Quinto inimigo: troca-se mui acertadamente o político pelo demônio. Objeção: é impossível que os homens que comungam a Cristo no sacramento sejam como Deus, visto como o demônio apenas querendo assemelhar-se a Deus foi por isso castigado. Se o maná era pão de anjos, como o corpo do Filho de Deus há de ser pão de homens? – Deus unindo-se à natureza humana, e não à angélica, preferiu os homens aos anjos. O primeiro inventor da Eucaristia foi o próprio demônio no Paraíso terrestre. Cristo apenas fez verdadeira a sua mentira, consagrando debaixo das espécies de pão o que ele fingira debaixo das aparências de pomo.
Agora se seguia o político, mas fique para o fim, e entre em seu lugar o diabo, que talvez não seria desacertada esta troca. Tempos houve em que os demônios falavam e o mundo os ouvia; mas depois que ouviu os políticos, ainda é pior mundo. O diabo como soberbo e como ciente, que é dobrada soberba ou dobrada inchação, como lhe chamau S. Paulo. Scientia inflat (1 Cor. 8,1), argumenta assim: Se os homens comungaram a Cristo no Sacramento, foram como Deus: os homens não podem ser como Deus, logo não comungam a Cristo no Sacramento. A conseqüência, diz o diabo, é tão evidente como minha; a suposição, não a podem negar os homens, porque é sua. Se os homens comungaram a Cristo, foram como Deus; o seu mesmo texto o diz: In me manet, et ego in illo29. E que os homens não possam ser como Deus, eu o digo e eu o padeço, diz o demônio; que se eu não intentara no céu ser como Deus, não pagara hoje este impossível, como o estou pagando. Pois se a mim, se a Lúcifer, se à mais nobre de todas as criaturas é impossível a semelhança do Altíssimo: Similis ero Altissimo (Is. 14,14), ao homem vil, feito de barro, como há de ser possível, não só a semelhança, mas a transformação, que isto quer dizer: Ele em mim e eu nele? Crerem os homens esta loucura é não se conhecerem a si, nem nos conhecerem a nós. Nós, ainda que perseguidos, somos anjos, que quem nos pode roubar o lugar, não nos pode tirar a natureza. E se o maná, que tanto era menos nobre, se chamau pão de anjos, o corpo do Filho de Deus, que excede ao maná com infinita nobreza, como há de ser pão de homens (SI. 77, 15)!
A última parte deste soberbo argumento do demônio responde a razão com a cousa de sua mesma caída. Depois que Cristo uniu a si a natureza humana, e não a angélica: Nus quam angelos apprehendit, sed semen Abrahae apprehendit30. não há que espantar que os homens sejam em tudo preferidos aos anjos. Nesta primeira admiração e neste primeiro assombro se sumirão todos os espantas. E quanto ao impossível de os homens, comendo, poderem ser como Deus, não argumenta o diabo contra nós, argumenta contra si. O primeiro inventor, ninguém se espante do que digo, o primeiro inventor da traça, ou do desenho do mistério da Eucaristia, foi o demônio. Quando o demônio tentou a Eva, disse-lhe assim: In quocumque die comederitis, eritis sicut Dii (Gên. 3,5): Comei do pomo vedado, porque no dia que comerdes, ficareis como Deus. – Eis aqui o mistério da Eucaristia, não só quanto à substância, senão também quanto aos efeitos. Quanto à substância, porque diz o demônio que está a divindade em um pomo; quanto aos efeitos, porque diz que, comendo, o homem há de ficar como Deus. Pois vem cá, diabo: De ore tuo tejudico31. Se tu dizes que o homem comendo ficará como Deus, e que no pomo daquela árvore está encoberta a divindade, como negas que pode estar encoberta a divindade debaixo das espécies de pão, e que comendo o homem pode ficar como Deus? O que Cristo nos concedeu neste mistério é o que o diabo nos prometeu no paraíso. Fez Cristo verdadeira a mentira do diabo, para desta maneira o vencer a ele e nos desafrontar a nós. Naquele encontro do paraíso ficou o demônio vencedor e o homem afrontado; vencedor o demônio porque enganou; afrontado o homem porque ficou enganado, despojado, perdido. Pois que remédio para desafrontar o homem e o vingar do demônio? O remédio foi fazer Cristo da sua promessa dádiva, e da sua tentação sacramento: e assim o fez. Da promessa do demônio fez dádiva, porque nos deu a comer a divindade que ele nos prometera comendo: e fez da sua tentação sacramento, porque consagrou debaixo das espécies de pão o que ele fingira debaixo das aparências do pomo. De sorte que o demônio ficou vencido, porque a sua mentira ficou verdade, e o homem desafrontado, porque o seu engano ficou fé. O que creram nossos primeiros pais no paraíso é o que nós cremos no Sacramento: eles erradamente ao diabo, nós acertadamente a Deus.
Daqui se segue que neste mistério, nem o diabo pede ser tentador, nem o homem tentado. O diabo não pede ser tentador; porque se o diabo me quiser tentar na fé do mistério da Eucaristia, respondo-lhe eu assim: Quando tu, diabo, falaste a Eva, ou mentiste, ou disseste verdade. Se mentiste, não te devo crer, porque quem mentiu então, também mentirá agora. E se falaste verdade, também te não devo crer; porque se falaste verdade, pede Deus pôr divindade naquele pomo. Pois se Deus pede pôr divindade em um bocado, isso mesmo que tu concedes, é o que eu creio. Vai-te embora, ou na má hora. Também o homem não pode ser tentado porque, se o homem é pensamento de Ruperto; se o homem creu ao diabo quando lhe disse que comendo seria como Deus, como há de deixar de crer a Deus quando lhe diz o mesmo? Principalmente que o que o diabo dizia, não cabia na esfera da onipotência, e o que diz Cristo sim. A onipotência de Deus enquanto autor da natureza, tem menor esfera que a mesma onipotência de Deus enquanto autor da graça, porque a onipotência de Deus, enquanto autor da natureza, só pode produzir efeitos naturais, e por virtude natural não pedia estar a divindade em um pomo. A onipotência de Deus, enquanto autor da graça, pode produzir efeitos sobrenaturais, e por virtude sobrenatunal pode a divindade estar em um bocado. Pois se os homens foram tão inocentes que creram um impossível ao diabo, porque hão de ser tão irracionais, que neguem um possível a Deus? Desengane-se logo o demônio que neste mistério não só nos não pede vencer, mas nem ainda nos pode tentar, e confesse obrigado de sua mesma tentação a verdade daquele Vere, que como pai da mentira tem feito negar a tantos. Vere est cibus, vere est potus.
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DiversosREPUBLICAÇÃO AUTOR: Antônio Vieira APENAS SERMÇOES SELECIONADO PELA COMVEST 2021 O padre Antônio Vieira é das personagens mais importantes da história do Brasil e de Portugal no século XVII. Qualquer que seja a posição que se tenha quanto à sua atua...