Capítulo 1

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Durante muito e muito tempo, as pessoas vagueavam por aquele pequeno mundo, andando de cá para lá, ocupando-se de nada fazer. Não dormiam ou despertavam. Os olhos cerrados desconheciam a luz, sem se incomodarem com a ininterrupta escuridão. Nasciam, cresciam, morriam... Apenas isso e nada mais. Não existiam sentimentos que expressassem emoções, o afago do toque carinhoso ou mesmo razões para desavenças ou manifestações de ódio ou raiva. Os motivos que mantinham as pessoas unidas permaneciam desconhecidos. Tudo se resumia em uma simbiose perambulante de ser.

Mas tudo estava prestes a mudar. Aqueles seres jamais poderiam imaginar o milagre que iria acontecer e que alteraria completamente suas vidas monótonas e sem sentido. Isso ocorreu quando a estrela maior lançou dois cometas num mesmo instante e que após viajarem pelo universo, sempre lado a lado, destinar-se-iam a profundas transformações. Esses cometas foram batizados de "Os Gemelares". Onde e quando permanecessem unidos, fluiriam os melhores e mais preciosos sentimentos, motivação que dá ânimo e vigor aos seres por eles influenciados, fornecendo sentido existencial a todo ser vivente. Cada um dos gemelares tinha seu poder específico e inefável, sejam eles para o bem ou para o mal.

Acontece que, durante o itinerário dos cometas, acidentalmente eles encontraram aquele inerte planeta, onde aquelas pessoas moribundas estavam. Os gêmeos, ao penetrarem a atmosfera, mudaram seus cursos ese separaram pela primeira vez desde que foram lançados. Essa divisão alterou completamente a essência dos cometas, transformando-os. Seguiram posições contrárias que determinariam o comportamento de cada um dos irmãos.Para leste um dos gêmeos obteve a forma de uma estrela cadente cheia de luz, que brilhante cortou o céu buscando seu destino: um belo e angelical sorriso pueril. Pelo sentido oposto, feito pedra como um asteroide, o segundo cometa incandescentemente escuro pousou numa lágrima melancólica. Duas distintas crianças, pequenos meninos, que ganhavam a vida naqueles exatos momentos, tornaram-se os portadores dos irmãos. Os Gemelares, agora separados, pertenciam cada um a uma pessoa distinta. Aqueles recém-nascidos, pela magia que acabavam de receber, foram elevados à condição de soberanos dos lugares onde se encontravam e assim surgiram dois reinos muito diferentes. Gerações se passaram e os soberanos foram herdando de pai para filho os poderes mágicos e especiais de cada gemelar que possuíam.

Desde o pouso dos cometas com lados opostos, formaram-se os dois reinos diferenciados: a leste o Império Encantado de Nede e a oeste o nebuloso Reino de Tenebra. Em um desses reinos tudo se tornou bonito. A floresta surgiu vigorosa e ganhou cores, movimentos e muita vida. Os animais tinham abundância de nutrientes e espaço para viverem. A alegria começou a imperar entre as pessoas, que passaram a apresentar rostos corados e felizes. Fazer o bem ao próximo era motivo de satisfação e um objetivo comum de todos. Tudo era divido entre todos, que tinham aparente condição de igualdade entre as pessoas. Neste reino, governado pelo Imperador Marco, soberano que havia herdado de seus antepassados essa condição e carregava consigo o primeiro gemelar, tudo parecia primoroso. O amuleto com esse gemelar tinha forma de pingente translúcido que em algumas ocasiões irradiava uma intensa luz branca, foi batizado como "Cadente da Luz",e era o eterno guardião do mais puro sorriso. Naquele império também existia uma sinfonia constante dos mais lindos e variados pássaros. O cheiro das diversas flores misturadas era agradável ao olfato. Todos se ocupavam com tarefas felizes, cada um com suas atribuições, sem deixar de se ajudarem mutuamente, compartilhando tudo entre todos, seguindo regras claras e concisas. Naquele reino, no Império Encantado de Nede, quase tudo era perfeito e agradável; a escuridão que antes era incessante deu lugar aos dias iluminados e às noites estreladas.

