•Vicente•
A Laura foi embora há duas semanas. Eu não fui me despedir no aeroporto, preferi assim, mas pedi para que me mandasse uma mensagem quando chegasse.
Eu definitivamente não sei lidar com perdas. Minha cabeça dói, meus pensamentos ficam descontrolados, cogitei a possibilidade de aumentar minha consulta com a Ana para duas vezes na semana, porém ela disse que não era necessário.Eu estava procurando um email que um professor havia mandado dias atrás referente a uns livros complementares e achei uma das cartas que a Laura havia mandado, a última. Nós trocávamos cartas várias vezes por semana, de repente tornou-se apenas uma vez na semana, depois uma vez no mês através do email, depois apenas mensagem, e o tempo se encarregou de mudar nosso destino. Era tudo mais fácil quando éramos apenas amigos.
Mas será que é só isso? Será que agora é o destino? Será que acaba por aqui, já vivemos tudo que tínhamos para viver juntos? Não é possível que acabe assim, eu me recuso. Respirei fundo e afastei meus pensamentos, os mesmos que me amedrontaram desde aquela conversa que tivemos, mas não há nada que eu possa fazer a não ser respeitá-la. Tudo o que eu disse foi verdade, eu realmente vou esperar ela voltar, irei continuar amando-a.Eu finalmente vou conseguir minha carteira de motorista, depois de 6 meses fazendo provas. Eu ainda estou "duro", como diz meu pai, atrás do volante, mas estou tentando me adaptar. Quando eu sai do trabalho, marquei de buscar a Isabela no cursinho para ajudá-la, procurei uma vaga na rua e desci do carro do meu pai. Franzi o cenho quando eu vi uma aglomeração em frente à porta, adolescentes são realmente insuportáveis, além de ficarem amontoados ficam gritando.
- Para por favor. - ouvi um grito familiar e tentei me aproximar para ver melhor. Eu vi a Isabela agachada no chão e as pessoas ao redor "cutucando-a".
- Ei, com licença. - eu tentava me aproximar dela, mas estava impossível, forcei mais o meu corpo para frente e consegui chegar até ela. Afastei as mãos em cima dela e puxei-a para cima. - Já chega, acabou.
- Não sabia que a autista tinha segurança. - um garoto disse fazendo os outros rirem.
- Eu também não, como será que ele aguenta as frescuras dela? - uma garota disse e voltou a cutucar o braço da Isa.
- Se afastem. - falei e puxei a Isa até o carro. - Está tudo bem? - perguntei a ela que apenas assentiu. - Não foi a primeira vez né? - ela negou com a cabeça. - Sua mãe sabe? - negou com a cabeça novamente. - Ok, vamos contar para ela agora. - entrei no carro.
- Não Vicente, não precisa contar. - disse após sentar no banco do passageiro.
- Claro que precisa. Você não precisa esconder, eu já passei por isso.
- Eu não quero que minha mãe faça nada, quero enfrentar isso sozinha.
- Tudo bem, sua mãe não precisa fazer nada, mas precisa saber o que está acontecendo com a filha dela.
- Ela sai tarde do serviço, se você ficar esperando vai perder a aula de hoje.
- Então você vai contar. - desviei meu olhar a rua e a olhei. - Se você não contar eu vou contar, nem que seja por telefone.
- Eu vou contar hoje. - respirou fundo.
Prestei atenção na rua e apenas assenti com a cabeça. Sei que ela não irá contar, mas vou deixar nas suas mãos. Amanhã irei buscá-la de novo, se algo der errado eu mesmo vou contar para sua mãe.
•Isabela•
O Vicente me deixou em casa e eu fiz o possível pra disfarçar todo o resquício de choro do meu rosto para a minha mãe não desconfiar de nada. Obviamente não irei contar para ela, tenho certeza que se eu contar ela irá no cursinho e fará alguma coisa, com isso eles terão mais motivo para fazerem o que fazem. Isso é bem comum, já comeram meu lanche e eu fiquei com fome, derrubaram meu material na porta da sala, jogaram meus cadernos no lixo. Eu nunca havia contado para ninguém, até o Vicente vir me buscar e ver o que aconteceu ontem. Parece que essas "brincadeiras" ficaram piores depois das férias de julho. Não há nada que eu possa fazer. Eles me ameaçaram, disseram que se eu contar para a coordenadora ou algum funcionário de lá, irão cortar o meu cabelo e eu gosto dele desse tamanho que está.
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Azul é a nossa cor
RomanceCostumo dizer que o autismo me prendeu em um corpo que eu não posso controlar, mas tudo bem, já tenho 18 anos e acho que posso conviver com isso por mais uns 70. Eu gosto do jeito que eu sou, afinal não sei como eu seria se não fosse eu, então prefi...