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Ser pó por eleição, antes de ser pó por necessidade, os que morrem quando morrem, segundo Davi, e os que morrem antes de morrer, segundo S. João.Os três perigos da morte: ser uma, ser incerta, ser momentânea.

Pulvis es, et in pulverem reverteris. Homem cristão, com quem fala a Igreja, és pó e hás de ser pó. Que remédio? Fazer que um pó seja corretivo do outro. Sê desde logo o pó que és, e não temerás depois ser o pó que hás de ser. Sabeis, senhores, por que tememos o pó que havemos de ser? É porque não quereinos ser o pó que somos. Sou pó, e hei de ser pó; pois antes de ser o pó que hei de ser, quero ser o pó que sou. Já que hei de ser pó por força, quero ser pó por vontade. Não é melhor que faça desde já a razão, o que depois há de fazer a natureza? Se a natureza me há de resolver em pó, eu quero-me resolver a ser pó, e faça a razão por remédio, o que há de fazer a natureza sem remédio. Não sei se entendestes toda a metáfora. Quer dizer mais claramente que o remédio único contra a morte, é acabar a vida antes de morrer. Este é o meu pensamento, e envergonho-me, sendo pensamento tão cristão, que o dissesse primeiro um gentio. Considera quam pulchra res sit consummare vitam ante mortem: deinde expectare securum reliquam temporís sui partem.3 Lucílio meu, diz Sêneca, escrevendo de Roma à Sicília. O pensamento saiu de Roma, e fora melhor que não saísse. – Lucílio meu, considera com atenção o que agora te direi, e toma um conselho que te dou como mestre e como amigo. Se queres morrer seguro, e viver o que te resta sem temor, acaba á vida antes da morte. – Ó grande e profundo conselho, merecedor verdadeiramente de melhor autor; e digno de ser abraçado de todos os que tiverem fé e entendimento!. Consumare vitam ante mortem: Acabar á vida antes de morrer; e ser pó por eleição, antes de ser pó por necessidade. Isto disse e ensinou um homem gentio, porque para conhecer esta verdade não é necessário ser cristão; basta ser homem: Memento homo.

Suba agora a fé sobre a razão, venha a autoridade divina sobre a humana, e ouçamos o que diz o céu à terra. Audivi vocem de caelo dicentem mihi: Scribe: Beati mortui qui in domino moriuntur (Apc. 14,13): Ouvi, diz S. João, uma voz do céu que me dizia e me mandava escrever esta sentença: Bem-aventurados os mortos que morrem em o Senhor. – Celestial oráculo, mas dificultoso! Quis mortuus mori potest? – argüi a pergunta S. Ambrósio. – Que morto há que possa morrer? Nullus procul dubio – Nenhum. – Tudo acaba a morte, e tudo se acaba com a morte, até a mesma morte. Quem morreu, já não pode morrer. Só os mortos têm este privilégio contra a jurisdição e império universal da morte. São sujeitos à morte os príncipes, os reis, os monarcas; só os mortos, depois que uma vez lhe pagaram tributo, ficarão isentos de sua jurisdição. Por isso Tertuliano chamou judiciosamente a sepultura mortis asylum: asilo, e sagrado, da morte. Contra a alçada da morte, nem o Vaticano é sagrado, mas a sepultura sim, porque os mortos já não podem morrer. Como diz logo a voz do céu a S. João: Bem-aventurados os mortos que morrem em o Senhor? Mortos que morrem? Que mortos são estes? São aqueles mortos que acabam a vida antes de morrer. Os que acabam a vida com a morte, são vivos que morrem, porque os tomou a morte vivos; os que acabam a vida antes de morrer; são mortos que morrem, porque os achou a morte já mortos. Illi sunt beati, et illi in Domino moriuntur, qui prius moriuntur mundo, postea carne, – responde o mesmo S. Ambrósio. Sabeis quais são os mortos que morrem? São aqueles que acabaram a vida antes de morrer; aqueles que morreram ao mundo antes que a morte os tire do mundo: Qui prius moriuntur mundo, postea carne. Estes são os mortos que morrem; estes são os que morrem em o Senhor; estes são os que a voz do céu canoniza por bem-aventurados: Beati mortui.

E se os que morrem mortos são bem-aventurados, os que morrem vivos, que serão? Sem dúvida mal-aventurados. Grande texto de Davi: Veniat mors super illos, et descendant in infernum viventes (Sl. 54, 16): Venha a morte sobre eles, e desçam vivos ao inferno. – A primeira parte desta sentença, faz estranha e dificultosa a segunda. Que possam homens descer vivos ao inferno, exemplo temos em Datã e Abiron: abriu-se a terra, e engoliu-os o inferno vivos (Núm. 16,32). Mas o caso do nosso texto ainda encerra maior maravilha. Diz que virá a morte sobre eles: Veniat mors super illos, e que assim descerão vivos ao inferno: Et descendant in infernum viventes. Se a morte veio sobre eles, já os matou, e se já são mortos, como diz o profeta que desceram ao inferno vivos? Porque esse é o estado em que os achará a morte. Não fala o profeta do estado em que hão de chegar ao inferno, senão do estado em que os achará e tomará a morte, quando lá der com eles. A morte quando vem, mata a cada um no estado em que o acha. Aos que acabaram a vida antes de morrer, mata-os já mortos; aos que não quiseram acabar a vida antes da morte, mata-os vivos. Estes tais, vem a morte sobre eles; os outros, vão eles sobre a morte. E vai tanta diferença de vir a morte sobre vós, ou irdes vós sobre ela, vai tanta diferença de morrer assim vivo, ou já morto, que os que morrem mortos, são os que têm seguro o céu: Beati mortui, qui in Domino moriuntur; e os que morrem vivos, são os que vão ao inferno: Veniat mors super illos, et descendant ia infernum viventes.

Senhores meus, o dia é de desenganos. Morrer em o Senhor, ou não morrer em o Senhor, haver de ser bem-aventurado, ou não haver de ser bem-aventurado, é o ponto único a que se reduz toda esta vida e todo este mundo, todas as obras da natureza, e todas as da graça, tudo o que somos, e tudo o que havemos de ser, porque é salvar, ou não salvar. Este é o negócio de todos os negócios, este é o interesse de todos os interesses, esta é a importância de todas as importâncias, e esta é e deve ser na cúria, e fora dela, a pretensão de todas as pretensões, porque este é o meio de todos os meios, e o fim de todos os fins: morrer em graça, e segurar a bem-aventurança. E se me perguntardes: essa bem-aventurança, e esse seguro, e essa graça, por que a não promete a voz do céu aos vivos que morrem, senão aos mortos que morrem: Mortui qiu moriuntur? A razão verdadeira e natural, e provada com a experiência de todos os que viveram e morreram, é porque aqueles que morrem quando morrem, hão de contrastar com todos os perigos e com todas as dificuldades da morte, que é coisa muito arriscada naquela hora; porém os que morrem antes de morrer, já levam vencidos e superados todos esses perigos e todas essas dificuldades, porque na primeira morte desarmaram e venceram a segunda.

Três coisas (dividamos o discurso para que declareinos e apartemos bem este ponto) três coisas fazem duvidosa, perigosa, e terrível a morte: ser uma, ser incerta, e ser momentânea. Estas são as três cabeças horrendas deste Cérbero, estas são as três gargantas por onde o inferno engole o um ndo. E de todas estas dificuldades e perigos se livra seguramente só quem? Quem não guarda a morte para a morte, quem acaba a vida antes de morrer; quem se resolve a ser pó antes de ser pó: Pulvis es.

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