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Aos sábados, Anderson sempre procurou manter sua folga. Achamos importante criar alguns hábitos e tradições, como ficar conversando na cama quando recém acordados. O dia não começava direito sem esse lero matinal, até que eu comentasse: "olha a hora!" e ele retrucasse: "cara, tô quase mijando". Esse despertador é um saco. Você até tenta enrolar um pouco, mas a dorzinha não deixa.
Estive em auxílio doença pelo INSS até início de 2020, demorou a passar e eu senti como se as coisas pesadas tivessem acontecido todas dentro daquela época.
Então, ali nós ainda estávamos em 2018...
Na segunda-feira para mim era o mesmo que domingo por estar encostado, ele tinha compromissos na escola e eu ia alguns dias por semana (em geral no período da tarde) para auxiliar com seu excesso de responsabilidades com assuntos administrativos. Logo, nas manhãs eu me esbaldava na preguiça e em momentos solitários "viajava", refletia, sonhava, chorava, lia, entediava, limpava e o tempo não andava.
O Sol. Quantos deles eu tinha em minha volta. Eu recebia luz e calor de tantas pessoas importantes. Foi um período de aprendizado também, sim, pois olhamos apenas o aspecto negativo da doença. Ainda mais quando encontraram células metastáticas no meu pulmão. E mais uma vez o Oncologista na sua paciência disse que isso era muito comum, mesmo em estágios iniciais. E simplesmente agendou a nova fase de quimioterapia, branca dessa vez.
(Teve conhecido que sugeriu que eu tomasse Creolina com alho para matar essas "raízes do câncer" que estavam se espalhando)
Como se não me bastassem os pesos que carregava, meu pai estava cada vez mais doente e em vez de unir as famílias, falo da família dele, aquela gente que aparecia na casa da consagrada Sandra Regina e a perturbava como se ele estivesse mal cuidado, e a família de minha mãe que não entendia o porque dela aceitar tudo tão passivamente.
O marido que me acompanhava em todas as sessões do tratamento, recentemente tinha me deixado em casa perto das duas horas e correu para a escola. Faltando dois dias para comparecer ao jantar de comemoração do aniversário de casamento do amigo portuga do Anderson no restaurante do Raul, fechado para o evento, eu recebi uma ligação da Rayane que me embrulhou o estômago quando eu tentava engolir um gole de água. Eu não processava as palavras ditas no meio do choro dolorido dela.
— O pai tava "colocando" sangue há dias. A mãe disse pra nem te ligar porque hoje era o dia do seu tratamento e já tá sofrendo por isso.
— Ai amor... Ray, calma não chora. Vai dar tudo certo — falo sem mesmo crer e segurando o choro com a garganta dolorida.
— Ele pediu perdão pra mãe, Renan, sabe que quando a pessoa faz isso...
— Não fala isso, guria. Não. Vai ficar bem sim.
— Ele tava chorando...
Não esperei pelo Anderson ao lhe enviar a mensagem, peguei meu carro naquele estado. Estava sem me alimentar, trêmulo, todo "coisado", chorando em silêncio e sentindo culpa por não ter ajudado mais. Eu achei que tinha culpa pelo vício dele...
Seu Roberto encontrou paz finalmente.
Ali estavam mais uma vez os amigos, Luiz, Cecílio, Guilherme, Gabriel, Matheus, Marcel, Eliane, Davi, Simão Pedro, Cleyton e muitos outros irmãos meus e irmãs, além dos meus irmãos de sangue. Vieram também outros conhecidos sempre presentes e os parentes mais chegados.
— Para de sentir culpa, Rê. — Anderson me dá um copo de água ao me afastar do velório para a parte de trás da capela. Encontro um pouco de alívio no seu abraço que transmite paz e amor, como um consolo fraternal. E teve quem viu a cena, uma irmã do meu pai que fumava por ali, justo a mais velha e quem menos me aceitava. Eu senti no íntimo um pouco de receio, mas o Anderson continuou me abraçando até eu parar com os soluços.

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Sol e Marte
RomansaFinalizado! Romance LGBT. Se você estiver lendo esta história em qualquer outra plataforma que não seja o Wattpad, provavelmente está correndo o risco de sofrer um ataque virtual (malware e vírus). Se você deseja ler esta história em seu formulário...