peso do corpo se atravessou nela. Aquitofel, que era o Catão dos hebreus, e cujos conselhos, por testemunho da Escritura Sagrada, eram como os oráculos do mesmo Deus, porque Absalão, cujas partes seguira, os não quis tomar, tornou ele por conselho antecipar por suas próprias mãos a morte, prevendo como sábio, que não podia deixar de ser vencedor Davi, a quem a tinha bem merecido. Mas, porque ainda aqui se pode dizer que as mortes de Aquitofel e Saul foram condenadas, e as razões que defendem haver sido lícita a de Sansão podem parecer duvidosas, ouçamos o que nos casos de antepor a morte à vida desejaram e pediram a Deus os mais abalizados santos, e canonizados por ele.
Moisés, governador supremo do povo de Deus, e o que mais é, com uma vara milagrosa e onipotente na mão, pediu ao mesmo Deus que o livrasse daquele peso, e se não, que o matasse antes, e lhe daria muitas graças por tamanha mercê: Sin aliter tibi videtur; obsecro ut interficias me, et inveniam gratiam in oculis tuis[8]. – Elias, fugindo à perseguição dá rainha Jesabel, lançado ao pé de uma árvore chamou pela morte: Petivit animae suae ut moreretur[9]– e disse a Deus: Basta já o vivido, Senhor, tirai-me a vida, pois não sou melhor que Abraão, Isac e Jacó, os quais descansam na sepultura: Sufficit mihi, Domine, tolle animam meara: negue enim meliorsum quam palres mei[10]. – Jó, o maior exemplo da paciência e constância, de tal modo se resolveu a querer antes morrer que viver, que, considerando todos os gêneros de morte possíveis, ainda aquela afrontosa e infame, que se dá aos facinorosos mais vis, tinha por melhor que a vida: Quamobrem suspendium elegit anima mea, et morrem ossa mea[11]. – Por isso, quando disse: Parte mihi – não foi pedir a Deus perdão dos pecados, senão que o deixasse morrer: Nequaquam ultrajam vivam, parce mihi[12]. – Estes eram os ais que, saindo do valente peito de Davi, o obrigavam a bradar, não porque se lhe estreitasse a vida, mas porque se lhe estendiam e alongavam os termos dela: Heu mihi, guia incolatus meus prolongatus est[13]! – E para que em um coro tão sublime nos não falte uma voz do terceiro céu, ouçamos a São Paulo: Infelix ego honro, quis me liberabit de corpore mortis hujus (Rom. 7, 24)? Miserável de mim, homem infeliz, quem me livrará já deste corpo mortal? – Em suma, que os maiores homens do mundo, em todos os estados do gênero humano, ou com fé, ou sem fé, ou na lei da natureza, ou na escrita, ou na da graça, sempre desejaram mais a morte do que estimaram a vida, e sempre em suas aflições e trabalhos apelaram do pó que somos sobre a terra para o pó que havemos de ser na sepultura.
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Sermões
De TodoREPUBLICAÇÃO AUTOR: Antônio Vieira APENAS SERMÇOES SELECIONADO PELA COMVEST 2021 O padre Antônio Vieira é das personagens mais importantes da história do Brasil e de Portugal no século XVII. Qualquer que seja a posição que se tenha quanto à sua atua...