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A distinção dos que dizem que é melhor a morte que a vida em respeito somente dos miseráveis e não dos infelizes. Se Elias fugia de Jesabel por temor da morte, por que deseja e pede a morte no mesmo tempo? As queixas de Sirac contra a morte e as queixas de Jó contra a vida. A morte, medo dos ricos e desejo dos pobres. O que diz Sêneca, o trágico, por boca do tirano Lico? Por que não caíram mortos Adão e Eva ao pé da mesma árvore onde comeram o fruto proibido, tanto que quebraram a lei?

De tudo o dito até aqui se segue que melhor é a morte que a vida, e que o maior bem da vida é a morte. Mas contra esta segunda parte, que é a primeira do meu assunto, inventou o amor da vida uma distinção fundada no que ela mais aborrece, que são as misérias, e no que mais estima, que são as felicidades. Fazendo, pois, uma grande diferença entre os miseráveis e os felizes, dizem os defensores da vida que para os miseráveis é maior bem a morte mas para os felizes não. E verdadeiramente este ditame parece da própria natureza, porque, consideradas a vida e a morte, cada uma por si só e em si mesma, a vida naturalmente é mais amável que a morte; acompanhada, porém, dos trabalhos, das misérias e das aflições que ela traz consigo, não há dúvida que muito melhor e mais para apetecer é a morte que a vida. Em todos os exemplos que acabamos de referir se vê clara. mente esta verdade, mas em nenhum com mais particular energia e reparo que no de Elias. Quando Elias desejou à morte, e a pediu a Deus, foi quando ia fugindo de Jesabel. E por que fugia Elias de Jesabel? Por temor da morte. Pois, se fugia por temor da morte, por que deseja e pede a morte no mesmo tempo? Porque então acabou de conhecer quanto melhor é a morte que a vida. Antes desta experiência, pela apreensão natural de todos os que vivemos, parecia-lhe a Elias que melhor era a vida que a morte; mas, depois que começou a subir montes e descer vales, de dia escondido nas grutas, de noite caminhando pelos horrores das sombras e dos desertos, figurando-se-lhe a cada penedo um homem armado e a cada rugir do vento uma fera, sem, outro comer nem beber mais que as raízes das ervas e os orvalhos do céu, cego sem guia, e solitário sem companhia – porque até um criadinho que levava consigo o despediu, por se não fiar dele – tudo miséria, tudo temor, tudo desconfiança, sem luz ou esperança de remédio, ou donde pudesse vir, no meio destas angústias, considerando o miserável profeta – noutras ocasiões tão animoso – quão trabalhosa e cara de sustentar lhe era a mesma vida duvidosa e incerta, pela qual tanto padecia, então acabou de conhecer quanto melhor lhe era o morrer que o viver, e por isso, despedindo-se da vida, pedia a morte: Tolle animam meam.

Estes são aqueles dois afetos ou aquelas duas queixas tão encontradas e tão concordes, uma de Sirac contra a morte, e outra de Jó contra a vida. Sirac diz: O mors, quam amara est memória tua homini pacem habenti (Eclo. 41, I )! Ó morte, quão amarga é a tua memória para o homem que vive com paz e descanso! – Não diz que para todos, senão para o que vive em paz e descanso, porque para o que vive em paz e descanso é amarga, para o que vive em trabalho e miséria é doce. E Jó dizia: Quare misero data est lux, et vila his qui in amaritudine sunt? Qui expectant mor-tem, et non venit, gaudentque vehementer cum invenerint sepulchrum (Jó 3, 20 ss)? Para que se dá a luz ao miserável, e a vida aos tristes, que esperam pela morte, a qual lhes tarda, e não têm maior alegria que quando acham a sepultura? – Também não diz que a morte tarda a todos, nem que todos se alegram com a sepultura, senão só os miseráveis e tristes, porque, assim como a morte e a sepultura para os contentes da vida é o seu maior temor, assim para os descontentes dela, e miseráveis, é o maior desejo. Por isso aquele filósofo, que refere Laércio, chamado Secundo, perguntadopelo imperador Adriano que era a morte, respondeu que era o medo dos ricos e o desejo dos pobres: Pavor divitum, desiderium pauperum[14]. – Melhor ainda, e mais nervosamente o disse Sêneca, o Trágico, por boca de Lico. Era Lico um famosíssimo tirano, o qual, na ausência de Hércules, matou a Creonte, rei legítimo de Tebas, e se lhe apoderou do reino. Este, pois, como tão grande mestre da tirania, dizia que quem matava à todos não sabia ser tirano: Qui morte cunctos luere supplicium jubet, nescit tyrannus esse. –Pois, que havia de fazer um tirano, para ser verdadeiramente tirano e cruel? Diz que havia de dar a morte a uns e a vida a outros, conforme a fortuna de cada um: aos felizes a morte, aos miseráveis a vida–Miserum vita perire, felicem jube: Ao feliz mandai que morra, ao miserável que viva – porque tanta pena é condenar o feliz à morte como o miserável à vida.

E para que uma doutrina tão conforme à comum estimação humana não fique profanada no nome e no autor, troquemos o nome de tirania no de justiça, e passemo-la do rei mais tirano ao Juiz mais reto. Caso é, assim como o maior do mundo, o mais admirável que, pondo Deus lei a Adão que, comendo da árvore vedada, morreria, comesse Eva e comesse o mesmo Adão, e não morressem. A observância das primeiras leis, e a execução dos primeiros castigos são os que fazem exemplo: faltando este, perde-se o respeito às leis e o temor aos castigos. Essa foi a razão da severidade com que São Pedro, aos primeiros delinqüentes da primitiva Igreja, Ananias e Safira, os fez cair de repente mortos a seus pés. Pois, por que não caíram também mortos Adão e Eva ao pé da mesma árvore onde comeram, tanto que quebraram a lei? Por isso mesmo: porque os quis Deus castigar. Para Deus castigar a Adão e Eva foi necessário que lhes comutasse a morte em vida, e o paraíso em desterro, porque só desta maneira se podia ajustar a ameaça da lei com o castigo da culpa. Assim foi. No paraíso ameaçou-os com a morte, no desterro castigou-os com a vida. No paraíso, que era a pátria de todas as felicidades, só podiam ser ameaçados com a morte, porque a morte é o maior terror dos felizes; e no desterro, que era o lugar de todas as misérias, só podiam ser castigados com a vida, porque a vida é todo o tormento dos miseráveis. Cuidam alguns que não matar Deus a Adão e Eva foi misericórdia, e não foi senão justiça, porque, perdidas as felicidades do paraíso, assim como o morrer seria remédio. assim o não morrer foi o castigo: logo, por todas estas razões e exemplos, não só humanos, senão ainda divinos, parece que é verdadeira a distinção dos que dizem que é melhor a morte que a vida, em respeito somente dos miseráveis, mas não dos felizes.

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