Memorial da doce Impiedade pt1

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A vida instruiu-me a viver da pior forma, no conhecimento da dor, das lágrimas derramadas, do reconhecimento da culpa e da desilusão. Uma adestração para a realidade que encaro cotidianamente. A dor desproporcional que meu peito é coagido a vivenciar. As lágrimas gélidas de um sofrimento implacável que derramo sem prévio aviso de meu corpo. A verídica culpa que persiste na minha alma, constantemente insistindo a ser sentida e libertada de uma forma impiedosa. A desilusão que aparece diante do meu olhar como fruto da imperfeição humana. Sentimentos padecidos e perpétuos em mim que exigem soberania. Pensamentos gritantes e errantes fazem-me praticar atos imorais que nunca considerei empreender no rumo da minha vida. Mas eu sei, eu tenho essa suposição em minha cabeça, que a vida traz consigo tais obstáculos para que eu me erga em força e encare a realidade da forma adequada e precisa.

Acordo subitamente em um quarto iluminado pela luz irradiante da manhã, que transpassa pela abertura da janela lá presente, incorretamente coberta com cortinados avermelhados que não protegiam o quarto da entrada de calor. Sinto o meu corpo transpirado por completo e descoberto do cobertor níveo enquanto no meu interior sentia o meu coração disparar compulsivamente, bombeando fortemente o meu sangue para todas as parcelas de meu corpo, insinuando o pavor que senti precedentemente. Ergo as minhas mãos até meu peito, o apertando em aflição com uma imagem presente em minha mente. Daniel, um homem alto e de cabelos como a calma de uma chama quente, que transmitia submissão, segurava-me pelo pescoço enquanto um outro homem de pele naturalmente escurecida e de óculos circulares, Alexsander, percorria fulminantemente o interior da caixa torácica, segurando impiedosamente o meu coração, o pressionando com grande potência, me levando à morte. Tudo não passava de um sonho espontâneo. De um pesadelo. Parecia tão real, eu conseguia ver, sentir, ouvir. Mas eu acordei com vida mesmo ainda sentindo a dor a me corromper, forçando a libertação de lágrimas.

Observo o meu redor e encaro a mesa de cabeceira empoeirada ao meu lado, onde permaneciam os óculos com lentes partidas de Alex e o cantil cinza metálico de Daniel. Controlando minha respiração, arremesso ambos os objetos para longe de minha cama, caindo no chão fazendo um som estrondoso de vidro a ser fragmentado e de metal a embater na superfície, como sinal de repugnância e desilusão. Todo este pesadelo foi fruto da culpa que pressinto diariamente. Quem saiba, este tormento que tive que passar serviu para mentalizar a minha cabeça de que eu não tenho verdadeiramente a culpa total por ambas as mortes e por todas as perdas que tive que vivenciar. A culpa não é apenas minha.

Com esse pensamento, elevo o meu corpo do seu repouso ouvindo alguém gritar o meu nome pelo corredor. Caminho lentamente até à porta de madeira e giro a maçaneta dourada, deixando deslizar a porta para o interior do cômodo, deixando revelar uma expressão preocupada de Joui

-Senhorita Liz - ele fala desesperado ao me ver. Sem pensar muito, caio em seus braços o abraçando com força, deixando-o se confortar com o meu carinho, sentido-o a apertar-me ainda mais em seus braços

-Você está bem. Eles não te fizeram nada, estava tão preocupada com você pequeno - digo com um sentimento horrível de que Joui havia me visto morrer sem conseguir fazer nada. Sem eu nem ao menos lutar para viver.

Sinto uma mão em meu ombro, o segurando com carinho. Solto-me do abraço e encaro a pessoa que me segurava. Thiago. A sua face insegura, deixava escapar um sorriso tímido e um olhar soturno que ao passar do tempo se tornava eufórico. Ele acaricia a minha pele suavemente antes de olhar para o Joui. Eu o encaro fascinada, mas lembro-me do pesadelo, da forma com que ele segurava-me a mim própria para perto, tocando suavemente em meus lábios, segurando minha cintura enquanto narrava uma confissão. Mas não era eu ali. Era a culpa dele. Uma culpa representada por uma figura feminina idêntica a mim. O meu maior desejo, era eu ser aquela pessoa para ele. Ser segurada por ele, o sentir. Mas não era eu que ele segurava na noite anterior. Não era eu que ele desejava. Bem, tecnicamente era a minha imagem, mas eu consigo sentir que não era eu ali, não era o meu corpo, minha voz, minha mentalidade. Ele deseja uma versão de mim que é impossível eu desejar para mim própria.

O segredo entre nósOnde histórias criam vida. Descubra agora