Monstros internos

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Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. Se olhares, por muito tempo, para um abismo, o abismo também olhará para dentro de ti.

E se o meu monstro estiver dentro de mim?
E se o meu abismo for o tempo?
Quem luta contra o tempo?
Quem luta contra monstros?

Todos nós temos uma perspectiva diferente, mas a minha é incomum :
Com o tempo, perde-se tempo.
Com os monstros, perde-se as armas.
Com os pesadelos, perde-se os sonhos.
Com o rancor, perde-se o amor.
Com a realidade, perde-se o mundo perfeito.

O tempo não pára, nunca parou.
Os monstros não param de surgir, nunca param.
Os pesadelos sempre vêm, nunca há sonhos.
O rancor sempre surge, nunca vai embora.
A realidade sempre volta, e o mundo perfeito perde-se.

Esta é a realidade

Mas e se o tempo parar?
Os monstros vão-se embora?
Os pesadelos não voltam?
O rancor desaparece?
A realidade pára?

Talvez

Talvez tudo isso desapareça.
Talvez tudo isto não volte.

Mas ninguém consegue parar o tempo.
Mas ninguém consegue controlar o tempo.
Mas ninguém consegue voltar no tempo.
Ninguém consegue.

Nem mesmo eu

Mesmo que quisesse naquele momento... Nunca poderia.
Abri os olhos ao som de uma grande explosão. A aranha gigante que nos atacara estava, agora, caída no chão completamente sem vida. Suspirei de alívio. Mas esse momento vitorioso foi breve. Ao lado da grande criatura, estava um homem, ou parte dele. Christopher.
Não, não pode ser - pensei para mim mesmo-Pai? Como...
Atrás de mim vi a Liz a correr em minha direção, cobrindo os meus ombros com os seus longos braços. A sua face sem expressão meteu-me arrepios. Como se ela fosse imune à dor emocional. Ela apenas olha para mim e tenta descobrir as melhores palavras para dizer.
-César, lamento. Eu sei como é perder alguém importante, estaremos sempre aqui para te apoiar.
Vou me libertando dos seus braços enquanto imite as tais palavras. "Estaremos sempre aqui para te apoiar". Que linda frase, mas ele não cá estará, nunca mais.
Começo a caminhar para a frente, sem qualquer rumo. A clareira onde estamos está em chamas, não lhe restará nada quando o fogo se extinguir, apenas restará cinzas do que antes era uma grande floresta. Ao olhar para cima, o céu estava negro, mais negro do que o normal e dele caiam gotas de chuva.
À medida que avanço para a frente, sinto o meu rosto a queimar, por causa do fogo, mas a chuva suaviza a dor que sinto. Ou parte dela. Sem qualquer controlo no corpo, os meus joelhos embatem no solo arenoso, a chuva fica mais intensa, o que faz esconder as lágrimas que saem dos meus olhos. Nunca pensei em sentir esta dor de novo. A perda.
Quem diria não é? Fui deixado para trás pelo homem que deveria me criar, juntei-me à ordem e reencontrei-o, mas e agora? Que diferença fez? Perdi-o mais uma vez, uma última vez.
Nem tive tempo de me despedir dele.
Sem hesitar começo a cavar um buraco com as mãos, fazendo um movimento monótono. À medida que retiro uma pequena percentagem de areia, Liz vem para junto de mim com uma pá.
-Talvez isto ajude - disse ela com os seus olhos postos na floresta
-Obrigado.
Pego a pá de suas mãos e levanto-me, cavando mais fundo e mais fundo. Nunca mais acaba. O clima torna-se cada vez mais frio, porquê frio? Eu odeio frio.
-Eu posso ajudar César
Ao ouvir uma voz atrás de mim e viro-me com dificuldade - Joe
-Eu posso cavar por ti.
Acho que deveria ser eu a fazer isto, honrar o meu pai depois da sua morte. Mas não tenho forças suficientes para continuar.
Seguro a pá com força e entrego-a para o Joe.
