Música da Alma

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Perder para a razão, sempre é ganhar.
A razão para mim é questão de lógica. Questão de tempo.
Eu vivo mais com a emoção. O lado emocional. Ele sempre vence. Porque, afinal, o ser humano é feito de sentimentos à flor da pele. Porque, afinal, nos momentos mais difíceis o lado emocional sempre vem. Porque, afinal, tudo é questão de sentir.
Sempre aprendi a ser otimista. Mesmo quando as coisas tornam-se desfavoráveis.
Talvez seja a melhor forma de lidar com a vida. Ou talvez não.
Irei aprender com o tempo o que será melhor para mim. Melhor para as pessoas ao meu redor. Eu perdi algumas pessoas ao longo da jornada da vida. Eu senti cada morte. Eu sofri cada perda. Mas temos de seguir em frente. O que seria da vida se fosse só dor e sofrimento? O que seria da vida se eu não sentisse mais nenhuma emoção.
Claro que ainda dói. Nada passa tão rápido, as memórias ainda existem, os momentos ainda estão bem acessos na minha mente. Mas eu sei. Eu sei que é melhor seguir em frente, viver no presente e não no passado.
Mas hoje, não consigo viver no presente. As memórias da noite passada são recorrentes. São mais fortes e claras.
O que eu me lembro?
Lembro que conheci um grupo de pessoas gentis que falaram comigo e com o meu pai, nunca os tinha visto, mas já tinha ouvido falar deles.
Lembro de ver o cadáver de um velho amigo - senhor Getúlio, a sua casa completamente destruída e coberta de sangue, um sentimento de culpa surgiu em mim naquela mesma hora, ou teria sido remorso?
Lembro de uma criatura gigantesca que aparentava ser uma aranha preta com um grande símbolo avermelhado no seu grande casulo. Uma grande luta ocorreu.
Na minha mente veio Chris. Um homem bastante alto e musculado, ele realmente era bem forte. Eu vi. Eu vi a sua morte. Eu vi a tristeza dos meus novos amigos.
Especialmente de César, ele não merecia, aliás, nenhum deles merecia ter visto o falecimento de Chris.
Fomos para o bar depois de uma pequena mas simbólica homenagem. Foi bem triste na verdade, o ar que pairava no ar estava pesado, as chamas e a chuva davam um tom dramático à situação. O que não ajudou ninguém.
A liz e o Joui acabaram por beber, o Thiago ficou com ele mas não bebeu nem um copo.
O César? Bem eu não o vi mais. Talvez ele precisasse de ficar só. Eu o entendo. Na morte do meu irmão e da minha mãe eu só queria estar só, queria estar com os meus pensamentos. Penso que é normal, é a forma com que o ser humano reage à perda.
A noite terminou com uma discussão, sobre o motivo dos acontecimentos e sobre o que era a tal criatura gigantesca. Eu não abri a minha boca, apenas fiquei lá, a ouvir e a refletir.
A floresta. O fogo. A chuva. O lodo negro. A morte. Tudo isso fez parte da noite de ontem. Agora está tudo ciente na minha memória.
Não dormi quase nada hoje. Quem poderia dormir com tudo isto em mente?
Os meus pensamentos são interrompidos quando ouço alguns passos pesados. Reconheço que são do meu pai. Ele abre a porta e eu finjo que estou ainda a dormir. Não quero que ele se preocupe comigo ou que me faça mais perguntas. Quando ele saiu eu sento-me na cama e olho pela pequena janela do meu quarto - um céu azul coberto de nuvens. Sorriu com esta visão. Depois de tanta destruição e dor existe uma certa calmaria - que irónico. O mundo dá mesmo voltas.
Respiro bem fundo.
Olho para a minha roupa espalhada pelo quarto. Ontem não tive paciência para arrumar nem as roupas. Levanto-me da cama, visto-me  bem rápido e saio do quarto.
Pelo meu maior espanto não tinha mais ninguém aqui em casa. Brulio saiu. Ele tem coisas para fazer no bar.
