Segundo inimigo: o gentio. O exemplo de Atreu, dando a comer as carnes de seu filho. Averróis horroriza-se com as palavras de Cristo. Apoiando-se em Tertuliano, o autor usa contra os gentios suas próprias fábulas. A idolatria é degrau para a fé. Vários exemplos tirados da mitologia. Nada há de descrédito para nossa religião nessas semelhanças. Davi e S. Pedro encarecem os mistérios da fé comparando-os com as fábulas pagãs. Se o gentio crê na fábula, que é arremedo, por que não crer na existência verdadeira de suas fábulas?
Ao gentio também lhe parece impossível este mistério, e a maior dificuldade que acha nele, são as mesmas palavras de Cristo: Caro mea vere est cibus, et sanguis meus vere est potus. Como é possível, diz o gentio, que seja Deus quem diz que lhe comam a carne e lhe bebam o sangue? Quando Atreu deu a comer a Tiestes a carne de seu filho, diz a gentilidade, que fez tal horror este caso à mesma natureza, que o sol contra seu curso tornou atrás, por não contaminar a pureza de seus raios dando luz a tão abominável mesa8. Como pode logo ser Deus quem diz que lhe comam a carne e lhe bebam o sangue? E como podem ser homens os que comem a carne e bebem o sangue a seu próprio Deus? Pareceu tão forçoso este argumento, tão desumana esta ação a Averróis, comentador de Aristóteles, que só por não ser de uma lei em que era obrigado a comer seu Deus, não quis ser cristão, e se deixou morrer gentio.
Aos argumentos dos gentios prometeu a razão que responderia com as suas fábulas; e por que não pareça pouco sólido este novo modo de responder; ouçamos primeiro a Tertuliano9. Argumentando contra a gentilidade, Tertuliano, no seu Apologético, disse que as fábulas dos gentios faziam mais criveis os mistérios dos cristãos. Parece proposição dificultosa, porque as fábulas dos gentios são mentiras, são fingimentos; os mistérios dos cristãos são verdades infalíveis: como logo pode ser que a mentira acrescente crédito à verdade? O mesmo Tertuliano se explicou como juízo que costuma: Fideliora sunt nostra, magisque credenda, quorum imagines quoque fidem invenerunt As fábulas dos gentios, se bem se consideram, são uns arremedos, são umas semelhanças, são umas imagens ou imaginações dos mistérios dos cristãos. E se os gentios deram fé ao arremedado somente dos nossos mistérios, por que a não hão de dar ao verdadeiro deles? Se creram e adoraram os retratos, por que hão de duvidar a crença e negar a adoração aos originais? Fideliora, magisque credenda, quarum imagines quoque fidem invenerunt Com a sua mesma idolatria está convencendo a razão aos gentios para que não possam negar a fé, porque nenhuma coisa lhes propõe tão dificultosa de crer a fé, que eles a não tenham já concedido e confessado nas suas fábulas. Daqui se entenderá a razão e providência altíssima que Deus teve, para permitir a idolatria no mundo. E qual foi? Para que a mesma idolatria abrisse o caminho à fé e facilitasse no entendimento dos homens a crença de tão altos e tão secretos mistérios, como os que Deus tinha guardado para a lei da graça. Assim como Deus neste mundo criou um homem para pai de todos os homens, que foi Adão, assim fez outro homem para pai de todos os crentes, que foi Abraão. A um deu o primado da natureza, a outro a primazia da fé. Mas esse mesmo Abraão, se bem lhe examinarmos a vida, acharemos que antes de crer no verdadeiro Deus, foi idólatra: Thare pater Abrahae, et Nachor, servierunt que diis alienis10. Pois idólatra Abraão, que há de ser pai de todos os crentes? Sim, e por isso mesmo. Permitiu Deus que o pai da fé fosse filho da idolatria, porque a idolatria é degrau e sucessão para a fé. A porta da fé é a credulidade, como dizem os teólogos, porque antes de uma coisa ser crida, há de julgar o entendimento que é críveI. E isto é o que fez a idolatria no mundo, vindo diante da fé. A idolatria semeou a credibilidade, e a fé colheu a crença; a idolatria, com as fábulas, começou a fazer os gentios crédulos, e a fé, com os mistérios acabou de os fazer crentes. Como a fé é crença de coisas verdadeiras e dificultosas, a idolatria facilitou o dificultoso, e logo a fé introduziu o verdadeiro. As repugnâncias que tem a fé, e o grande, o árduo, o escuro, e o sobrenatural dos mistérios: crer o que não vejo, e confessar o que não entendo. E estas repuguâncias já a idolatria as tinha vencido nas fábulas, quando a fé as convenceu nos mistérios.
Suposta esta verdade, ficam mui fáceis de crer aos gentios quaisquer dificuldades que se lhes representem no Sacramento do Altar, porque tudo o que nós cremos neste mistério, creram eles primeiro nas suas fábulas. Se os gentios criam que no pão comiam um deus e no vinho bebiam outro, no pão a Ceres e no vinho a Baco, que dificuldade lhes fica para crerem que debaixo das espécies do pão comemos a carne, e debaixo das espécies do vinho bebemos o sangue do nosso Deus? Se comêssemos a carne e sangue em própria espécie, seria horror da natureza, mas debaixo de espécies alheias, tão naturais como as de pão e vinho, nenhum horror faz nem pode fazer, ainda a quem tenha a vista tão mimosa e o gosto tão achacado como Averróis.
