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Eu já tinha sido transferido há muitos meses e fiquei mais alguns remoendo o fato de que meu esforço na agência anterior não fora reconhecido. Se não fosse o Luiz ter conversado com Waldir, propondo minha transferência, eu teria presenciado quando contrataram pessoas para preencher vagas e quanto a vaga que eu tanto desejei, fora entregue a outra pessoa, além de ter que engolir a Ângela, se lá estivesse.

Me passou pela cabeça procurar um psicólogo para trabalhar a os lados obscuros da competitividade que geram a prepotência, arrogância, frustração e o rancor. Esse último fazia meu estômago doer como se um caroço tivesse se formando ali.

— Renan, filho. Come só um pedacinho... Quando tu era criança se deixasse, comia metade de um pudim de leite.

— Depois eu como, sagrada — minha mãe e eu saímos outra vez para procurar meu pai e o achamos caído perto de um meio fio na esquina de nossa rua. De certo nos desencontramos, pois eu andei pelo bairro inteiro e quase liguei para a polícia.

Mais tarde Anderson apareceu e aceitou ficar para o almoço e conversou um pouco com meu pai que disse:

— Eu tava com fraqueza depois da gripe... tomei uns remédios da farmácia... bem difícil eu ficar bêbado... — o que torna meu pai difícil de tratar, é que ele não admite que é viciado, inventa mil histórias achando que somos burros.

É inevitável ver meus pais discutindo, minha mãe gritando saturada, meu irmão sendo duro com meu pai, Rayane chorando, Ramon apenas se esquivando, Anderson presenciando e eu absorvendo, tendo às vezes que fingir que tudo está uma maravilha para que Anderson não se sinta desestimulado. Sorrio no trabalho para manter a pose elegante e ser elogiado como pessoa de astral elevado. Falo para os amigos que tudo está ótimo enquanto meu pai passa quase uma semana trancado no quarto do Ramon, bebendo, chorando, não aceitando um prato de comida, inclusive descontando em mim sua frustração:

— Seu ingrato... — ele me destrata quando entro naquele quarto que fede com sua falta de asseio — Renan... vou me enforcar aqui se não me deixarem sair.

Recuei e chamei meus irmãos, minha mãe e quem mais poderia me ajudar a conter o homem, ninguém tava por perto e eu morri de medo que ele cumprisse sua promessa. Ouvi todo mundo indignado comigo quando ele sumiu pelas próximas 24 horas e mandei todo mundo à merda me vendo diante de um surto. 

Má hora para receber um novo aviso do corpo. Dores estomacais agudas quando o estresse atingia seus picos. Mas daí sempre tinha alguém pra dizer:

"Toma Omeprazol"

"Eu também tenho isso"

"Fica tranquilo. É perigoso se houver febre. Não tem? Ah, então não é nada"

"Toma boldo"

"Toma bálsamo branco"

"Toma Leite de Magnésia"

— Gente, meu problema não são gazes. Não vou tomar essa desgraça de leite nem que me amarrar. Quando criança, minha mãe empurrava goela abaixo esse troço. Prefiro boldo com pau amargo.

Enfim, se esses remédios resolviam, é porque não era nada demais. Diante do problema com meu querido pai, eu achava egoísmo pensar que dentro de mim um problema poderia estar se formando apenas por transitar por essa fase complicada, eu era jovem, mal tinha completado vinte e cinco anos, possuía tantas coisas que me tornavam uma pessoa feliz e eu tinha pavor de parecer fraco. 

Eu ainda amava parecer pleno e absoluto! ♥

*

Quando nos demos conta, mais uma folha do calendário fora arrancada e completei vinte e seis anos ainda na batalha com os altos e baixos de qualquer brasileiro guerreiro que nunca cagou num banheiro de hotel de luxo. Ou seja, ajudava a manter a casa quando meu pai estava internado e empurrava meu sonho de independência financeira para o amanhã. 

Sol e MarteOnde histórias criam vida. Descubra agora