O caminho é bem rápido, sem muitas curvas. Chego rapidamente ao bar e quando tiro a capacete vejo que toda a gangue está a colocar uma moeda em uma cova. Aproximo-me deles, retiro do meu bolso uma moeda e atiro para a terra. Nós fazemos sempre isso. É a nossa maneira de agradecer e dar honra para os nossos falecidos. Estão todos soturnos, eu não gosto de os ver assim.
-Vamos para dentro - digo em um tom baixo - vamos tocar em homenagem
Eu não sei mais o que fazer. Penso que música agora seria ótimo. Por as emoções em acordes. Sempre nos ajudou afinal.
Todos anuem com a cabeça e entramos.
Subo para o pequeno palco improvisado que fizemos para o espetáculo que era para ter sido realizado ontem. Agarro a minha guitarra com a mão esquerda e olho para os meus colegas. Eles estão prontos. Estão todos à espera que eu lance a primeira nota.
Seguro bem firme a guitarra. Eu não sei o que tocar. Vou tocar aquilo que me vem na alma. Dizem que é bom para um músico tocar o que sente no momento.
Todos eles seguem as minhas notas em um ritmo calmo. O meu pai sentou-se ao balcão. A Ivete também estava lá. É um momento em família. Por alguns minutos o único som que se podia ouvir era uma melodia improvisada por todos. Uma doce melodia.
Quando olho para a porta vejo quatro figuras conhecidas. Thiago, Liz, César e Joui. O César vem na frente com uma postura direita, seguido pelo Joui e pelo Thiago, a Liz vem mais atrás com os braços cruzados e meio cabisbaixa. Páro repentinamente, fazendo um som desagradável. Todos reparam e pousam os seus instrumentos. Brulio olha para eles com um olhar severo. Eu não saiu do palco. Não me mexo. O meu olhar apenas passa por todos os que estão no bar.
-Podemos? - Diz o César a quebrar o silêncio
-Vocês já entraram! - o meu pai realmente está chateado com tudo isto. Não o culpo.
O Joui corre na direção do balcão e se ajoelha.
-Desculpe senhor Brulio. Eu realmente não deveria ter bebido tanto ontem. Eu fui imprudente! - ele coloca os olhos no chão - mas nós tínhamos perdido Chris
-Sim. Eu reparei que tu tinha bebido demais. E também sei o quão difícil é conversar com bêbados. Não se preocupa. Não guardo rancor
O Joui se levanta e o César se aproxima mais.
-Desculpe por esta entrada.
-Só quero saber da verdade e somente a verdade! Desde o dia que vocês entraram pela aquela porta eu sabia que vocês não eram o que vocês afirmavam ser!
Eu vou para junto do Thiago, que estava mais calado que o normal.
A liz começa a falar mas o César é mais rápido.
-E terá a verdade - ele olha para nós - nós vamos contar tudo o que sabemos até agora.
No final da frase todos se aproximam do balcão. O César olha confuso e meio desconfortável.
-Podemos falar a sós senhor Brulio?
-Algum problema? Eu confio nos meus homens - ele volta os olhos para a Ivete - e na Ivete.
-As nossas informações têm limites, acredito que os seus homens, sejam homens de palavra, mas, as nossas palavras são também um tanto complicadas e restritivas. O senhor entende não é? - finalmente o Thiago abre a boca, ele está inexpressivo.
Brulio apenas faz um sinal para a gangue sair. Oiço alguns murmúrios de desaprovação. Todos saem. Menos a ivete claro, ela nunca sai do balcão é o direito dela afinal.
-Depois - continuou Thiago - você decide se essa informação é válida ou a eles. Pode falar cesinha
Ele suspira e procede.
-Eu acho que deveríamos dizer o que nós somos e para quem trabalhamos - ele cruza os braços e com um olhar frio olha para o meu pai - Nós trabalhos para a ordem onde o nosso trabalho é parar ou tentar parar os esoterroristas, que são pessoas que forjam corpos para parecer que algo paranormal aconteceu e não só - ele fica mais sério e suspira - eles são os principais culpados por enfraquecer a membrana do nosso mundo, ao enfraquecer essa membrana coisas paranormais surgem, o nosso trabalho é impedir que as criaturas criadas não façam vítimas - ele pausa olhando para a janela onde podia-se ver a sepultura de Chris - para que não façam mais vítimas...
