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Os bens da fortuna. Quão certo é, ainda no maior auge dos bens da fortuna, qual é a dos reis, ser o maior bem da vida a morte. Os reis a todos mandam como reis e de todos são julgados como réus. As miseráveis felicidades dos que, postos na região dos raios, dos trovões e das tempestades, a dignidade e a lisonja chama Sereníssimos. O que respondeu o oráculo de Apoio a Giges, inchado com a singular prosperidade de sua fortuna. Como pagou Deus a el-rei Josias o zelo demonstrado na restauração do culto do verdadeiro Deus?

Passemos aos bens da fortuna. E, subindo ao mais alto ponto aonde ela pode chegar, preguemos um cravo na sua roda, paia que, concedendo às suas felicidades a constância que não têm, vejamos se se podem jactar ou presumir de que carecem de misérias. Os cetros e as coroas são as que, postas no cume da majestade, levam após si, com o império, os aplausos e adorações do mundo, e ao mesmo mundo, o qual, cego com os reflexos daquele esplendor, os aclama felizes e felicíssimos, não penetrando o interior e sólido da felicidade, mas olhando só, e parando no sobredourado das aparências. Omnium istorum quos incedere altos vides, bracteata felicitas est[21] disse sábia e elegantemente Sêneca. Assim como os tetos sobredourados dos templos e dos palácios o que mostram por fora é ouro, e o que escondem e encobrem por dentro são madeiros comidos do caruncho, pregos ferrugentos, teias de aranha, e outras sevandijas, assim debaixo da pompa e aparatos com que costumamos admirar os que vemos levantados ao zênite da fortuna, se víramos juntamente os cuidados, os temores, os desgostos e tristezas que os comem e roem por dentro, antes havíamos de ter compaixão das suas verdadeiras misérias, que inveja à falsa representação e engano do que neles se chama felicidade. Quem duvidou jamais de reputar a Carlos Quinto por felicíssimo, com tantasvitórias, tanta fama, tantos aumentos da monarquia? E, contudo, no dia em que renun­ciou o governo, confessou que em todo o tempo dele nem um só quarto de hora tivera livre de aflições e moléstias. O diadema antigo, insígnia dos reis e imperadores, era uma faixa atada na cabeça. E dizia Seleuco, rei da Ásia, que, se os homens soubessem quão pesada era aquela tira de pano, e quão cheia de espinhas por dentro, nenhum haveria que a levantasse do chão para a pôr na cabeça. El-rei Antígono, vendo que seu filho, pelo ser, se ensoberbecia, com que lhe abateria os fumos? An ignoras, o fili, regnum nostrum non esse aliud nisi splendidam servitutem? Não sabes, filho – lhe disse – que o nosso reino não é outra coisa que um cativeiro honrado? – Os reis são senhores de todos, mas também cativos de todos. A todos mandam como reis, e de todos são julga­dos como réus. Como o rei é a alma do reino, tem obrigação de viverem todos seus vassalos, e padecer neles e com eles quanto eles padecem. Se não padece assim não é rei, e, se padece, que maior martírio? Há-sede matar e morrer para que eles vivam, há-se de cansar para que eles descansem, e há de velar para que eles durmam, sendo mais quieto e sossegado o sono do cavador sobre uma cortiça, que o do rei debaixo de céus de brocado. Ali, desvelado, marcha pelas campanhas com os seus exércitos; ali navega os mares com as suas armadas, e a qualquer bandeira, que tremula com o vento lhe palpita o coração na contingência dos sucessos. Tais são as miseráveis felicidades, ou as adoradas misérias dos que, postos na região dos raios, dos trovões e das tempestades, a dignidade com razão, e a lisonja sem ela chama Sereníssimos.

