§XIV

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Sexto inimigo: o devoto. Mais por excesso de amor que por falta de fé, queixa-se o devoto dos acidentes que encobrem Cristo a seus olhos. Razão: os homens amam mais finamente a Cristo desejado por saudades do que gozado por vista. O desejo de S. Paulo.

O devoto, não por falta de fé, mas por excesso de amor, e mais queixoso dos acidentes que duvidoso da substância, por parte do seu afeto argüi assim com o mesmo Cristo: a minha fé com os olhos fechados crê firmemente, Senhor, que estais nesse Sacramento; mas o meu amor com os olhos abertos não pode entender, nem penetrar, como seja possível esta verdade. Se, partindo-vos da terra, quisestes ficar na terra, foi para satisfação do vosso amor e para alívio do nosso; para crédito de vossas finezas e para remédio de nossas saudades. Assim o disse aquele grande intérprete dos segredos de vosso coração neste mistério: De sua contristatis absen tia solatium singulare reliquit32. Pois se ficastes para nossa consolação, como vos encobris a nossos olhos? Se foi amor o ficar, como pode ser amor o ficar desse modo? Ficar, e ficar encoberto, antes é martírio do desejo que alívio da saudade. Por certo que não eram esses antigamente os estilos de vosso amor, nem da sua paciência. En ipse stat post parietem nostrum respiciens perfenestras; prospiciens per cancellos33. Havia sim, entre vós e a alma vossa querida, uma parede, mas com a parede ser sua, havia nela uma gelosia vossa por onde a víeis, e por onde vos via. Para não podermos ver vossa divindade, é nossa a parede deste corpo; mas para não vermos vossa humanidade, vossa é a parede desses acidentes. Pois, se os impedimentos e estorvos da vista são vossos, e vosso amor é onipotente, como quereis que creia o meu amor uma tão grande implicação do vosso, como é amar-me tanto e não vos deixardes ver? A fé o crê muito a seu pesar, mas o amor não o sofre nem o alcança, nem o pode deixar de ter por impossível.

Assim argüi amorosamente queixosa a devoção, mas tem fácil e mui inteira resposta a sua piedade. A um afeto amoroso da alma responde a razão com outro afeto mais amoroso de Cristo, e diz que maior amor é em Cristo o não se deixar ver, do que na devoção o desejar vê-lo. Ainda que Cristo se não deixa ver de nós, é certo que se deixou conosco, mas deixou-se de maneira que o não possamos ver, porque fiou mais seu amor de nossos desejos que de nossos olhos. O fim para que Cristo se deixou no Sacramento, foi para que os homens o amássemos. E sendo que o maior conhecimento é cousa do maior amor, amam os homens mais finamente a Cristo desejado por saudades, do que gozado por vista. Se eu me não engano, tenho bem imaginada a prova desta verdade. Saudoso S. Paulo de se ver com Cristo, dizia assim: Desiderium habens dissolvi et esse cum Christo34. Oh! quem me dera que a minha alma se desatara e desunira do corpo, para poder estar com Cristo! Tendo isto assim, se perguntarmos aos teólogos, se as almas que estão vendo a Cristo têm algum desejo, resolvem todos que sim, e que desejam unir-se com seus corpos. Pois, dificulto agora e parece que apertadamente, se as almas que estão vendo a Cristo desejam unirse a seus corpos, por que diz a alma de S. Paulo que desejara desatar-se de seu corpo para ir ver a Cristo: Desiderium habens dissolvi et esse cum Christo (Flp. 1, 23)? A razão é porque Cristo, em respeito das almas dos bem-aventurados, é gozado por vista, e em respeito da alma de S. Paulo, era desejado por saudades, e o amor de Cristo desejado por saudades é muito mais eficaz nesta parte, ou mais afetuoso, ou mais impaciente, que o mesmo amor de Cristo gozado por vista. Cristo gozado por vista, ainda deixa amor a uma alma para desejar unir-se a seu corpo; mas Cristo desejado por saudades, até a união de seu próprio corpo lhe faz aborrecível: Desiderium habens dissolvi et esse cum Christo. E como a Cristo lhe vai melhor com as nossas saudades que com os nossos olhos, por isso se quis deixar em disfarce de desejado, e não em trajos de visto. Descoberto para os olhos, não; encoberto sim para as saudades. Conheça logo a nossa devoção que é fineza, e não implicação do amor de Cristo, o deixar-se invisível naquele mistério, e confesse não só a nossa fé com os olhos fechados, senão o nosso amor com os olhos abertos, a verdade amorosa daquele Vere: Vere est cibus, vere est potus.

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