Capítulo 20

2 1 0
                                    

O Palácio de Tenebra foi esculpido sobre um alto rochedo e alguns de seus compartimentos chegam a penetrar o interior dessa grande pedra. As oito torres externas são bem altas e afuniladas. A princesinha gostava de ficar olhando pelas janelas do Palácio, lançar visão para o horizonte mais distante que conseguisse alcançar. Da pequena janela tudo parece sem graça, pois está acostumada com aquela paisagem quase sem cor, cheia de galhos secos, recoberto por cinzas dos vulcões e esfumaçada pela poeira que se levanta com qualquer brisa silenciosa. Onde seu olhar alcançava representa o único mundo que conhecia. Nunca teve a oportunidade de sair do palácio. Vivia enclausurada por causa da máquina que bombeava o sangue em seu corpo e que não lhe dava resistência para caminhar por muito tempo, pois precisava ser recarregada constantemente com certo tipo de carvão que ficava incandescentemente verde ao ser carbonizado, fornecendo energia para a máquina funcionar. A mãe dela tinha projetado muito bem essa máquina que a mantinha viva, contudo prisioneira de sua própria sorte.

Por entre as paredes de seu quarto monocromático é que vive a maior parte do tempo. Passa as horas estudando, sendo ensinada por mestres que lhe traziam conhecimentos de latim, astronomia, que lhe contavam histórias de reinos circunvizinhos e algumas de lugares tão distantes que nem sabiam se eram lendas ou verdades. Esse praticamente é o único privilégio que ela tinha por ter nascida em berço de ouro e mesmo que não sendo costumeiro investir em ensinamentos para as mulheres, a Princesinha de certa forma foi privilegiada pela piedade do pai, que lhe proporcionava essas regalias, embora ele permanecesse ausente da sua vida sem grandes interesses nela.

O quarto dela é grande e tem os melhores artefatos disponíveis do mundo. A cama de madeira nobre é adornada por véus, que também a protege dos insetos. A mais bela penteadeira do mundo está ali, com um banco recapado de couro negro, todo entalhado, uma verdadeira obra de arte. Um grande espelho é novidade sobre o móvel e havia ganhado de alguma pessoa importante uma escova de cabelo, de cabo de madeira e feita com pelos macios de algum animal das cordilheiras que tocam o céu. Dentro da pequena gaveta estava o maior tesouro da princesinha: papiros sobrepostos recortados em oitavas, pois não gostava deles enrolados como os alguns que ficavam nas raríssimas bibliotecas existentes pelo mundo. Esse pequeno material formava um livro que consistia de um maço de folhas dobradas e frouxamente costurado em uma capa de ouro. Ali, ela escrevia seus pensamentos e os mantinha guardado de todas as outras pessoas.

Dentro do palácio existe uma dessas raras bibliotecas, um patrimônio riquíssimo de saberes em que apenas um grupo muito pequeno de eruditos tinha acesso. De mulher, exclusivamente ela e com estrita permissão do escriba responsável que é também um importante filólogo da igreja. O acervo fica disponível em nichos preenchidos com os rolos de pergaminhos, palimpsestos e livros de papiro. A maior parte deles fora retirada de uma caravela que naufragou próximo de Tenebra e foi saqueado pelos soldados a pedido do Rei Saul. O soberano sabia que os clérigos influentes do reino tinham muito interesse naquele tipo de material pelo valor inestimável de conhecimentos proporcionados e para agradá-los ainda mais, disponibilizou salas de leitura para que pudessem manusear essas riquezas.

A pequena Talita vinha todos os dias visitar a princesinha. Com o passar dos anos ficaram tão amigas, praticamente irmãs, até mesmo porque Rosália havia criado a princesinha como se fosse também sua própria filha. De certa forma, isso a ajudou a superar a perda do bebe que teve que abandonar logo após o parto, que foi deixada no rio a mercê do destino. Ela, constantemente, recorda-se do único beijo que deu na filha recém-nascida e que ainda mantém guardado o outro sapatinho que caiu do pé da menina durante a fuga.

Talita tem novidades e trouxe uma surpresa para a princesa, algo que encontrou pelo caminho após uma aventura num lugar longínquo. Primeiro pede segredo para a princesinha, pois se a mãe soubesse onde tinha ido tão longe, com certeza, a castigaria. Perto do deserto de sal tinha recolhido uma porção grande de pólen, tons vivos de amarelo alaranjado de uma flor que encontrou por lá. Ao abrir as mãos, a princesinha, boquiaberta, não consegue disfarçar o encantamento com as cores, algo difícil de ser visto em Tenebra. Talita pede para a amiga fechar os olhos e começa a esfregar a ponta do dedo sobre suas pálpebras, dando um pouco de cor ao seu rosto pálido.

DesígniosOnde histórias criam vida. Descubra agora