O primeiro inimigo: o judeu. Primeira objeção: a possibilidade do sacramento. Por que Cristo, em vez de atender-lhes a dúvida ameaçou-lhe a malícia? Para os judeus, apoiando-se nas Escrituras, é impossível Deus, imenso, limitar-se ao pão; e invisível, limitar-se ao visível. Por que então no deserto pediram a Arão, sacerdote, que lhes fizesse um Deus visível? O que eles pediram, nós recebemos. Um argumento a nosso favor: os judeus adoraram o bezerro e foram castigados; nós adoramos a hóstia e não o somos, embora os primeiros cristãos tenham sido judeus. Se o judeu crê nos outros milagres da Escritura, por que não crer na Eucaristia? Se crê no poder das palavras de Josué ao sol e de Moisés à rocha, por que não acreditar no poder das palavras do sacerdote? Para o judeu crer na Eucaristia não lhe é necessária nova fé. Cristo ao instituir a Eucaristia não pediu entendimento, pediu memória.
Caro mea vere est cibus, et sanguis meus vere est potus. O primeiro inimigo de Cristo que temos em campo contra a verdade daquele sacrossanto mistério, é o judeu. Judaica perfídia foi, como se crê, a que deu cousa à dor, e ocasião à glória deste grande dia. Mas, para convencer o judeu, e o sujeitar à fé do mistério da Eucaristia, não há mister a razão as nossas Escrituras, bastam-lhe as suas mesmas. A primeira e maior dúvida que tiveram os judeus contra a verdade deste sacramento, foi a possibilidade dele. Quomodo potest hic nobis carnem suam dare ad manducandum? Como pode este, diziam, dar-nos a comer sua carne? (Jo. 6,53). Não é possível. E Cristo que lhes respondeu? Nisi manducaveritis carnem Filii hominis, et biberitis ejus sanguinem, non habebitis vitam in vobis (Jo. 6,54): Se não comerdes a minha carne e beberdes o meu sangue, não tereis vida. Senhor; com licença de vossa sabedoria divina, a questão dos judeus era duvidarem da possibilidade deste mistério, e as dúvidas postas em presença do mestre, soltam-se com a explicação, e não com o castigo. Se estes homens duvidam da possibilidade do mistério, dizei-lhes como é possível, e declarai-lhes o modo com que pode ser, e ficarão satisfeitos. Pois por que seguiu Cristo neste caso outro caminho tão diferente, e em lugar de lhes dar a explicação, os ameaçou com castigo? A razão foi, porque os que duvidavam neste passo eram os judeus: Litigabant ergo judaei (Jó. 6,53), e para os judeus conhecerem a possibilidade daquele mistério, não é necessária a doutrina de Cristo: basta-lhes as suas Escrituras e a razão. Provo do mesmo texto. Litigabant ergo judaei. Diz que os judeus litigavam uns contra os outros sobre o caso. Se litigavam, logo uns diziam que sim, outros que não: os que diziam que sim, davam razões para ser possível; os que diziam que não, davam razões para o não ser; e eram tão eficazes as razões dos que diziam que sim, que não teve Cristo necessidade de dar as suas. Por isso, acudiu à pertinácia como castigo, e não à dúvida com a explicação. Três coisas concorriam nesta demanda: a dúvida do mistério, a malícia dos que o negavam, e a razão dos que o defendiam. E quando Cristo parece que havia de acudir à dúvida com a explicação, acudiu à malícia como castigo, porque os argumentos dos que negavam o mistério já estavam convencidos na razão dos que o defendiam. De maneira que, para convencer ao judaísmo da possibilidade do Sacramento da Eucaristia, não é necessária a fé ,nem a doutrina de Cristo: basta a fé e a razão dos mesmos judeus.
E se não, desçamos em particular aos impossíveis que neste mistério reconhece, ou se lhe representam ao judeu. Quomodo potest? Diz o judeu que o mistério da Eucaristia, na forma em que o cremos os cristãos, nem é possível quanto à substância, nem quanto ao modo. Não é possível quanto à substância, porque, como diz Moisés no Êxodo, e Salomão no terceiro dos Reis (Êx. 33,20; 3 Rs. 8,27), Deus é imenso e invisível, e o imenso não se pode limitar a tão pequena esfera, nem o invisível reduzir-se ao que se vê. E não é possível quanto ao modo, porque, como diz Davi nos salmos (SI. 71,18; 135,4), o autor dos milagres é só Deus, e o sujeito dos milagres são as criaturas; sendo logo o sacerdote criatura, como pode fazer milagres em Deus, e converter em corpo de Deus a substância do pão: Quomodo potest? Para satisfazer a razão as aparências destes dois impossíveis, não tem necessidade de ir buscar razões a outros entendimentos, porque no entendimento dos mesmos judeus as tem ambas concedidas e convencidas.
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CasualeREPUBLICAÇÃO AUTOR: Antônio Vieira APENAS SERMÇOES SELECIONADO PELA COMVEST 2021 O padre Antônio Vieira é das personagens mais importantes da história do Brasil e de Portugal no século XVII. Qualquer que seja a posição que se tenha quanto à sua atua...