Já, no outro lado a escuridão imperava, os dias não tinha sol, apenas uma densa névoa encobrindo a pouca claridade, e as noites não tinham estrelas, mas um céu de um vermelho muito escuro e poluído. As pessoas tinham o coração endurecido, o amor havia sido abolido de suas vidas quando o segundo dos gemelares optou por se transformar em uma rocha, passando a ser conhecido por "Negro Asteroide". Ali vivia o Rei Saul, portador atual da lágrima que havia sido incorporada no interior da mais negra, porosa e rígida pedra que adornava o anel real e que foi herdada através de suas gerações passadas. Carregar esse gemelar era uma tarefa árdua e melancólica, pois longe de seu irmão inicial, sua magia era triste e sem vida. Com ele vivia a Rainha Consorte Joana, uma astuta, belíssima e poderosa mulher. Perto da idolatrada esposa, a presença do rei torna-se obsoleta, praticamente despercebida. Joana é linda e jovial, com longos cabelos negros, sedosos como casacos de pele de vison. Vaidosa, anda sempre adornada com muitas joias e maquiagens escuras. Maquiavélica e egoísta guarda em seu interior o desejo de controlar tudo ao seu redor, embora não deixe transparecer o seu verdadeiro cinismo, pois é deveras carinhosa. Não se importa com os sentimentos alheios e procura manter escondido seu sombrio e incontrolável desejo alimentar e fonte de seu domínio principalmente sobre seu dedicado esposo.

No castelo onde moram as cortinas são todas cinzas, os lustres e luminárias não brilham como normalmente se vê, parecem esfumaçados. Tons negros monocromáticos preponderam o local. Os serviçais são pálidos, quase não se falam, andam cabisbaixos e nunca sorriem. As únicas cores do reino pertencem à rainha, que apesar de sua perversa interioridade, usa vestes claras, belos vestidos de cor pastel, contrastando com todo o resto do ambiente e servindo de disfarce para sua ruindade interior. Ao invés de ostentar uma coroa cheia de pedras preciosas, Joana optou por usar uma tiara escura que contorna a cabeça, passando pela testa. Inteligente, essa foi uma escolha certeira para sua aparência, uma singela tiara que transmite serenidade e que parece mesmo combinar com ela, disfarçando bem seu perverso caráter. Os cabelos longos são usados para fazer uma trança que corria em suas costas por inteira, com a ponta atingindo abaixo da linha da cintura. Seus lindos olhos violetas brilham como ametistas. Foi por esse poderoso olhar que o Rei Saul se apaixonou, enfeitiçado pelo brilho que lhe transmitia a única quietude existente em meio ao enorme tamanho de sua tristeza.

Também, Joana não fede. Muito pelo contrário, tem um gostoso e característico cheiro de rosas, sendo sempre agradável ficar próximo à ela. De gostos excêntricos, havia conseguido secretamente um tônico perfumado com o mascate que lhe trazia os linhos tingidos de cores suaves, feitos exclusivamente para ela e que originavam as belas túnicas que usava. Outro segredo de sua beleza é a água termal que utiliza para banhar-se. Conforme sua vontade as criadas buscam numa fonte próxima ao Palácio, uma das poucas riquezas naturais do reino e que é despejada sobre ela nos procedimentos de limpeza pessoal. Joana não suporta os banhos públicos, nem mesmo o que é compartilhado apenas pela nobreza, mas a principal fonte de poder dela é mesmo os corações.

A governanta do palácio há muito tempo trabalha ali. Toda noite Rosália prepara a mesa para o jantar e tinha que obedecer aos apetitosos desejos da Rainha Joana, principalmente agora que ela está grávida de seu primeiro filho. Rosália é uma jovem senhora muito bonita, apesar do seu semblante abatido. Ela também gesta uma criança que está prestes de nascer. Seu coração foi transformado em pedra quando o Rei Saul chorou pela morte de seu melhor puro sangue. Gentil e bondosa, ela já havia se prontificado a ser também ama de leite do futuro bebe real, já que a rainha havia manifestado o desejo de não amamentar, pois achava isso um ato nojento e inoportuno.


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