Quarto inimigo: o filósofo. O filósofo usa contra a Eucaristia argumentos tirados da natureza, e com a mesma natureza, mestra da fé, replica o autor. I objeção: as substâncias das coisas são imutáveis? Resposta: na nutrição do corpo humano os alimentos se transformam em substância de carne e sangue em menos de oito horas: o que a natureza faz devagar Deus faz depressa, e nisto é que está o milagre. II objeção: o todo é maior que a parte e a parte menor que o todo, logo Cristo não pode estar todo em uma parte da hóstia. Prova em contrário: o espelho quebrado. Comparação de Davi. III objeção: o entendimento julga pelos sentidos. Mas se a vista se engana nas obras da natureza, como o arco-íris, como não se enganar nas que são sobre a natureza?
O filósofo (que é gente tão cega pela presunção, como os que até agora vimos pela infidelidade) cuida que tem fortíssimos argumentos contra este mistério, e diz que não pode ser verdadeiro por muitos princípios. Primeiro, porque as naturezas e substâncias das coisas são imutáveis: logo o que era substância de pão, não se pode converter em substância de Cristo. Segundo, porque o todo é maior que a parte, e a parte menor que o todo: logo, se todo Cristo está em toda a hóstia, todo Cristo não pode estar em qualquer parte dela. Terceiro: porque o entendimento deve julgar conforme as espécies dos sentidos, que são as portas de todo o conhecimento humano: os sentidos cheiram, gostam e apalpam pão, logo pão é e não corpo de Cristo o que está naquela hóstia. Com a natureza argumenta o filósofo, e com a mesma natureza o há de convencer a razão, e muito facilmente e sem trabalho, porque com a fé ser sobrenatural, a melhor ou mais fácil mestra da fé é a natureza. Os profetas, que foram os que pregaram e ensinaram os mistérios da fé aos homens, não os mandou Deus ao mundo no tempo da lei da natureza, senão no tempo que se seguiu depois dela, que foi o da Escrita. E por quê? Douta e avisadamente Tertuliano: Praemisit tibi naturam magistrain submissurus et prophetiam, quo facilius crederes prophetiae discipulus naturae: Deu Deus primeiro aos homens por mestra a natureza, havendo-lhes de dar depois a profecia, porque as obras da natureza são rudimentos dos mistérios da graça, e muito mais facilmente aprenderiam os homens o que se lhes ensinasse na escola da fé, tendo sido primeiro discípulos da natureza: Quo facilius crederes prophetiae discipulus naturae. Se queres ser mestre na fé, faze-te discípulo da natureza, porque os exemplos da natureza te desatarão as dificuldades da fé. Ouça pois o filósofo, discípulo da natureza, por mais graduado que seja nela, e verá como lhe desfaz a razão com os princípios de sua mesma escola todos os argumentos que tem contra a fé daquele mistério.
À primeira dificuldade responde a razão que não tem a filosofia que se espantar de lhe dizer a fé que a substância do pão se converte na substância do corpo, e a substância do vinho na substância do sangue de Cristo, porque este milagre vemos sensivelmente cada dia na nutrição natural do corpo humano. Na nutrição natural do corpo humano a substância do pão e do vinho não se converte em substância de carne e sangue? Pois, se a natureza é poderosa para converter pão e vinho em carne e sangue em espaço de oito horas, por que não será poderoso Deus a converter pão e vinho em substância de carne e sangue em menos tempo? Para confessar este milagre, não é necessário crer que Deus é mais poderoso que a natureza; basta conceder que é mais apressado. O que a natureza faz devagar, por que o não fará Deus um pouco mais depressa? Os dois milagres célebres que Cristo fez em pão e vinho, foram as bodas de Caná e o do deserto: nas bodas converteu a água em vinho; no deserto, com cinco pães, deu de comer a cinco mil homens26. Um reparo a ambos os casos. Para Cristo dar pão no deserto, não tinha necessidade de se aproveitar dos cinco pães; para Cristo dar vinho nas bodas, não tinha necessidade de que as jarras se enchessem de água. Pois por que não quis dar vinho, senão convertido de água? Por que não quis dar pão, senão multiplicado de pães? A razão foi, diz Santo Agostinho, porque quis que nos exemplos da natureza se facilitasse a fé das suas maravilhas27. Na multiplicação dos pães, fez o que faz a terra; na conversão do vinho, fez o que fazem as vides. Na multiplicação dos pães, fez o que faz a terra, porque a terra, semeiam-lhe pouco pão, e dá muito; na conversão do vinho, fez o que fazem as vides, porque as vides, a água que chove do céu, convertem em vinho. Isto fez Cristo no deserto, isto fez Cristo nas bodas. No deserto, de pouco pão fez muito; nas bodas, de água fez vinho. Mas se Cristo fez o que faz a terra, se Cristo fez o que fazem as vides, em que esteve o milagre? Esteve o milagre em que Cristo fez em um instante o que a terra e as vides fazem em seis meses. Oh! que boa doutrina esta, se fora hoje o seu dia! De maneira que o que distingue as obras de