§XV

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Sétimo inimigo: o político. Os políticos argumentam com a autoridade: Como é possível que o monarca ao universo se exponha assim a todos, cercado só de uns acidentes de pão! – Razão: Onde se conquisiam venerações, não se perde autoridade. A lançada da lado de Cristo e a Igreja. A construção da igreja de Santa Eustáquia, e os muros de Lisboa.

Ultimamente argumenta o político, e do mesmo caso que deu ocasião a esta solenidade infere não estar a pessoa soberana de Cristo naquela hóstia. Os príncipes de nenhuma coisa são nem devem ser mais zelosos que de sua autoridade. Já arriscar e expor a soberania da própria pessoa a perder vir às mãos de seus inimigos, antes perderá um príncipe a vida e mil vidas, que consentir tal afronta. E se não, lembre-se a fé do primeiro rei de Israel. Perdida a batalha dos montes de Gelboé contra os filisteus, achava-se Saul tão malferido, que nem se pedia retirar nem defender. E que resolução tomau neste caso? Tira-me por esta espada, disse ao seu pajem da lança, e mata-me: Ne forte veniant incircumsisi isti et interficiant illudentes mihi: Por que não venham estes infiéis, e me tirem a vida, perdendo o respeito (1 Rs. 31, 4). Pelo respeito e pela autoridade o havia, e não pela vida, pois se mandava matar: Não teve ânimo o criado para o executar, e lançando-se o mesmo Soul sobre a ponta da sua espada, caiu morto por não cair nas mãos de seus inimigos. Assim estimam os príncipes, e assim devem estimar mais a autoridade que a vida. Pois se tanto preço tem na estimação dos monarcas supremos a autoridade e soberania de suas pessoas, se antes quer um rei generoso tirar-se a vida por suas mãos, que poder vir às de seus inimigos, como é possível nem crível, que o príncipe da glória, Cristo, que o rei dos homens e dos anjos, que o monarca universal do céu e da terra, deixasse tão mal guardada sua autoridade, e tão pouco defendido seu respeito, como é força que o esteja, cercado só de uns acidentes de pão? Como é possível, nem crível, que deixasse tão arriscada e exposta a majestade divina de sua pessoa a cair nas mãos infiéis e sacrílegas de seus inimigos, como publicam as memórias deste dia, e a ocasião e o nome destes desagravos?

Aos outros argumentos respondi pela razão, com o que estudei; a este respondo com o que vejo. Onde se conquistam venerações não se perde autoridade. Estes são os ditames de Deus, esta foi sempre sua razão de estado. Permitiu o que choramos para conseguir o que vemos. Que maior exaltação de fé, que maior confusão de heresia, que maior honra de Cristo? Tanto rende a Deus uma ofensa, quando é a cristandade a que sente, e a nobreza a que a desagrava. As majestades e altezas do mundo, os grandes, os títulos, os prelados, as religiões, todos prostrados por terra, todos servindo de joelhos, todos confessando-se por escravos humildes, e adorando como a supremo Senhor; aquela soberana majestade, sempre venerável e sempre veneranda, mas muito mais quando ofendida. Veja agora o político se perde Deus autoridade, ou se conquista honra e glória quando permite uma indecência? Dizia esse mesmo Senhor (que sempre é o mesmo, e sempre se parece consigo): Si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad me ipsum: Quando eu for levantado da terra em uma cruz, hei de trazer tudo a mim (Jo. 12,32). A afronta da cruz foi a maior que padeceu, nem pedia padecer Cristo a mãos da infidelidade e temeridade humana, mas as conseqüências dessa mesma afronta, diz o Senhor que haviam de ser as suas maiores glórias, trazendo tudo a si. Assim o mostrou e vai ainda mostrando o cumprimento desta profecia pelo discurso dos tempos da fé universal do mundo, quase todo já trazido ao conhecimento, obediência e veneração de Cristo. Mas, se quisermos apertar mais a significação e energia daquele Si: Si exaltatus fuero a terra, nos obséquios de José e Nicodemos, se verificou na mesma cruz o Omnia trabani adme ipsum. José, como notou S. Marcos, era nobre: Nobilis decurio (Mc. 15, 43); Nicodemos, como notou S. João, era príncipe: Princeps judaeorum (Jo. 3,1). E como Cristo desde a sua cruz havia de trazer a si a nobreza e os príncipes, por isso diz que havia de trazer a si tudo: Onmia traham ad me ipsum, porque os príncipes e a nobreza é o tudo dos reinos. Escolheu Cristo aos nobres e senhores para que o tirassem do afrontoso suplício e fizessem as honras a seu corpo, porque honrar o corpo de Cristo afrontado, é ação que anda avinculada à nobreza. E quando assim trouxe a si a nobreza, diz que havia de trazer a si omnia, e não omnes; tudo, e não todos, porque os nobres não são todos, mas são tudo. Bem se cumpriu esta promessa então, mas muito melhor cumprida a vemos agora. Omnia traham ad me ipsum. Tudo o que há em Portugal, aqui o tem Cristo a seus pés.