-Aqui Joe, obrigado
Ele apenas olha para mim, com uma olhar pesado mas piedoso.
A fim de algum tempo, no chão existia agora um grande buraco. Olho em volta, vou em direção ao corpo de Chris, tento rastejar o corpo até à área onde o iremos enterrar. Onde ele ficará para o resto da eternidade.
Com a ajuda do Joe, os restos mortais estão neste momento em baixo da superfície. O Thiago trouxe algumas capas de chuva amarelas para nós. Percebo que a Liz começa a fazer uma cruz improvisada com dois pequenos troncos, para os amarrar utilizou folhas compridas. Enquanto isso, imergi o buraco com areia. Olho por um momento para a sua face inexpressiva, dá-me arrepios olhar para a sua cicatriz, nunca soube da história dela. Vejo que está na hora de me despedir, com a pá cheia soterro o Chris.
Com os meus olhos ainda postos no chão, tento encontrar as palavras exatas para aquele momento, mas não consigo controlar as emoções dentro de mim, a minha cabeça está confusa.
Vejo o Thiago a retirar algo do bolso do seu moletom, um relógio de bolso dourado com detalhes bordô, parecia bastante velho.
Ele não disse nada, apenas colocou com cuidado o relógio na cruz. Liz faz o mesmo, mas com uma fotografia de uma senhora sorridente de olhos azuis e cabelos ondulados castanhos. Ela é linda, parece um pouco a Liz - Oh é a mãe.
Dou um leve sorriso, este gesto deles me encoraja a tirar a fotografia da minha mãe também--uma mulher linda de cabelos e olhos castanhos escuros, ela sorria naquela foto, sinto o meu coração esquentar ao ver a fotografia--coloco junto à cruz também.
Sinto um arrepio.
-Está frio -digo por fim- está frio por dentro e você sabe que eu não gosto de frio.Mas eu sei que você vai me esquentar daí de cima.
Sinto uma frescura no rosto, bastante agradável - chuva? Ainda mais?
-Vamos para dentro, não quero ficar doente - riu ironicamente
Vi que todos deram um sorriso de compaixão para mim.
Caminhamos lentamente pela clareira até chegar ao bar "Sovaco seco", Liz, Joe e Arthur entram, vejo o Thiago a olhar fixamente para o céu - ele também passou um mau momento - ainda com os seus olhos postos para cima entra. Eu hesito por um momento, mas acabo por entrar também.
A visão que tenho é exatamente esta:
Os galderios com um ar preocupado a tentar pedir explicações, Liz e Joe com uma garrafa de whisky em suas mãos e o Thiago tem uma mão a cubrir a cara.
Não quero fazer parte da confusão, não hoje, não agora. Sento-me na cadeira do balcão, mais perto da saída. Em silêncio.
-Seu nome é César não é?
Levanto os olhos até à Ivete.
-Sim eu mesmo.
-você não quer beber alguma coisa? Tem um ar exausto, você e os seus amigos.
Olho por um momento para a mesa onde se encontram.
-Eles vão ficar bem - digo acreditando na mentira - se me der um copo de água gelada eu ficaria feliz - dou um sorriso fraco.
-Nada disso - disse o Brulio ao se aproximar - Ivete trás uma cerveja para o menino.
-Eu aceito apenas o copo de água obrigada.
A Ivete fica um pouco confusa, mas logo de seguida se vira e trás um copo de água, pousando-o à minha frente.
-César - começou Brulio - Eu sei que pode não ser o melhor momento para isto mas, acho que preciso tirar este peso.
Eu anuo.
- Podia não conhecer o Christopher à muito tempo mas, ele já era da família. Sei o que estás a sentir neste momento, eu entendo, então eu tenho que te dizer algo bem importante - sento-me melhor na cadeira para escutar com mais atenção - o Christofer era bem mais forte que eu.
Riu um pouco. Que sarcástico não é?
-Obrigada por confessa isso Brulio - digo ironicamente