Deus, enquanto autor sobrenatural das obras da natureza, é a pressa ou o vagar com que se fazem. Milagres feitos devagar são obras da natureza: obras da natureza feitas depressa são milagres. Isto é o que passa no nosso mistério. Converter pão e vinho em carne e sangue, assim como o faz Cristo no Sacramento, assim o faz a natureza na nutrição, mas com esta diferença, que a natureza fá-lo em muitas horas, e Cristo em um instante. Pois, filósofo, o que a natureza faz devagar, o autor da natureza e da graça, por que o não fará depressa? O impossível de estar todo em todo, e todo em qualquer parte, também o descrerá o filósofo e confessará facilmente que é possível, se tornar à escola da natureza. Tome o filósofo nas mãos um espelho de Cristal, veja-se nele, e verá uma só figura. Quebre logo esse espelho, e que verá? Verá tantas vezes multiplicada a mesma figura quantas são as partes do Cristal, e tão inteira e perfeita nas partes grandes e maiores, como nas pequenas, como nas menores, como nas mínimas. Pois assim como um Cristal inteiro é um só espelho, e dividido são muitos espelhos, assim aquele circulo branco de pão, inteiro é uma só hóstia, e partido são muitas. E assim como se parte o Cristal sem se partir a figura, assim se parte a hóstia sem partir o corpo de Cristo. E assim como a figura está em todo o Cristal, e toda em qualquer parte dele, ainda que seja muito pequena, assim em toda a hóstia está todo Cristo, e todo em qualquer parte dela, por menor e por mínima que seja. E assim, finalmente, como o rosto que se vê no Cristal, dividido em tantas partes, é sempre um só e o mesmo, e somente se multiplicam as imagens dele, assim também o corpo de Cristo, que está na hóstia dividido em tantas partes, é sempre um só corpo, e somente se multiplicam as suas presenças. Lá o objeto é um só e as imagens são muitas; cá da mesma maneira as presenças são muitas, mas o objeto é um só. Pode haver semelhança mais viva? Pode haver propriedade mais própria? Parece que criou Deus o mistério do Cristal só para espelho do sacramento. Assim o disse Davi e o entendeu a Igreja: Mittit crystallum suam sicut bucelías: Deita Deus os seus Cristais do céu à terra como bocados de pão28. Notável, como peregrina comparação! Que semelhança têm os bocados de pão com o Cristal, ou o Cristal com os bocados de pão? Com os bocados do pão usual da vossa mesa, nenhum; mas com os bocados do Pão Sacramental da mesa eucarística, toda aquela semelhança maravilhosa, que vistes. Porque tudo o que no Cristal se vê como por vidraças, é o que passa dentro no Sacramento com as cortinas corridas. Assim como no Cristal se vê por milagre manifesto da natureza o todo sem ocupar mais que a parte, a divisão sem destruir a inteireza, e a multiplicação sem exceder a singularidade, assim na hóstia, com oculta e sobrenatural maravilha, o mesmo corpo de Cristo é um e infinitamente multiplicado, dividido, e sempre inteiro, e tão todo na parte como no todo.
E que não haja o filósofo de crer aos olhos, ainda que lhe digam contestemente que ali está pão, a mesma natureza lho ensina com um notável exemplo. Na íris, ou arco celeste, todos os nossos olhos jurarão que estão vendo variedade de cores, e contudo ensina a verdadeira filosofia que naquele arco não há cores, senão luz e água. Pois se a filosofia ensina que não há cor onde os olhos estão vendo cor que muito que ensine a fé que não há pão onde os olhos parece que vêem pão? Por isso dizia Davi, falando de seus olhos, uma coisa muito digna de reparar, em que ninguém repara: Revela oculos meos, et considerabo mirabilia de lege tua (SI. 118, 18): Senhor, revelai-me os olhos, e considerarei vossas maravilhas. Parece que havia de dizer o profeta: Senhor, revelai-me vossas maravilhas, para que eu as conheça, mas revelai-me os olhos para que conheça vossas maravilhas! Sim, porque muitas vezes os olhos contradizem as maravilhas de Deus, como se vê no mistério da Eucaristia. E para entender semelhantes maravilhas, são necessárias duas revelações: uma revelação nas maravilhas, para que o entendimento as conheça, outra revelação nos olhos, para que a vista as não contradiga. Mas esta segunda revelação não é necessário que a faça Deus; basta que a faça a razão. Se a vista se engana nas obras da natureza, nas que são sobre a natureza, como se não há de enganar? E se em um arco de luz e nuvem assim erram e desatinam os olhos, em um círculo de nuvem sem luz, que crédito lhes há de dar? Emende logo o filósofo a vista com o discurso, e confesse ensinado da natureza e convencido da razão a verdade indubitável daquele Vere: Vere est cibus, vere est potus.
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Sermões
RandomREPUBLICAÇÃO AUTOR: Antônio Vieira APENAS SERMÇOES SELECIONADO PELA COMVEST 2021 O padre Antônio Vieira é das personagens mais importantes da história do Brasil e de Portugal no século XVII. Qualquer que seja a posição que se tenha quanto à sua atua...