Que fez este dia tão solene, e esta igreja tão célebre, senão uma injúria a Cristo? Quando o soldado infiel deu a lançada a Cristo, saíram do lado ferido todos os sacramentos. E disse judiciosamente Tertuliano: Ut de injuria lateris ejus tota formaretur Ecclesia: Que de uma injúria do corpo de Cristo, se formau toda a Igreja. O que Tertuliano disse da Igreja universal, podemos nós dizer desta material: que se fundou esta nova igreja de uma injúria do corpo de Cristo. Mas são muito de reparar os termos de Tertuliano, que da injúria do corpo de Cristo, não diz que se formaram só os fundamentos, senão toda a Igreja: Tota formaretur Ecclesia. Vemos levantados os fundamentos desta nova igreja muito nobres, muito suntuosos, muito magníficos e muito conformes aos ânimos generosos de seus ilustres fundadores; mas sente muito a piedade cristã e portuguesa ver a fábrica parada há tantos anos. Quando no interrompido ou ameaçado desta obra se pudera presumir descuido, assaz desculpado ficava com a variedade e estreiteza dos tempos, mas quanto esta estreiteza é mais pública e conhecida, tanto maior louvor merece o novo e presente zelo com que se trata de levar a fábrica por diante e não parar até se pôr em sua perfeição, sendo o primeiro exemplo o de sua majestade, que Deus nos guarde, cuja real liberalidade quer ter uma grande parte nesta obra, como em todas as de piedade.

Os tempos parece que estão pedindo que se edifiquem antes muros e castelos, que templos, mas esse privilégio têm nomeadamente os templos do Santíssimo Sacramento, que são as melhores fortificações dos remos. Edificou a divina Sabedoria um templo: Sapientia aedificavit sibi domum (Prov. 9,1). Dedicou este templo ao Santíssimo Sacramento: Miscuit vinum, et proposuit mensam. E que se seguiu daqui? Misit ancillas suas ut vocarent ad arcem et ad moenia civitatis35. Os que serviam naquele templo, como os que servem neste, era com nome de escravos, e a esses escravos mandou o Senhor que chamassem para a fortaleza e para os muros da cidade. Pois como? O que se edificou era templo ao Santíssimo Sacramento, e o recado com que se convocava a gente para o templo dizia que viesse para os muros e para as fortalezas da cidade: Ad arcem et ad moenia civitatis? Sim; que os templos do Santíssimo Sacramento são os mais fortes muros, são as mais inexpugnáveis fortalezas das cidades e dos remos. Edifique-se, levese por diante esta fábrica, que ela será os mais fortes muros de Lisboa, ela será a mais inexpugnável fortaleza de Portugal. E acabará de conhecer o político a razão de estado de Deus, que quando se expõe a cair nas mãos de seus inimigos, é para mais nos defender dos nossos, e para fundar sobre suas injúrias o edifício de suas glórias, aprendendo e confessando na política deste altíssimo conselho de Cristo a verdade secretíssima e sacratíssima daquele Vere: Vere est cibus, vere est potus.

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