Os bens da graça. Quem poderá melhor defender a graça da alma, senão a morte? A grande energia e alto pensamento com que disse Jó que a vida do homem é uma perpétua guerra. Quais são os combatentes entre os quais se dão as batalhas da vida do homem? Por que diz Davi, que na sepultura descansará em paz para isso mesmo? A diferença do sono e paz dos mortos em comparação dos vivos. A natural impecabilidade e a fortificação da morte.
Nos bens da graça, que são os que só restam, passa o mesmo. Sendo estes os maiores de todos, e os que própria e verdadeiramente só merecem nomes de bens, nenhuns são mais dificultosos de guardar nem mais sujeitos à miséria de se perderem. Os anjos perderam a graça no céu, Adão perdeu a graça no paraíso, e depois destas duas ruínas universais, quem houve que a conservasse sempre? Só a Mãe de Deus, pelo ser, a conservou inteira, e os demais, ou a perderam por culpas graves, ou a mancharam com as leves. Qui stat, videat ne cadat (1 Cor. 10, 12): Quem está de pé, veja não caia – diz S. Paulo. – E ele, depois de subir ao terceiro céu, se viu tão arriscado a cair, que três vezes rogou a Deus o livrasse de uma tentação, que, se o não tinha derrubado, o afrontava: Angelus Satanae, qui me colaphizet[24]. – Caiu Sansão, caiu Salomão, caiu Davi, e nem ao primeiro a sua fortaleza, nem ao segundo a sua sabedoria, nem ao último a sua virtude os tiveram mão para que não caíssem. O mundo todo é precipícios, o demônio todo é laços, a carne toda é fraquezas. E contra estes três inimigos tão poderosos da alma, estando ela cercada de um muro de barro tão quebradiço, quem a poderá defender, e nela a graça? Já sabem todos que hei de dizer que só a morte: e assim é.
Diz Jó que a vida do homem é uma perpétua guerra: Militia est vita hominis super terram[25] – tanto assim que ao mesmo viver chama ele militar: Cunctis diebus quibus nane milito[26]. – Qual seja a campanha desta guerra, não é Cartago ou Flandres, ou, como agora, Portugal, senão o mundo e a terra toda em qualquer parte: super terram. –Mas, como o mesmo Jó não faça menção de muitos, senão de um só ou de qualquer homem –vita homimnis–com razão podemos duvidar quem são os combatentes entre os quais se faz esta guerra e se dão estas batalhas? Se foram gentes e diversas nações, também ele o dissera, mas só faz menção de um homem, porque dentro em cada um de nós, como de inimigos contra inimigos, se faz esta guerra , se dão estes combates, e vence ou é vencida uma das partes. O homem não é uma só substância, como o anjo, mas composto de duas totalmente opostas, corpo e alma, carne e espírito, e estes são os que entre si se fazem a guerra, como diz S. Paulo: Caro concupiscit adversas spiritum, spiritus autem adversas cornem (Gal. 5, 17): A carne peleja contra o espírito, e o espírito contra a carne. – Por parte da carne combatem os vícios com todas as forças da natureza, por parte do espírito resistem as virtudes com os auxílios da graça; mas como o livre alvedrio subordinado do deleitável, como rebelde e traidor, se passa à parte dos vícios, quantos são os pecados que o homem comete tantas são as feridas mortais que recebe o espírito, e basta cada uma delas para se perder a graça. Por isso com razão exclama Santo Agostinho, como experimentado em outro tempo: Continua pugna, rara victoria: A batalha é contínua, e a vitória rara.