Que seria se eu aqui ajuntasse as catástrofes e fins trágicos dos Xerxes, dos Cressos, dos Darios, e infinitos outros? Mas o meu intento só é descobrir as misérias dos felizes. A este propósito há muito que tenho notado uma coisa para mim admirável, e é que, sendo Valério Máximo tão universal nas histórias e notí­cias do mundo, e, trazendo tantos exemplos, assim domésticos como estrangeiros, em todas as matérias, quando veio a tratar da felicidade só a achou entre os roma­nos a Metelo, homem particular, e entre os reis de todas as nações a Giges, rei de Lídia. Esta é a mesma salva com que ele começa dizendo: Volubilis fortunae com­plura exempla retulimus, constanter propitiae admodum pauta narrari possunt[22]. – Inchado, pois, Giges com a singular e contínua prosperidade de sua fortuna, quis-se canonizar pelo mais feliz homem do mundo, e a este fim consultou pesso­almente o Oráculo de Apolo, para que a resposta, de que não duvidava, fosse uma prova autêntica e divina da sua felicidade; enganou-se, porém, ou acabou de se enganar o já enganado rei, porque respondeu o oráculo que Aglau Sofídio era mais feliz que ele. E quem era Aglau Sofídio? Era um lavradorzinho velho, o mais pobre de toda a Arcádia, ao qual um pequeno enchido, que tinha junto à sua choupana, cultivado por suas próprias mãos, sem inveja sua ou alheia, lhe dava o que era bastante para sustentar a vida. Pois este Aglau assim pobre era mais feliz que Giges com todas as suas fortunas? Sim, porque essas mesmas fortunas, ainda que grandes e contínuas, não o livravam do temor da sua inconstância, o qual só bastava para o fazer infeliz. Debaixo deste temor se compreendiam os cuidados, as dúvidas, as imaginações, os indícios falsos ou verdadeiros da ruína que se lhe maquinasse ou podia maquinar, e todos os infortúnios possíveis, no mar e na terra, na guerra e na paz, na inveja dos êmulos, no ódio e potência dos inimigos, no descontentamento e rebelião dos vassalos, enfim, as violências secretas, os rou­bos, os subornos, as traições, os venenos, com que nem o sustento necessário à vida, nem a mesma respiração é segura. Para que se veja se era feliz quem todo este tumulto de inquietações, que só conhecia o oráculo, trazia dentro no peito. E como os bens da fortuna, ainda os maiores, quais são os dos reis, e ainda nos singular e unicamente felizes, estão sujeitos a tantas misérias, ou padecidas em si mesmas, ou no temor e receio, que não é tormento menor, nenhum outro remédio tem para escapar e se livrar delas a vida, senão o da morte.

Seja a prova em caso e pessoa, não de outra, senão da mesma suposição e dignidade, o modo com que Deus livrou a el-rei Josias. Quando Josias começou a reinar, todo o reino –que era ode Jerusalém e Judá– não só privada, mas publicamente professava a idolatria, com templos, com altares, com ídolos, com sacerdotes, e com todas as outras superstições gentílicas. A primeira coisa, pois, que fez o zelosíssimo e santo rei, foi arrasar os templos e altares, queimar os ídolos, e sacrificar-lhes os seus próprios sacerdotes, mandando degolar a todos; e logo tratou de reformar e restaurar o culto do verdadeiro Deus, repondo em seu lugar a Arca do Testamento, restituindo a seus ofícios os sacerdotes e levitas, e tornando a introduzir a observância da celebridade das festas e sacrifícios, com todos os ritos e cerimônias da lei. Mas, como pagou Deus a Josias este zelo, esta piedade, e esta valorosa resolução? Aqui entra o admirável do caso. Duas coisas mandou Deus anunciar e notificar ao rei: a primeira, que Jerusalém seria destruída, e todos seus habitadores rigorosissimamente castigados; e assim foi, porque, conquistados pelos exércitos de Nabucodonosor, todos foram levados cativos a Babilônia. A segunda, que ele, rei, morreria antes deste cativeiro; e assim sucedeu também, porque, saindo a uma batalha, foi morto nela. Pois o rei pio, zeloso e santo há de morrer, e o idólatra não? Antes, foi tanto pelo contrário que durou o cativeiro setenta anos, que era todo o tempo que os que tinham sido idólatras podiam viver. E por que ordenou Deus que os idólatras vivessem tantos anos, e o rei morresse tão antecipada¬mente, que não chegou a contar quarenta? A razão desta justiça verdadeiramente divina foi para que, vivendo eles, e morrendo o rei, o rei fosse premiado e os idólatras castigados. De sorte que aos idólatras, para que padecessem as calamidades e misérias do cativeiro, estendeu-lhes Deus a vida, e ao rei, para o livrar das mesmas calamidades e misérias, antecipou-lhe a morte. Assim o disse o mesmo Deus: ldcirco colligam te ad patres tuos, et colligeris ad sepulchrum tuum in pace, ut non videant oculi tui mala quae inducturus sum super locum istum[23]. – Em suma, que conservou Deus a vida ao povo porque o quis castigar, e antecipou a morte ao rei porque o quis livrar do castigo, que tão certo é, ainda no maior auge dos bens da fortuna, qual é a dos reis, ser o maior bem da vida a morte.

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