Duas coisas prega hoje a Igreja: pó e pó. Um é a triaga e corretivo do outro, como os pós venenosos com que se quis envenenar o imperador Valente.
Duas coisas prega hoje a Igreja a todos os mortais, ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas. Assim comecei eu o ano passado, quando todos estávamos mais longe da morte; mas hoje, que também estamos todos mais perto dela, importa mais tratar do remédio, que encarecer o perigo. Adiantando pois o mesmo pensamento, e sobre as mesmas palavras, digo, senhores, que duas coisas prega hoje a Igreja a todos os vivos: uma grande, outra maior; uma triste, outra alegre; uma temerosa, outra segura; uma certa e necessária, outra contingente e livre. E que duas coisas são estas? Pó e pó. O pó que somos: Pulvis es, e o pó que havemos de ser: In pulverem reverteris. O pó que havemos de ser é triste, é temeroso, é certo e necessário, porque ninguém pode escapar da morte; o pó que somos é alegre, é seguro, é voluntário e livre, porque se nós o quisermos entender e aplicar como convém, o pó que somos será o remédio, será a triaga, será o corretivo do pó que havemos de ser.
Notável foi o caso sucedido em tempo do imperador Valente, do qual disse então, com elegante juízo, o poeta Ausônio aquela tão celebrada sentença: Et cum fata volunt, bina venena juvan.2 Quis uma inimiga doméstica tirar a vida com veneno ao senhor da casa, e depois de ter medicado a bebida com certos pós venenosos, duvidando ainda se teriam bastante eficácia para segurar melhor o efeito, mandou buscar outros. Vieram os segundos pós, lança-os na mesma taça a traidora, bebe o inocente marido, mas quando ela esperava que caísse subitamente morto, ele ficou tão vivo e sem lesão como dantes. Admirável acontecimento! Se os primeiros pós bastavam para matar, e os segundos também, ambos juntos, por que não mataram? Este homem não era Mitrídates, que se alimentasse com veneno. Se bebia só os primeiros pós morria; se bebia só os segundos, também morria. Pois por que não morreu bebendo uns e mais os outros? Porque os segundos pós foram corretivos dos primeiros. A guerra que haviam de fazer ao coração, fizeram-na entre si, e em vez de matar, mataram-se. Tais são os dois pós com que hoje nos ameaça a sentença universal de Adão: Pulvis es, um pó; In pulverem reverteris, outro pó, ambos mortais, ambos venenosos, mas se nós quisermos, não está na mão dos fados, senão na nossa, que um seja a triaga e o corretivo do outro. Isto é o que determino pregar hoje. A Igreja põe-vos sobre a cabeça uma cinza feita de palmas; eu hei-vos de meter na mão uma palma feita de cinzas. Havemos de vencer um pó com outro pó; havemos de curar um veneno com outro veneno; havemos de matar uma morte com outra morte: a morte do pó que havemos de ser; com a morte do pó que somos: Pulvis es, et in pulverem reverteris. Para que eu saiba preparar estes pós de modo que venham a ter uma tão grande virtude, e para que vós e eu saibamos aplicar como convém, não por cerimônia, que não é o dia disso, senão muito de coração, peçamos a assistência da divina graça: Ave Maria.

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Sermões
De TodoREPUBLICAÇÃO AUTOR: Antônio Vieira APENAS SERMÇOES SELECIONADO PELA COMVEST 2021 O padre Antônio Vieira é das personagens mais importantes da história do Brasil e de Portugal no século XVII. Qualquer que seja a posição que se tenha quanto à sua atua...