Brulio nem ligou para o tom de voz  desanimado de César.
-Então quer dizer que o senhor Getúlio foi uma vítima? Afinal não foram os assombrados? - ele poderia não demonstrar mas eu poderia ver o fogo a arder em seus olhos.
O César apenas olha para ele com os olhos em lágrimas - Infelizmente sim, lamento a sua perda.
-Nós neutralizamos as criaturas que estavam no sanatório - exclamou o Thiago
Eu fico meio confuso. Sanatório? Não era apenas uma lenda? Então... Está tudo interligado? As histórias são verdadeiras?
-O sanatório existe?! Aquelas criaturas ainda são um risco para o bar? Eu nunca vi aquilo antes...
Ele direcciona o olhar na minha direção. Sinto que está preocupado. Não quero que ele se sinta assim.
-Para o bar não - digo - Nós conseguimos controlar a situação
-O que são aquelas coisas? O que elas faziam aqui? São um risco muito grande?
A Liz alcança o César, segurando a manga da camisola dele.
- Tudo tem riscos. Tudo tem consequências. Não podemos ivitar isso César - diz como um sussurro
Ele apenas olha para ela e sorri com os olhos fechados, diria que o sorriso dele é calmante.
-Ainda existe um risco sim. Mas nós estamos a tratar disso, ou a tentar dar o nosso máximo - vira-se de novo para Brulio.
O meu pai não parece convencido.
-As criaturas, são apenas monstros pai. Lembraste daquelas histórias que sempre contavas para mim e para o meu irmão? As histórias são reais e eu sou o herói que vai tentar parar tudo isto - sorriu com a memória. Era a melhor parte do dia, aliás da noite, o meu pai sempre contava uma história que eu achava assustadora quando era mais novo. O meu irmão sempre gostou de histórias desse género, ele gozava tanto comigo por ter medo. Não tenho culpa se o paranormal era tão...
-O quê? Aquela lenda do doutor Lunático? Eu apenas contava para vos assustar quando eram mais novos! E afinal, é uma história para assustar viajantes.
-Tudo é real pelos vistos - digo por experiência eu acho... Eu não sei bem, acho que já vi um pouco deste mundo paranormal para poder dizer isto.
-Essa é uma das formas que os esoterroristas usam para enfraquecer a membrana. Inventam esse tipo de histórias ou lendas para que possam fazer os seus experimentos com um maior nível de sucesso - o Thiago eleva a voz, falando com emoção.
Todos ficam calados. O silêncio é um som tão alto às vezes.
-Existe uma casa - diz Brulio bem sério, quebrando o silêncio - Achei que eram coisas da cabeça do Rodolfo. Mas agora vejo que é real.
Rodolfo. Já não ouvia esse nome à tanto tempo. Eles eram amigos. O meu pai e o Rodolfo. Eles não eram só amigos, eles eram irmãos, eles eram família. Mas tudo mudou quando eu nasci. Pelo o que eu sei. Não me relembro do motivo. O meu pai diz que a culpa não é minha. Do meu nascimento. Mas sim do egoísmo de Rodolfo. Não sei em quem acreditar. Em mim ou nele.
-Mas tu Arthur - acordo do coma ao ouvir o meu nome - tu decides o que fazer. Eu vou ficar nos assuntos que dizem respeito à gangue.
Ele anui com a cabeça e eu olho para todos.
E eles olham para mim.
Estão à espera de uma resposta.
É o momento da decisão Arthur. O que vais decidir? Ir para a ordem e ajudar todos os habitantes do planeta? Ou ficar aqui, com a minha família?
-Se precisarem de ajuda, eu estou disposto a continuar!
Sim este é o meu veredicto, ninguém me pode julgar.