Em todos os outros impossíveis que se representam ao gentio neste mistério corre o mesmo. Parece impossível neste mistério que a substância do pão passe a ser corpo de Cristo; parece impossível que a quantidade do pão ocupe um só lugar na mesma hóstia; parece impossível que o mesmo manjar cause morte e cause vida; parece impossível que o mesmo Cristo esteja juntamente no céu e mais na terra; parece impossível que desça Deus cada dia à terra para se unir com o homem e o levar ao céu; e parece finalmente impossível que o homem comendo se transforme, com um bocado, de homem em Deus. Mas, se os gentios criam (desfaçamos todos esses impossíveis) se os gentios criam que Dafne se converteu em louro, que Narciso se converteu em flor, que Niobe se converteu em mármore, Hipomenes em leão e Aretusa em fonte, que razão lhes fica para duvidar que o pão se converte em corpo e o vinho em sangue de Cristo?11 Se os gentios criam que no corpo de Gerião havia três corpos, que razão têm para duvidar que a quantidade do corpo de Cristo, e a quantidade do pão, sendo duas, ocupem um só lugar na mesma hóstia?12 Se os gentios criam que a espada de Aquiles feriu a Telefo, quando inimigo, e que a mesma espada o sarou depois quando reconciliado, que razão têm para duvidar que o mesmo corpo de Cristo é morte para os obstinados e vida para os arrependidos?13 Se os gentios criam que Hecate estava juntamente no céu, na terra e no inferno: no céu com e nome de Lua; na terra com o nome de Diana, no inferno com o nome de proserpina14, que razão têm para duvidar que o mesmo Cristo está no céu e na terra, e em diversos lugares dela juntamente? Se os gentios criam que Júpiter desceu à terra em chuva de ouro, para render e obrigar a Danae, e em figura de águia para levar ao céu a Ganímedes15, que razão lhes fica para duvidar que desça Deus à tenra em outros dois disfarces para render e se unir com os homens nesta vida, e para os levar ao céu na outra? Finalmente se os gentios crêem que Glauco, mastigando uma erva, mudou a natureza e se converteu em Deus do mar16, que dificuldade têm para crer que por meio daquele manjar soberano mudem os cristãos a natureza, e de humanos fiquem divinos? Assim que não lhes fica razão nenhuma de duvidar neste mistério aos gentios, porque tudo o que se manda crer no Sacramento, creram eles primeiro nas suas fábulas.
Nem cuide alguém que é descrédito de nossa religião pareceremse os seus mistérios com as fábulas dos gentios, porque antes esse é o maior crédito da fé e o maior abono da onipotência. Louva Davi os mistérios da lei escrita, e encarece-os por comparação às fábulas dos gentios: Narraverunt mihi iniqui jabulationes, sed non ut lex tua17. Louva S. Pedro os mistérios da lei da graça, e encarece-os por comparação às fábulas da mesma gentilidade: Non enim doctas fabulas secuti, notam facimus vobis virtutem, et praesentiam Jesu Christi18. Notável comparação e notável conformidade entre as duas maiores colunas da lei velha e nova. Se Davi e Pedro querem encarecer os mistérios divinos da fé por comparação à gentilidade, por que os não comparam com as histórias dos gentios senão com as suas fábulas? A profissão da história é dizer verdade, e as histórias dos gentios tiveram feitos heróicos e casos famosíssimos, como se vê nas dos gregos e dos romanos. Pois por que comparam Davi e Pedro os mistérios sagrados, não às histórias, senão às fábulas? Porque as histórias contam o que os homens fizeram, e as fábulas contam o que os homens fingiram; e vencer Deus aos homens no que puderam fazer, não é argumento de sua grandeza, mas vencer Deus aos homens no que souberam fingir, esse é o louvor cabal de seu poder. Que chegassem as obras de sua onipotência onde chegaram os fingimentos de nossa imaginação, que chegasse a onipotência divina obrando, onde chegou a imaginação humana fingindo? Grande poder! Grande sabedoria! Grande Deus! Isto é o que adoramos e confessamos naquele mistério. As fábulas dos gentios foram imaginações fingidas das maravilhas daquele mistério, e as maravilhas daquele mistério são existências verdadeiras das suas fábulas. Pois se as creram na imaginação, por que as hão de negar na realidade? Confesse logo o gentio, convencido da razão, a verdade manifesta daquele Vere, e diga: Vere est cibus, vere est potus.
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Sermões
RandomREPUBLICAÇÃO AUTOR: Antônio Vieira APENAS SERMÇOES SELECIONADO PELA COMVEST 2021 O padre Antônio Vieira é das personagens mais importantes da história do Brasil e de Portugal no século XVII. Qualquer que seja a posição que se tenha quanto à sua atua...