-Sempre às ordem - ele faz uma pequena pausa, tento olhar para os seus olhos para descodificar as suas emoções - O que são aquelas criaturas? E porquê que elas estão aqui?
Oh - ele viu tudo, é normal ele estar confuso mas, o que é que eu posso dizer sem refringir as regras da ordem?
-Talvez seja melhor falar com a Liz e o Thiago eles têm mais experiência - levanto-me da cadeira - eu devo ir agora, vou descansar um pouco, boa noite
Caminho lentamente até ao parque de estacionamento totalmente vazio.
A chuva abrandou um pouco, mas ainda existe uma pequena brisa fresca a pairar no ar.
-César?
Paro de caminhar. Mas sem me virar.
Reconheço a voz.
-sim?
-Não quer carona? Está frio é está a chover...
-Não precisa Thiago, preciso de um tempo para pensar e esfriar a cabeça. Este é o melhor momento da noite para isso não acha? - tento sorrir - te vejo no hotel
-Espera um minuto!
Ele retira o seu moletom cinza e me entrega.
-Leva isto, quando chegares ao hotel toma um banho quente e tira as roupas molhadas. Pode devolver depois, não se preocupa, eu vou de carro por isso não vou ter muito frio.
-Obrigada Thiago.
Coloco o moletom pelas costas e continuo o caminho. A chuva parou, e o céu turnou-se uma tela azul com estrelas brilhantes a cubri-la. O silêncio total da cidade foi a minha companhia. E os meus pensamentos também. Não consigo tirar a imagem de Chris sem vida no chão, não consigo parar de ver a grande aranha à minha frente, não consigo... Já perdi demasiadas pessoas, já perdi as pessoas que mais amei na vida. Eu só pergunto "O que o futuro quer de mim".
Cheguei ao hotel - finalmente
Tiro o moletom dos meus ombros.
-Boa noite meu senhor, quer se hospedar?
-Boa noite, eu estava aqui hospedado à alguns dias.
-Oh certo, número do quarto?
Não faço a mínima ideia de qual seja.
-23 - digo com medo de não ser o meu quarto
Vejo o atendente a teclar no pequeno computador. Ele é um rapaz de meia idade de cabelos pretos e olhos castanhos, um homem bem simples diria eu.
-Oh sim! Senhor César Oliveira?
Olho para ele fixamente.
-César Cohen, eu próprio - pego nas chaves do quarto 23 e subo as escadas até ao segundo andar.
Ao entrar no quarto faço o que o Thiago disse, tiro as roupas molhadas e tomo um breve duche quente - já não sinto frio
Visto-me bem rápido e oiço uma batida na porta.
-César?
Thiago? Já chegaram?
Abro a porta lentamente e vejo o Joe se apoiando ao Thiago
-Hm, está tudo bem? - pergunto bem confuso
-Ele bebeu demais, a Liz também.

Quem diria não é mesmo?

-Eu sei que hoje não é um bom dia e que você precisa de pensar e estar um pouco sozinho mas... A Liz está sozinha e está a discutir bastante com o atendente para ter mais uma garrafa de whisky, tenho de impedir que isso aconteça.
-Não se preocupa vá cuidar dela... Eu tento cuidar do Joe.
-Se precisar de alguma coisa estou no quarto 32.
Eu coloco o braço do Joe nos meus ombros e quando estava prestes a entrar o Thiago diz bem baixo, como se fosse um sussurro
"lamento César, eu compreendo sua dor" e fecha a porta.
O Joe murmura algumas coisas sem sentido enquanto eu o deito na cama.
Ele vomitou?
Oh, tenho a certeza que sim, que cheiro horrível.
Vou à casa de banho, molho uma toalha pequena e levo-a até ao Joe. Coloco os joelhos só chão e com alguns movimentos leves limpo a borda de sua boca. Ele parece acabado também. Vou deixá-lo dormir em paz.
Sento-me no chão com as costas apoiadas na cama. Tenho de descansar também. Talvez amanhã tudo esteja bem. Talvez tudo não passe de apenas um pesadelo.

O segredo entre nósOnde histórias criam vida. Descubra agora