Haverá, porém, quem possa porem paz estes dois tão obstinados inimigos, e um deles tão cruel e pernicioso? Nesta vida, enquanto a mesma vida dura, não; mas no fim dela sim, porque só a morte pode fazer e faz estas pazes. Que coisa é a morte? Est separatio animae a corpore: É a separação com que a alma se aparta do corpo – e como por meio da morte a alma se divide do corpo e o espírito da carne, no mesmo ponto, divididos os combatentes, cessou a guerra, e ficou tudo em paz. Esta é a grande energia e alto pensamento com que disse Jó que aquela guerra era nomeadamente do homem vivo sobre a terra: Militia est vita hominis super terram (Jó 7, I) – porque, enquanto o homem vive e está sobre a terra padece a guerra da carne contra o espírito; mas, depois que o homem morre e jaz debaixo da terra, toda essa guerra se acabou, e se segue entre a carne e o espírito uma, não trégua, senão paz perpétua, e para sempre. Por isso, quando lançamos os defuntos na sepultura, essas são as palavras de consolação com que nos despedimos deles, dizendo: Requiescat in pace. – É cumprimento tirado e aprendido de um salmo de Davi, onde excelentemente descreve a perpetuidade desta paz. In pace in idipsum dormiam et requiescam (SI. 4, 9): Quando eu jazer na sepultura – diz Davi – dormirei e descansarei em paz para isso mesmo: in idipsum. –Que quer dizer para isso mesmo? Não se podia significar mais admiravelmente a diferença do sono, do descanso e da paz dos mortos em comparação dos vivos. Os vivos dormimos, descansamos e temos paz, mas não para isso mesmo, porque dormimos para acordar, descansamos para tornar a cansar, e temos paz para tornar outra vez à guerra; pelo contrário, os mortos dormem, descansam e estão em paz para isso mesmo: In pace in idipsum dormiam et requiescam. – Dormem para isso mesmo, porque dormem, não para acordar, senão para dormir; descansam para isso mesmo, porque descansam, não para tornar a cansar, senão para descansar; e gozam a paz para isso mesmo, porque não gozam a paz para tornar à guerra, senão para a lograr a perpétua e quietamente: Requiescat in pace.
E como por meio desta perpétua paz cessa a guerra da carne contra o espírito, e cessam as vitórias do pecado e perigos da graça, esta natural impecabilidade da morte é a mais cabal razão de ser a morte o maior bem da vida, porque, sendo o maior mal da vida o pecado, e estando a mesma vida sempre sujeita e arriscada a pecar, só a morte a livra e segura deste maior de todos os males. Morreu um moço virtuoso e pio na flor de sua idade, e admirou-se muito o mundo de que morresse tão depressa o bom, ficando vivos e sãos no mesmo mundo muitos maus, que pareciam mais dignos da morte. Mas a causa desta admiração é, diz o Espírito Santo, porque os homens não entendem as razões de Deus. Três razões teve Deus para antecipar ou apressar a morte àquele moço: a primeira, porque lhe agradou a sua alma, e a quis levar para si: Placita enim eras Deo anima illius[27]; a segunda, porque o quis livrar das ocasiões da maldade: Properavit educere illum de medio iniquitatum[28]; a terceira, porque o quis fortificar: Quare munierit illum Dominus[29]. – Aqui reparo. Se Deus lhe tirou a vida para o fortificar, que fortificação é esta, e contra quem? O contra quem são os vícios e pecados; a fortificação é aquela onde a morte defende os que matou, que é a sepultura. O homem vivo, com todas as portas dos sentidos abertas, é como a praça sem fortificação, que pode ser acometida e entrada por toda a parte; porém o morto, com as mesmas portas cerradas, e cerrado ele dentro da sepultura, não há castelo tão forte, nem fortaleza tão inexpugnável a todo o inimigo, porque nem pode ser vencida do pecado, nem ainda acometida. Muitas fortificações inventaram os santos para defender do pecado os vivos, sendo a principal de todas os muros da religião; mas nem os muros, nem os claustros, nem os templos, nem os sacrários bastam para defender e segurar do pecado os vivos: basta uma só pedra, ou a pouca terra de uma sepultura, para ter tão defendidos e seguros os mortos, que nem pequem jamais, nem seja possível pecarem. E esta é a sua impecabilidade.

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Sermões
AléatoireREPUBLICAÇÃO AUTOR: Antônio Vieira APENAS SERMÇOES SELECIONADO PELA COMVEST 2021 O padre Antônio Vieira é das personagens mais importantes da história do Brasil e de Portugal no século XVII. Qualquer que seja a posição que se tenha quanto à sua atua...