A Liz olha para mim com um sorriso enorme, mas por algum motivo eu via dor em seus olhos. O Joui, o César e o Thiago dão um sorriso leve.
-A ordem precisa de mais alguns elementos. E nós de mais amigos - diz a Liz
Eu sei. Eu prometi não chorar. Quer dizer eu prometi? Sinto uma emoção enorme a surgiu. O meu coração a bater rápido.
-Promento não vos desiludir. Ou pelo menos tentar!
Vejo o César a chegar mais perto de mim, colocando a sua mão direita no meu ombro.
-Não te preocupes. Foste uma grande ajuda ontem e nos dias adiantes também o serás - ele se aproxima mais até chegar ao meu ouvido -Qualquer coisa os profissionais salvam-nos - diz apontado com o dedo indicador para a Liz e o Thiago.
Não pude deixar de sorrir com o comentário.
-Vamos então!
Entramos no carro e o Thiago começou a conduzir pela estrada principal. O César foi na frente para pôr as coordenadas. Eu vou atrás do banco do passageiro. Após alguns minutos a andar na estrada, o Thiago parou bruscamente o carro.
-Não deveríamos perguntar mais nada?
Todos nós concordamos. Fizemos marcha atrás e fomos para o bar. Ao chegar tivemos uma breve conversa sobre fazendeiros da região e terminou com o César a colocar um GPS no meu celular para o meu pai poder ver onde íamos. Ele preocupasse demais. Mas não o posso julgar. Ele já perdeu um filho, não quer perde o outro. Ao fim da conversa fizemos o mesmo que na vez anterior.
-Casa abandonada aqui vamos nós! - disse um tanto animado, a minha primeira missão! Digo a minha missão a sério!
-Pode não estar abandonada agora. Temos de estar preparados para tudo.
Olho para o César após dizer essa frase. É ele pode ter razão. Ele tem razão.
-Pessoal eu pensei em ir de mota. Eu sigo o caminho. Ou como nós aqui costuma-mos dizer "seguirei os caminhos trançados pelos pneus" - Nós não costuma-mos dizer isso. Dizia-mos antigamente, mas eu sempre gostei do valor desta frase. Do significado escondido nela.  Para mim, esta frase é um mapa, onde alguém traça um caminho seguro e o outro alguém segue o seu rastro. Tal como um mapa. Mas é apenas uma observação da minha parte. Pode não ser esse o significado. Sinto que possa ser.
-Muito bem Arthur. Vamos então - diz o Thiago - Toma cuidado na estrada, pelo que vi existe várias fissuras. Não quero que ninguém se magoe.
-Ando desde pequeno por estas estradas Thiago. Se cair, não será a primeira nem a última vez.
-Tenta apenas não cair - fala o Joui terminando a conversa.
Todos entram no carro e começam a dirigir, eu vou atrás com a minha moto.
Não foi um caminho tão longo. Quer dizer comparado com algumas viagens que eu fiz com o Ivan e com a Kelly.
Diante de mim localizava-se uma casa, diria uma mansão pelo tamanho. Ao redor, uma grande florestação. Vi que o carro deles estava escondido entre arbustos robustos com pequenos frutos vermelhos, que, por mais estranho que pareça, era a única coisa que tinha cor. As árvores pareciam mortas, tirando algumas que os seus ramos estavam cobertos de folhas, mas com a geada de uma manhã fria como a de hoje, as fez congelar e encharca-las.
Qual é o objectivo? Primeiramente esconder a minha moto. Coloquei-a atrás de uma árvore mais volumosa. Espero que não dê para ver. Está de noite por isso...
Não vou pensar mais nisso.
Precisamos de agir afinal.

Notas da autora:
Bom gente eu espero que tenham gostado. Esse capítulo teve um atraso pois a outra autora ficou doente e a gente deu um tempo para a recuperação dela. Em compensação esses capítulos a seguir vão ser bem especiais. Um beijo com muito amor do pai abutre.

O segredo entre nósOnde histórias criam vida. Descubra agora